Nos dias bons e produtivos (porque há outros em que nem os bons cafés ajudam), escrevo na companhia dos coados que preparo, cafés especiais torrados por empresas pequenas, em quem confio. Acho singelo o ritual que me ajuda a mergulhar nos dias. Talvez por isso, pela singeleza do hábito, ainda prepare meus cafés no bom e velho melitão, o suporte cônico de plástico vermelho Melitta, à venda em qualquer supermercado, como boa parte dos brasileiros faz. E do jeito mais prosaico possível, sem muita firula, sem escaldar o filtro de papel ou moer os grãos na hora, ao contrário do que aprendi ser o certo. Quando me deparei pela primeira vez com o universo do café especial tive medo. Como qualquer novidade que cai na graça do mundo (principalmente quando vem dos Estados Unidos, onde surgiu grande parte desse movimento), essa também dobrou a esquina do preciosismo, virando um desfile meio burocrático de regras e etiquetas, de muito mais nãos do que sins. Bicando e pensando, percebo que os motivos que atrasam a difusão do café especial por aqui são vários e dos mais distintos. Vão do preço final dos grãos, que não é baixo se comparado aos cafés comerciais, à empáfia de alguns baristas* que não olham seus clientes nos olhos, e nada ajudam a causa. Logo eles, os únicos da cadeia inteira que podem.
No Takko Café, em São Paulo, por exemplo, onde se servem alguns dos melhores cafés da cidade, o atendimento costuma ser frio, quase esnobe, sobretudo se quem te atende não se parece com você. Apesar do pão de queijo exemplar, do cookie divino de chocolate escuro com flor de sal (e muito embora eu sempre venha com bons pacotes para o Rio, torrados pela Juliana Ganan, da Tocaya), tenho certa preguiça em voltar. Como muitos outros (e Suzana Vieira), não têm paciência para quem está começando. Um baita de um contrassenso. Gentileza e acolhimento nunca caem mal, ainda mais nesse ramo, e mais ainda com esse tipo de produto nas mãos. (Quem sabe e não compartilha, no café e na vida, para mim é mané.)
Antes de tudo, e para que a empáfia não seja minha, é preciso aclarar o que é, afinal, café especial. À rigor, são aqueles que ganham 80 ou mais pontos na análise sensorial sob a cartilha da SCA, a Specialty Coffee Association, organização que certifica essa história toda desde os anos 1980. A partir de uma amostra torrada, são ranqueados de acordo com a qualidade técnica do grão, seu potencial de ser inesquecível e seus possíveis defeitos, que podem desafinar a xícara com escalas de amargor, gostos e cheiros indesejados, como o de borracha e o de cinza de cigarro, comuns nos cafés industriais. Na prática, entretanto, café especial quer dizer bem mais: é também um acordo tácito e necessário entre quem planta, quem torra, quem prepara e quem bebe; uma bandeira que pede por relações comerciais mais humanas, éticas e respeitosas, em que se paga o preço justo pela saca e se negocia direto com o produtor, não com atravessadores ou cooperativas, que só precarizam a ponta mais fraca.
Falar de café especial é também falar da troca de saberes entre torrador e cafeicultor. Do olhar às regiões menores, às variedades diferentes (algumas até raras), da seriedade na sustentabilidade do cultivo, da lida em terrenos hostis, difíceis de se trabalhar e, no fim disso tudo, de cafés fáceis de mexer com nosso juízo. São bebidas cheias de alma, uma farra para os sentidos, capazes de recriar um pudim de leite inteiro, um buquê de flores específicas, um abacaxi maduro ou um punhado de avelãs dentro de uma caneca qualquer, num simples café passado. Além de carregadas de novos significados, já que a marca escravagista que a lavoura do café ainda representa no país amargou fundo a formação da nossa sociedade. Parece irônico, mas o amargor marcante do cafezinho do Brasil é legítimo, pois é de fato amarga a chaga aberta que sua velha cadeia ainda carrega, adepta de práticas cruéis com a terra e com quem nela trabalha. (Para quem quiser abrir essa gaveta, a Isabella Raposeiras, dona do Coffee Lab, minha cafeteria favorita em São Paulo e, de longe, quem mais sabe sobre o assunto no país, deu uma palestra genial sobre o café especial brasileiro aqui; sempre choro com esse final.)
Talvez por saber que essa transição é urgente — e em nível humano, social, político e ambiental —, tenha achado genial batizarem de Pretão um ótimo café especial da Serra do Caparaó, no Espírito Santo, mas com perfil de torra escura, ao gosto do brasileiro, quase um desmame do café industrial. E torrado em Paraty, pela Montañita Cafés Especiais, da Nerita e do Juan Oeiras, cafeteria das boas que tem suas sacas entregues por charretes, já que elas são os únicos veículos permitidos no Centro Histórico tombado, vestido da luz amarela das lamparinas. Anos antes de conhecer a cidade, vi se repetir a mesma história em Florença, na Itália: o trote de uma carroça puxada por um cavalo forte que levava uma pilha de feno e duas sacas de café. Reconheci as três folhas verdes curvadas e as bolotas vermelhas da fruta, talvez a que melhor represente nosso país lá fora, serigrafadas no saco de juta. Era café brasileiro, e desconfiei que a epifania, que parecia cena de filme, devia ser o sinal divino que costumava vir depois de alguns copos do vinho local, o Chianti. No dia seguinte, começaria um curso de barista no subsolo de uma torrefação tradicional da região, a Mokaflor, fundada em 1950, onde tive o privilégio de investir minhas férias naquele ano. A carroça devia estar rumando pra lá.
Peguei dois ônibus errados antes de decidir alugar uma dessas bicicletas para ir ao primeiro dia de aula, mas não liguei. Tinha saído adiantado, e um deles me levou direto àqueles momentos que se fossem palavra, seriam dignos de tatuagem. Saltei em frente a uma padaria de esquina, não resisti e entrei: pedi o bocado mais simples e barato da vitrine, um sanduíche de focaccia com rodelas grossas de tomate e um naco gelado da autêntica mozzarella italiana, etérea e desmanchante como nenhuma que veio antes ou depois dela. Ouvia Paquita La Del Barrio no caminho, e enquanto estacionava a bicicleta, senti de longe o cheiro do café torrando.
O projeto se chama Espresso Academy, e oferece um curso intensivo de uma semana para turistas, em inglês. Não pretendia sair um barista de lá, só queria entender mais de café, e nunca ganhei tanta atenção por ser brasileiro como nesses dias. Queriam saber tudo: como bebíamos café, se conhecia tal cafeteria, produtor, variedade ou região. Se botávamos açúcar. Foi bonito de ver, e faz sentido, já que somos os maiores exportadores do mundo e, por lá, o acesso ao melhor do nosso café especial é vasto. Nossos lotes mais bem avaliados estão mesmo fora, para onde viajam verdes, são torrados e então vendidos ou preparados em balcões de gente sortuda, sobretudo no Japão e nos Estados Unidos. Apesar de saber que não provamos nosso melhor produto, o que diz muito sobre quem somos, senti orgulho imenso em ser daqui, em tomar e falar do nosso café.
Lembro de respirar aliviado ao saber, em uma das aulas que tive sobre os métodos de preparo, que o primeiro porta-filtro cônico de café tinha sido inventado e patenteado por Melitta Bentz, uma dona de casa alemã, em 1908. A japonesa Hario, com seu badalado V60, veio só um pouquinho depois, em 2005. Segundo Helena Oliviero, barista premiada que demonstrava cada método com paixão e sotaque italiano carregado, enquanto a Melitta se popularizou, a Hario investiu com vigor em pesquisa, marketing e design. Era o fluxo mais rápido da água no Hario, que tem um buraco mais largo na ponta do cone, que favorecia a extração de compostos mais complexos de certos cafés excepcionais, rendendo um aroma mais limpo e elegantão. Mas a verdade sobre café ou qualquer outra coisa é que não há certo e errado. Há o que se gosta, ou no Brasil, o que se pode, já que milhões não têm dinheiro para bancar nem o mais modesto pacote de café. Saí daquela semana de dedos queimados de tanto tirar espressos, as veias cheias de macarrão e cafeína, matutando os jeitos de substituir na vida das pessoas o café industrial, esse pó desalmado encerrado em tijolos a vácuo.
Onde comprar e tomar?
No Rio, há belos cafés especiais na Slow Bakery, com lojas em Ipanema, Jardim Botânico, Botafogo e, em breve, no Leblon. No Café Ao Leu, em Copacabana, na Fabro, na Barra da Tijuca, no Lilia Café, dentro do CCBB, no Centro. A Five Roasters entrega em casa os cafés que serve no Coffee Five, na meiuca do Centro da cidade, e a Fuzz torra e entrega ótimos cafés especiais com preço abaixo do mercado. Em São Paulo, no Coffee Lab e no Pato Rei, em Pinheiros, no Cupping, na Vila Madalena, no Um Coffee Co., em vários endereços, e no Takko Café, na Vila Buarque.
Não tem moedor ou chaleira de bico fino?
Não faz mal — o importante é começar, pouco a pouco, a provar grãos de qualidade melhor, de produtores menores, que tenham nome e sobrenome. Sei que não se pode esperar que quem passou a vida tomando Pilão (ou qualquer extraforte que o valha) ache que um café translúcido, avermelhado e com muito mais acidez que amargor não passe de um franzino chafé. Antes de me abrir para eles e deixar que os cafés também se mostrassem, até testar, mudar e provar a beleza que são, também já torci o nariz. Foi exatamente assim com o vinho natural: descobri que eles é que eram vinho, não o que eu conhecia. O mesmo vale aqui — o café e o vinho de verdade são bebidas digestas, que descem melhor, caem bem no corpo da gente. São vinhos que dão menos ressaca, cafés que não fazem o estômago arder. Faça seu café como puder, gostar e quiser. É café, ué.
*Existe uma problemática densa que enovela o trabalho do barista no Brasil, exposta pela Flavia Schiochet, companheira de profissão e de veículo com sua ótima newsletter, Fogo Baixo, em um texto recheado de dados e perspectivas preocupantes sobre essa fatia do mercado
Quando falo de café ou qualquer outra cultura, só consigo pensar que ser orgânico ou estar no guarda-chuva sustentável, sem veneno, é o único caminho possível para nós e o planeta. Por isso, conversei com dois produtores de cafés especiais da Serra da Mantiqueira cultivados com as mãos e adubados com o que a natureza dá — o Tuca Minêro, da Uca Café Orgânico Especial, e a Luciene Mota, do Luci Café Orgânico. No fim, na xícara, não são só café. Nesta quinta-feira, no texto enviado para assinantes pagos.
Obrigada pela menção, Mateus! Conheci sua newsletter agora e estou adorando. Quero ler tudo!
Queridooo💫
Sem dúvidas, uma “viagem” esplêndida🤗 ☕️ ♥️💫
Parabéns🎖