Na última semana, perguntei no meu Instagram qual era a combinação inusitada favorita de quem me seguia. Recebi respostas ótimas, e todas válidas, já alguém gostava delas, puderam lembrar e dizer. Teve biscoito Maizena com Yakult (mas que quem mandou, de São Paulo, chamou de bolacha), pão com manteiga e açúcar, mamão com requeijão e até vatapá com batata frita, acaso possível só nos restaurantes a quilo da Bahia, que às sextas-feiras, serve comida de dendê. São gostos tidos como estranhos, marginais das mesas oficiais, que talvez só sejam sublimes quando uma grávida pede. Mas proibir, desprezar e diminuir não combinam em nada com a beleza que é o ato de alimentar-se. Acontece que em nome de certas convenções, a maioria delas vindas de fora, confundimos nossos valores e deixamos nossa identidade passar ao largo, e não só a identidade cultural nacional, mas até mesmo a que forma nossa cidade, nosso bairro, a que permeia nossa família. Semanas atrás, quando publiquei aqui a receita do quibe de forno do meu pai, recebi um comentário preconceituoso por conta do recheio de queijo, dizendo que baiano gostava é de inventar moda, só faltava, agora, colocarem calda de morango no acarajé.
Leci Brandão, um dos nomes mais importantes do samba e também do ativismo político no Brasil, tem um disco de 1976 que adoro, e a música que lhe dá nome, “Questão de Gosto”, é a que me veio à cabeça ao escrever esse texto. Em São Paulo, por exemplo, é conhecida a noção que colocar ketchup na pizza é uma ofensa. Também não costumo colocar em pizzas com ingredientes de muita qualidade, massa de fermentação natural, queijos delicados de búfala, cogumelos tenros ou presuntos com sobrenome, para comer devagar, meditando o gosto de cada coisa com todos os sentidos que me cabem. Mas cresci em Copacabana, cercado de casas de sucos e pizzarias do estilo carioca, como a Caravelle (peçam a de alho!), e me esbaldo igualmente porque são finas e queijudas, de massa mole e sem borda, assadas em forno sem lenha e desde sempre servidas com bisnagas de ketchup por perto. Pedindo ou preparando em casa, tentando consumir menos produtos ultraprocessados, é claro que dá para conter o hábito, usando um ketchup mais natural, sem aditivos, mas procuro manter o mesmo tom afetivo, porque é meu e me embala. Quem gosta de pizzas simples riscadas de vermelho e não quer se entupir de açúcar, sódio e conservantes pode procurar um produto mais puro, ou até pensar em fazer seu próprio. Só não deixe de usar porque paulistas disseram que não.
Na última viagem que fiz à Itália, por outro lado, ousei ao pedir um carbonara na Campania, na região de Nápoles, onde berinjelas e tomates têm bem mais vez que porcos e ovos. Fica um tanto mais ao sul de Roma, berço da receita original que pedi repetidamente, dias atrás, estando lá. Ignorei a força da tradição e paguei com a boca: a versão napolitana desse clássico romano foi um desastre desajeitado, feito sem hábito. Se ouvimos que gosto não se discute, podemos pensar que tradição se discute ainda menos, já que é a fixação do próprio gosto com a licença segura do tempo vivido. Em qualquer canto da Itália, tampouco oferecem queijo parmesão se sua massa for de frutos do mar. Já no Brasil, quem condena juntar uma coisa e outra ou é arrogante ou nunca provou um camusquim, comida de festa comum em Belém do Pará. A receita cremosa de macarrão com molho branco é feita com camarão salgado, cuja casca dá gosto ao leite, engrossado com Maizena como um mingau, enriquecido com manteiga, queijo ralado e pimenta preta — ou você acha que se fala de béchamel nas entranhas de cozinhas tão brasileiras assim? Depois, junta-se ao molho o camarão refogado com cebola, tomate, pimentão, muito coentro e despeja-se tudo numa travessa de macarrão já cozido. Uns minutos depois ele firma e fica quase de corte, e no dia seguinte, ainda mais durinho. Se italiano visse, morria, mas é comida de domingo, receita de família, enfeitada com azeitona verde, ervilha de lata e ovo cozido em rodelas, no maior capricho, com o maior amor do mundo. Como virar as costas para um prato como esses? Só tendo uma pedra de gelo no lugar do coração.
Ainda assim, a patrulha da boa mesa quer dizer aos quatro ventos que peixe não se come com vinho tinto, e que vinho só se toma em taça. Que café bom não se adoça, que macarrão com arroz e feijão é aberração. É raso, irresponsável e intolerante reduzir o ato de comer, tão natural, convivial e potente de afetos, a uma fileira besta de tabus. Não é assim que se abre caminhos, pisando na história e nos costumes das pessoas. Somos ímpares, singulares, cada um com sua complexidade gravada no peito ou guardada no bolso, e não podemos esquecer disso, deixando que façam nossas escolhas por nós. Eu mesmo já fui desses que torcia o nariz para o que não cabia na minha régua presunçosa. Já estranhei que o Pavão Azul chamasse de risoto seu arroz de camarão soltinho, laranjinha, só porque era feito de arroz branco, uma bobeira que não leva a nada. Faz muito mais sentido se adaptar, mesmo, do que fazer com arroz arbóreo, pesadão e cheio de amido, que nada tem a ver com uma calçada ensolarada de Copacabana. É como com o estrogonofe, que originalmente é de carne vermelha e nem levava creme de leite na versão russa, mas que penetrou nas classes médias daqui e logo virou de frango, e em alguns botequins de respeito, do que cabe na vida do povo do Brasil: estrogonofe de moela. Quando ganhei do meu pai o Café Bacural, torrado bem escuro, moído bem fino, vindo de uma vendinha de Irará, um interior árido da Bahia, sorri mil vezes mais que se fosse um microlote premiado, com embalagem de desenho minimalista e notas de caju. É mais amargo do que o café que gosto de beber todos os dias, mas tem sua cultura tão própria e seu público tão fiel que enxergo e respeito todo seu valor. Muitas verdades coexistem, e escolher um lado só é escolher uma vida muito boba, hermética e monotemática.
Não há um jeito certo, melhor ou ideal de comer e beber, mas há o jeito que veste melhor a vida de cada um. A questão é de gosto, mas sobretudo de um gosto imposto por um país majoritariamente pobre, onde a concentração de renda é inversamente proporcional ao número de barrigas que roncam vazias todos os dias. Cerca de 33 milhões delas, para ser mais exato, segundo a última pesquisa da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar), dado que não podemos parar de martelar, mesmo que pareçamos nós, os chatos. Também é crucial entendermos que se falamos disso tudo, do quanto especial pode ser um vinho, um queijo, um ketchup ou um café, ainda falamos do topo da pirâmide de quem pode escolher o que comer, mesmo que falemos na intenção de que todo mundo possa consumir produtos sadios, assim. É questão política e social de cada lugar, em cada tempo. É questão de poder.
De frente para a fome, não posso deixar de dizer que incensar produtos de baixa qualidade com a desculpa da crise, mas sem história nem sentimento, é um terreno movediço. Vem crescendo a moda de enfeitar produtos alimentícios problemáticos como o miojo, propondo receitas estrambólicas com eles, o que acredito ser quase grotesco. Assim, sem razão nem porquê, acaba-se influenciando o consumo de ultraprocessados sem sequer olhar as consequências que vêm no caminho. É claro que miojo pode ser gostoso, e meu pai fazia uma versão maravilhosa com requeijão e presunto picado em dias de despensa vazia, mas não deve ser a regra alimentar, e sim a exceção. Apesar disso, até miojo doce foi lançado nos últimos tempos, sabor beijinho, quase a versão radiativa do arroz doce que se fazia nas fazendas de antigamente. E por ser fácil e barato, faz com que a pergunta “posso comer miojo quantas vezes na semana?” some milhares de registros no Google, o que é alarmante se pensarmos na insegurança alimentar que assola nosso país. Por que distrair as pessoas com miojo se há tantas coisas mais legais para se ensinar sobre as cascas das batatas e bananas, as sementes das abóboras e os talos das folhosas todas? As empresas das embalagens sedutoras, compostos viciantes e prateleiras atraentes, explicam. Mas quem fica rico fabricando miojos, aposto meu dedo mindinho, não deixa miojo entrar na despensa de casa.
Defendo a manutenção das tradições de cada lugar e o esforço sensível para reescrevê-las, pouco a pouco, sob premissas mais saudáveis e sustentáveis por quem abraça a responsabilidade que é trabalhar escrevendo sobre comida, mas sem chatices. Dá para transicionar entre o pó artificial e o pé na terra sem traumas, com equilíbrio, sem constranger ou desbancar as escolhas de quem, por gosto, costume ou pura falta de escolha, amarrou ali sua preferência. No Marchezinho, quando bati os olhos no pastel de siri com queijo, novidade no cardápio, senti alívio. Tem tudo a ver com esse lugar que une e abraça mais que julga e ranqueia gentes e ingredientes. Salve gente assim, salve o Bob Esponja e o seu hambúrguer de siri com queijo no fundo do mar. Salve a liberdade, mas de mãos dadas com sua rima mais rica: a coletividade.
Ótimas reflexões Mateus. Acho até que poderiam ser dois textos . Sobre o que combinamos com o quê a regar é clara: se achou gostoso então a combinação está correta.Simples assim.
texto lindo!