Parecenças não faltam entre a cozinha feita em Portugal e no seio da minha família materna, fincada em Belém do Pará. Na véspera do último feriado fui tomado por uma saudade úmida de estar em bando, vivendo o caos escaldante, divino e maravilhoso de ter uma família grande nesse lugar maior ainda, no umbigo do Brasil. O gatilho foi a foto que minha tia Cinthia pôs no grupo da família. Não pensei duas vezes. Fisguei a falta com linha e anzol, decidido a replicar aquele prato, um clássico incontornável das nossas mesas em dias de festa.
Tens essa receita, tia? Ou fazes de olho?
Sou mesmo assim, bem antes de morar nesse pedaço estrangeiro do mundo: quando falo com o lado de lá tendo a misturar o linguajar, conjugando o tu do jeito normativo antigo, vivendo a segunda pessoa do singular. A presença lusa nos paraenses vai muito além dos nomes idênticos de cidades — Algodoal, Outeiro, Santarém, Bragança, Barcarena… —, do mesmo casario antigo e dos usos culinários parecidos, como os doces finos, peixes salgados e pratos de pato. Está, principalmente, no jeito de falar.
É uma receita simples, mas a técnica está na elaboração, pois são vários passos até sair do forno. Lá vai o passo a passo…
As outras duas tias se prontificaram:
É aquela nossa, Teco! Que era da mamãe, disse a tia Vera, nossa mais velha, que acabou de fazer 70.
Não tem mistério, é mesmo de olho. Te mando o passo a passo, disse a tia Eliane, a única loura.
Tia Cinthia foi escrevendo:
Passo 1: se o bacalhau for dessalgado, afervente em uma panela com água que cubra, mais 4 colheres de servir de sal. Levantou a fervura desligue o fogo e escorra para esfriar. Até o escorredor tem história: só escorro naquele que era da mamãe.
Sem tanto rigor, a loura disparou a enumerar:
Bacalhau dessalgado, de preferência
Tomate
Cebola, cheiro verde, pimentão de todas as cores
Leite de coco
Creme de leite
Azeite
Cinthia seguiu na linha:
Passo 2: desfie o bacalhau em lasca e retire as espinhas
A Bia, nora da tia Vera, há muitos anos na família, entendeu o clima e logo completou, provando com fotos:
Estamos em Salinas e aqui temos patinha de caranguejo e camarão. De sobremesa um bolinho de macaxeira que ainda tá no forno.
Parece que perguntar a receita tinha aberto um portal. Palavras com fio de navalha foram desafogando memórias contidas, jeitos de fazer e contar. Do costumeiro marasmo do grupo, de repente, todo mundo surgiu se pondo a dar suas versões, pitacos, cacos de lembranças. Aquele grupo da família com a foto de um tigre, onde há figurinhas diárias de bom dia, fake news, fotos antigas, desejos de parabéns e mensagens de todas as fés, o mesmo que se dividiu na época das eleições, juntou-se num só sentimento para reviver a receita do bacalhau de forno da minha avó Célia. Não pelo espírito de Páscoa. Por saudade da Célia Bela.
Cartesiana, Tia Vera entrou na explicação:
Ingredientes: Bacalhau, batata, pimentão verde/amarelo/vermelho; tomate, cebola, azeitona, ovos cozidos, coentro, azeite, creme de leite. Cortou a loura dizendo: não leva leite de coco.
Mas quem gosta coloca, tia Eliane retrucou. E retirou-se de cena, mandando uma foto do caranguejo catado que estava refogando. Muita gente no passo a passo! Vou almoçar.
Vera alfinetou: fica melhor sem o leite de coco, como manda a receita original.
A que a mamãe fazia era com leite de coco e creme de leite, ela não botava azeitona porque puxava no sal, lembra?, disse a tia Cinthia.
Tia Vera respondeu: Nada disso, ela fazia com azeitona e sem leite de coco. Não sei de onde vocês criaram esse com leite de coco.
Atravessei a rua e fui comprar o bacalhau. Deixei o celular em casa, a nostalgia instalada. Quando voltei, uma enchurrada de mensagens. O assunto rendeu.
Tia Vera continuava, mais específica:
Cozinha as batatas com casca, depois de cozidas tira a casca e corta em rodelas, reserva. Corta a cebola, tomate, pimentões, azeitonas e reserva separadamente. Cozinha os ovos, corta em rodelas e reserva.
Cinthia mandou os passos finais de uma vez só, com ponto e vírgula e tudo:
Passo 3: separe o bacalhau;
Passo 4: cozinhe as batatas e os ovos;
Passo 5: corte em rodelas a cebola, pimentões, tomates, cheiro verde picado;
Passo 6: pegue um pirex grande e monte o prato, azeite no fundo do pirex, cama de batatas, bacalhau, as rodelas de cebola, pimentão e tomates, cheiro verde, ovos em rodela e batata em fatia, nessa ordem. Faz outra camada até terminar, finalizando com outra cama de batata em rodela. Depois de cada camada montada regue com azeite. Finaliza regando com um vidro de leite de coco pequeno e 1 caixa de creme de leite. Leva ao forno para gratinar.
Tia Vera também:
Monta em um pirex grande com azeite no fundo e vai arrumando em camadas o bacalhau, a cebola, tomate, pimentões, azeitonas (pode ser preta ou verde), cheiro verde, as batatas, e os ovos, regando sempre com bastante azeite e creme de leite.
Tia Cinthia terminou listando os ingredientes e fazendo poesia:
1kg a 2kg de bacalhau
1 vidro de leite de coco, derramo 1 e meio às vezes
1 caixa de creme de leite
5 batatas cozidas
6 ovos cozidos
Tomate
Pimentão vermelho
Pimentão amarelo
Cebola roxa e branca
Cheiro verde picado
Azeite a gostoBom, eu gosto de seguir a tradição, sem muita firula. Eu ainda pego uma colher e vou penteando o creme de leite até ficar aquele lençol branco, nele que vamos acertar o ponto do gratinado 😉
Meu tio Júnior, o caçula, apareceu juntando mais um personagem no enredo:
A caldeirada do pai Cacá levava leite de coco?
Quem é pai Cacá?, perguntei.
Era o marido da vó Marina, irmã da mamãe, tia Vera disse.
Tia Eliane também: pai Cacá! Cunhado da mamãe, cozinheiro divino.
Tia Cinthia respondeu: Esse me ensinou a fazer caldeirada raiz, era sem leite de coco. Mas pai Cacá gostava do dendê, salvo engano.
Na moqueca, tia Eliane completou. Caçula, ainda tinha aquele bife de frigideira que ele fazia quando a gente voltava da quermesse. Ele deixava escondido no forno da vó Marina. Era frito com um ovo em cima, muito pai d’égua.
Eu faço e o Júnior também, era com ovo e ervilha. Júnior foi mais aprendiz dele do que eu, disse a tia Cinthia. Pai Cacá só usava tábua de madeira daquela bem pesada. Vó Ciloca me ensinou fazer galinha cabidela mas eu tenho nojo do sangue até hoje, mas a dela eu comia, depois que morreu nunca mais comi, não tem quem faça. Agora é o seguinte: ela só fazia com o sangue tirado na hora da galinha que ela mesma pegava do quintal dela.
O quintal lembrou o caçula do avô, marido da vó Ciloca, sogros da minha vó Célia:
Vô Serafim... meu avô inesquecível e amado. Mamãe era muito agarrada com ele. E ele com ela. Ele que pegava as galinhas, com tamanco de madeira. Raiz. Ficava de mutuca. Aprendi muito com a tia Wilma também. Ela fazia cada caldeirada no Outeiro... Filhote, pescada, dourada, pescadinha branca... Tudo direto da canoa.
Drica, a única ruiva, filha da tia Vera, é mais de fazer que de falar. Disse com uma foto: tinha a mesa posta com o bacalhau de forno da vó Célia luzindo. Ela também já incorporou a receita, e muito prática, faz tudo de olho, do fundo da alma. Não sabe a quantidade de nada nas coisas que faz, mas por mim, se esforçou ao explicar em palavras seu glorioso pernil.
Tá bonito filha, ficou bom?
Ficou ótimo, mãe, disse a Dri. A adaptação ficou maravilhosa e demora menos.
Qual, Drica?, perguntou a tia Cinthia.
Para abreviar o tempo do bacalhau no forno, respondeu, e mandou uma foto refogando as cebolas e pimentões.
Depois da digressão, minha mãe, a única de cabelos azuis, apareceu com a resposta do dilema que pairava no ar. Disse a verdade sobre o leite de coco no bacalhau, com jeito de cartada final:
O da mamãe levava sim um fio, lembro que perguntei pra ela: como é um fio? Ela me disse “faz um M”, colocou o dedo no vidro e derramou, fazendo um M no ar. Eu perguntei: mas nunca vi a senhora colocar (sim, naquela época chamávamos a mãe de senhora e tomávamos benção), ela me disse: “Quando o pirex é muito grande e só tem 1 lata de creme de leite e tem leite de coco em casa, coloco um fio”.
Véi [Vera] não lembra, pois já estava casada e morando no Jardim Tropical, Beloca [Cinthia] também. Eu casei, separei e voltei pra casa na Pedro Miranda e Lika [Eliane] não ia muito na cozinha pois já trabalhava muito, mas lembra do sabor e de comentarmos isto, por isso, no dela, sempre coloca leite de coco.
Voltar pra casa depois de separada e acompanhar já adulta mamãe na cozinha selou minha convicção de que cozinha é intuitiva sim! Drica mesmo sem saber exatamente destas histórias na Pedro Miranda era pequena mas carrega esta bagagem da avó no inconsciente, não segue receitas, só cozinha no olhômetro, é uma cozinheira de mão cheia e a maior representante da cozinha intuitiva da mamãe.
Me peguei pensando se ela dizia que era um M porque quem perguntava era minha mãe, Marisa. Provavelmente, diria que fazia um C se fosse a Cinthia. Um E se fosse Eliane. Um V se fosse a Vera.
Na manhã seguinte, o caçula:
De tanto a gente falar... sonhei com o pai Cacá. Ele me perguntou se eu sabia como tirar a areia do mexilhão. Vocês sabem? A mamãe tinha uma técnica... Tirava um por um. E um fio que tem dentro dele. Depois lavava, aferventava, lavava de novo e só depois refogava.
Tomamos um banho das ervas que recebemos no terreiro. Entramos na cozinha, onde passamos a maior parte do tempo, não só nos feriados. Regulamos a quantidade dos ingredientes porque aqui somos só dois. Sou de seguir receitas à risca para não me frustrar depois com um final inesperado, mas meu marido é o avesso. Adaptamos algumas coisinhas e tudo fluiu naturalmente como a senhora faria: mais ou menos de olho, com o que desse e houvesse. Embora chovesse lá fora, aqui dentro de casa fez um dia de sol azul. Seu bacalhau deu certo, vó.
De algum modo, a própria repetição dessa receita por tantos anos também carregava um ar de êxito e realização pessoal: queria dizer que a nossa família tinha vencido para os padrões daquele tempo. Por meio da educação, da certeza de seu poder como forma de superar as desigualdades, conseguimos, nós próprios, melhorar de vida. Poder comer bacalhau, ainda que só em dias especiais como os feriados, significou isso para nós. Sua vida deu certo porque sua presença segue acesa, vestida de branco, guiando nossos passos como um farol. Ligando pontos, construindo pontes e sentidos dentro de cada um de nós.
— E tu, querida, recebe um beijo bem grande da mãe que te adora e não te esquece um minuto. Célia.
Domingo é dia de ler e se emocionar com tua escrita talentosa e poética, nos faz sentir o que é cozinha afetiva e ancestralidade, família e tudo o que somos passa pelo que eles já foram um dia. Te amo ❤️
Poesia pura esse texto. Cozinha afetiva aquecendo corações.