Embarco na quarta-feira para Portugal e a passagem é só de ida. Digo sem rodeios nem falsa modéstia, porque estou orgulhoso de mim: fui aprovado em primeiro lugar no mestrado “Alimentação: Fontes, Cultura e Sociedade”, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, uma das mais antigas do mundo ocidental, e lá vou eu, coberto de privilégios, recomeçar num novo lugar. Por ser jornalista, esquerdista, antiproibicionista, antirracista e antisexista, e por ser anticolonialista a lente que escolhi para enxergar o mundo, logo entendi a força simbólica de voltar ao país que nos colonizou para falar do que eles insistiram em apagar. Vou de avião sentado numa poltrona confortável, e até devo comer pão com manteiga, bacalhau, tomar vinho tinto no caminho, mas voo sem esquecer que pelo mar embaixo de mim passaram navios negreiros onde gente era tratada como bicho. Vieram e nos tiraram tudo, e agora, viajo de volta para falar que existimos, pensamos e comemos. Que resistimos apesar de esquecidos aqui, à margem do mundo.
Vou com um projeto transgressor em mãos, um projeto de rompimento com a realidade de dominação e violência que nos foi historicamente imposta, pensando na carga complexa e implacável desse fato medonho — a invasão portuguesa — sobre nosso prato, nossa História e nossa carne. Ao mesmo tempo, vou cheio de apetite por um diálogo realmente edificante, produtivo, descentralizado e engajado, disposto a mergulhar profundo. Isso significa que vou ser aquele a levantar a mão para questionar a universalidade do saber eurocêntrico, e porque navego com a certeza de que a produção de conhecimento deve se constituir de forma mais plural, onde não se parta de um olhar hegemônico como único caminho possível. Não sei como vai ser, mas que pensar quando entre as disciplinas do curso estão estudos da mesa medieval, da cozinha grega e romana, mas nada de africanidades, dos povos originários de cada lugar e suas sabedorias da mata, de quintal, de terreiro? Se não estiverem mesmo lá, pode deixar que vou eu, falar.
Vou em paz, mas com a boca cheia de mim e de nós, o Brasil de tantos brasis e brasileiros; vou vigilante, atento e forte, mas sem endurecer jamais. Vou para ler mais, escrever cada vez melhor, e para cada vez mais gente. Para dizer que o Brasil ergue-se em contraponto, espalhando nossas vozes por uma das estruturas primordiais do saber ocidental — a universidade — para escrever uma nova História, comprometida com valores distintos daqueles com os quais nos inauguraram. Vou querendo construir um debate onde a diferença possa ser oportunidade de crescimento e construção, não de cizânia, e levo em mim a certeza imperfurável de que só a educação é capaz de mudar qualquer coisa.
Pude escolher ir, estou feliz da vida em poder voltar a estudar, tomar muito porto tônica, colher limão siciliano dos limoeiros que abundam pelos canteiros de Coimbra, comer pastel de nata, pataniscas de bacalhau, grão de bico, queijo de ovelha, presunto de porco preto, arroz de polvo e leitõezinhos da Bairrada a perder de vista. Ter a chance de viver num lugar mais justo, menos espinhoso em suas desigualdades, onde o litro do leite ou o quilo do arroz e do feijão custem, proporcionalmente ao salário mínimo, quase dez vezes menos que aqui. Vou, mas vou lutando para que muito mais gente também possa ir, para que um dia, com sorte, não precisemos voar tão longe para buscar nossa felicidade. Possamos escolher ficar.
É claro que, de cara, fiquei cismado em morar fora do Brasil mesmo querendo falar tanto dele, e justamente em Portugal, o mais simbólico dos lugares para se migrar. Mas é justamente por estar lá que continuarei a falar de tudo o que ando falando por aqui, e sobretudo do que vou vendo e aprendendo nas salas de aula e de estar, nos palanques, nas tascas e calçadas do caminho. Quero me aproximar cada vez mais da África e dos africanos, provar o quanto puder de seus gostos e entender melhor suas lutas e suas culturas tão múltiplas, me contagiando da resistência desse continente tão potente, diminuído por inteiro. Minha rotina vai mudar um bom-bocado: vou com o namorado que virou marido, nosso vira-lata caramelo e uma imagem do caboclo Rompe-Mato, que me guarda, enrolado nas nossas roupas limpas. E como não podia deixar de ser, vou cheio de ideias de escrevinhações guardadas na cabeça.
Nossa newsletter, Prato Feito, vai continuar firme e forte, mas um pingo diferente. Para provar que pouco se pode adivinhar da vida, as crônicas dominicais, destinadas gratuitamente a todos aqui inscritos, cresceram muito mais dentro de vocês do que eu podia imaginar. A cada domingo recebo mensagens lindas dizendo que pude levar alguém de volta ao quintal de família durante a infância, que passou a ver sua casa de outro jeito ou a se provocar mais por entender que toda existência é, necessariamente, política e importante. Os textos das quintas-feiras alternadas, reservados aos assinantes que contribuem financeiramente com a newsletter, até eram bem recebidos, mas ainda assim, mesmo quem assinava, me dizia: sabe que gosto ainda mais das crônicas? Além disso, pelo formato mais jornalístico, acabavam encaixotando assuntos que podiam virar crônicas, mais fáceis de ler, abertas para mais pessoas. Eu, do lado de cá, bem que gostei de viver desse texto mais lento, para ser saboreado com calma, como um doce demorado ou um sonho bom.
A partir de hoje, portanto, a newsletter vai seguir com as crônicas semanais de outro jeito: um domingo aberto para todos inscritos, outro só para assinantes. Como não é minha intenção entupir sua caixa de entrada com recomendações que vão se acumular além de tudo que já temos para fazer e pensar, achei mais acertado e honesto, também com o redesenho da minha rotina, que o conteúdo complementar dos assinantes pagos fosse condensado num único texto mensal, mais resumido. Serão recomendações breves de leituras, filmes, livros, discos, lugares, viagens, poesia, receitas e outros textos, meus e de outras autorias, numa curadoria amorosa e atenta. Aos novos assinantes, a partir daqui, quero encorajar ainda mais a assinatura mensal, de R$13, com a ideia da colaboração pequena mas frequente, construída coletivamente. Assim, comprometidos com uma pequena quantia, vocês, minha audiência cativa, podem financiar meus esforços em seguir estudando, lendo, escrevendo, viajando, comendo e pensando em tudo que possa tocar, mudar, provocar, amolar ou amolecer vocês.
Sei que já sabem, mas é preciso reforçar a ideia de que a assinatura paga não é uma tática vil para ganhar dinheiro dormindo, mas sim um convite a quem me lê, pode e tem vontade de reservar R$13 por mês em apoio à minha pesquisa e meu trabalho autoral, o faça. Não quero fazer desse conteúdo pago algo exclusivo, mas o contrário: que seja inclusivo o suficiente também para quem não possa pagar agora ou tão cedo, já que conhecemos bem os abismos do lugar em que vivemos. Se a grana está curta, se não tem cartão de crédito ou não se sente confortável em cadastrá-lo aqui, basta responder qualquer email que adiciono seu nome na lista de assinantes, e nem precisa contar sua história, me convencer ou provar nada. Confio em você, e se me ler te faz feliz por algum motivo, quero mais que você me leia, mesmo.
Respiro fundo. Hoje é domingo, o último de uma fase importante da minha vida, prestes a me enroscar no desconhecido do mundo e de mim. Sintam-se celebrados, cada um de vocês, por me ajudarem a chegar até aqui com o frio que não me sai da barriga a cada vez que clico no botão laranja que diz publicar. Dia primeiro de setembro, a seis dias do dia tão dúbio que marca o bicentenário da independência do Brasil, data importante e perigosa pelo avanço violento da Direita às nossas ruas, eu, Mateus Habib, branco, jornalista de passaporte brasileiro, filho de socióloga com ator de teatro, neto de uma professora normalista que fora militante da educação de qualidade para todos, piso em solo português para estudar numa universidade fundada em 1290, sem previsão de voltar.
Não nego que o sentimento é, um pouco, o de ir morar com o inimigo; mas também o de ser um infiltrado de sorte, olhando tudo com olhos de dúvida, imbuído de um devir genuíno de ajudar a reescrever uma nova e urgente História do Brasil. Uma que desmonte as sombras imbricadas nas veias corroídas da velha Portugal e dê lugar ao novo — um novo imperiosamente ladinoamefricano, como emancipou a estudiosa mineira Lélia Gonzalez. Volto aos portos de lá atrasado quinhentos e poucos anos do que fizeram com os mortos daqui, mas não levo raiva nos ombros ou sangue nos olhos. Vou de peito aberto, brejeiro, mas com o Brasil tatuado na alma, nos pulsos, na fala, no jeito. Vou ser o Brasil que puder ser, nunca sem paixão. Cê vem comigo?
Que Portugal te receba de braços abertos. Sucesso na nova jornada.
Querido Mateus, é uma alegria ver você voar! Voe e nos leve junto! Um grande beijo, com a admiração de sempre!