Talvez não interesse, provavelmente não interessa, e essa coisa da escrita de si ainda me enjoa um pouco, para falar bem a verdade. Escrever sobre comida também me enjoa porque escrevo o que deveria ser comum, mas para muita gente não é. Mas escrevi. Escrevi, como em uma lista de notas mentais, a maioria das coisas que comi neste último mês em que estive no Brasil. Em restaurantes, bares e botecos, mas sobretudo nas casas das pessoas que gosto, comidas normais, com gosto de casa e cara de gente.
Revi as fotos uma por uma, meio macambúzio, no avião apertado da volta. O peito e a cabeça embolados em um compasso esquisito: a saudade da casa que deixo, feita de pessoas e lugares, e a saudade daquela para onde volto, feita de paredes de fato. Em Coimbra, precisei de um certo tempo para assentar. Tomar um café na padaria da minha rua e ver a vida passar. O mesmo cão manco e felpudo. Aquela senhora tragando calmamente um cigarro. Pagar a conta com uma única moeda. Sentir o vento novo de outono num dia fresco de céu azul. Tirar do bolso e deixar respirar as raízes finas que já criei aqui.
No Rio, teve pastel de siri e empadinha de camarão n’O Caranguejo, emborcada sobre o engananapo no prato de louça branca com friso verde. Água de coco do coco. Pão de leite com linguiça na Pavelka. Pudim perfeito no Belfrango. No primeiro dia, empadas fechadas de galinha e abertas de queijo e de chocolate, da Dona Empada, as mesmas que, quando dava, minha mãe levava para casa depois do trabalho, mudando completamente o humor daquelas noites.
Teve torresmo, a barra de cereal da qual se orgulha o bar do Bode Cheiroso. Também lá, croquete de pernil com abacaxi, pratada de feijoada e batidinha de coco. Tinha esquecido o quanto gostava dessa coisa cremosa e maravilhosa que é uma boa batida de coco. No templo da Drica, minha prima, exímia cozinheira, seu pernil tão famoso com feijão vermelho, arroz novinho e maionese de batatas e cenouras. A costelinha pinga e frita da Janaína. A carne assada da Marlene. O feijão perfeito da Alê.
As goiabas da feira da Glória, de tão maduras, me chamaram pelo cheiro. A esfirra do Baalbeck, na galeria Menescal, parece que sorria pra mim de dentro da estufa. Também teve o doce divino de jaca do Claudio. O frango com requeijão da Eneida, mãe da Camila, e a feijoada completa da Marina, mãe da Luisa, pratos clássicos das nossas vidas. O café da Alice, passado diante de mim, convertendo a falta dela em mais amor e juntando à minha mala meio quilo do seu fubá de milho crioulo multicolorido, plantado no Sítio São José, e um potinho de seu pirlimpimpim de pimentas — cumari, cambuci, de bode e outras mais — desidratadas.
Coraçãozinho, pão de alho, linguiça e os melhores chopes, no Sat’s de Botafogo. Cachorro-quente do Oliveira de noitão. Bar Lagoa. Bar da Gema. Bar Gatão. Leite de onça, vulgo gengibrinho, no Licks. Bolinho de beterraba, abóbora assada e um drinque de goiaba, cachaça envelhecida e telha de queijo, no Brota. Teste de cozinha do Libô, com uma salada tão gostosa e sonora (sobrecoxa de frango, molho de soja, óleo de gergelim, melado, repolhos, tiras de massa frita de pastel) que só me lembrou o quanto Roberta Ciasca é uma cozinheira gênia. Almoção pós-praia no balcão serpenteado do Braseiro de Copa e, algum domingo em casa, pizza da Caravelle, metade alho frito, metade portuguesa, completamente brasileira.
Caipirinha de limão adoidado como se eu fosse um turista (e em alguma medida, era). Quando deu, com limão-cravo, minha eterna fruta de eleição. Em Alagoas, socando com limão a temporada do caju. Especialmente a caju-limão do Cantinho Nordestino, um lugar mágico em Porto de Pedras, com o acolhimento mais carinhoso do mundo da Clarice e da Marta, acompanhando a chapa de carne do sol com macaxeira frita, feijão verde, queijo de coalho, farofa de cuscuz e pimenta braba. Em duas horas no Recife, a tapioca rendada do Damião de frente para a praia de Boa Viagem, tão linda, e seus edifícios altos, tão feios. De sobremesa, bolo de rolo de beira de estrada.
Croquete do Labuta, churrasquinho e água com gás em dia de samba e ressaca no Senado. Sorvetiño de doce de leite com manteiga queimada. Peixe fresco— olho-de-cão, buri, carapau e atum, tanto atum — no Haru, no Rio, e no balcão raro do Sushiguen, em São Paulo. Na cidade cinza, pão na chapa com requeijão na entrada pela primeira vez. O cuscuz do Hugo e as sardinhas do Plou.
Coxinhas de frango com catupiry, berinjela à parmegiana e café coado, dividindo a mesa com uma das minhas referências de tudo, Patty Durães, num lugar mais-a-gente-impossível, de comida caseira e mesa de caquinhos, escolhido por ela, o Lá na Vó, na Vila da Saúde. Seu presente, não bastasse a luminosa presença? Tabletes de rapadura com milho-verde que trouxe do Ceará, e fizeram meu pai chorar porque o lembraram de sua infância em Santo Estêvão, Vale do Paraguaçu, interior da Bahia, quando esperava o sábado só para sentir esse mesmo gosto. Foi instantâneo: ele mordeu e a lágrima pulou.
Na minha cidade, o Rio de Janeiro e de todas as mesmas belezas e mazelas cada vez mais fundas, realizei com alegria particular afazeres outrora banais, tão parte que eram do meu cotidiano. Amolar alicates no Isaías, que mudou da loja na Galeria Ritz para um quiosque na Hilário, por exemplo. Entrar numa vetusta farmácia de manipulação e encomendar uma loção. Bater um PF em um boteco que sempre namorei. Livre, comer pastel de palmito em uma feira que eu não lembrava que tinha aquele dia.
Em meus últimos dias, como sempre faço quando viajo, pus na mala reminiscências simples, mas que duram e dão conta de prolongar a viagem: sabonetes, farinhas, cachaças, colorau. Uma sanduicheira de alumínio, de boca de fogão. Desarrumei as coisas me rearrumando junto, feliz e triste, sem saber o que sentia. Habitando uma incompletude, mas uma incompletude revigorada. “Respeitar a saudade, mas não adoecer disso”, disse Fernanda Montenegro no Tributo tão sensível sobre sua trajetória. Acho que vou tatuar.
Eu amo a comidinha do Bode Cheiroso 🥰 sobretudo, o pernil com maionese.
Maravilhosa, como tudo que escreves. Saudade de ti e de tudo que me proporcionastes quando estive aí. Voltarei. Te amo ❤️❤️