Foi em janeiro que vivi uma cena luminosa do cotidiano, daquelas digna de filme, impossíveis de não se notar, e que não me saiu da cabeça até que escrevesse esse texto. Estava na banca de ervas da Mônica, erveira da qual sou freguês para qualquer vontade verde, e que arma seu jardim ambulante cheio de folhas cheirosas e viçosas na esquina das ruas Leopoldo Miguez e Bolívar, em Copacabana, com ervas frescas vindas do Mercadão de Madureira, de segunda a sábado. Escolhia alguns matos de banhar enquanto uma moça se aproximou e perguntou: "Cê tem folha de carambola? Ouvi dizer que o chá é bom pra diabetes”. Mônica riu de canto de boca, olhou para cima, puxou um galho e disse: "É essa aqui, pode pegar quantas folhas quiser." Quem diria que é justamente sob a sombra de uma caramboleira frondosa que Mônica trabalha todos os dias? Uma coincidência doce, com cheiro de fruta em flor, já que a árvore estava lá ainda florindo, mas tinha uma provinha viva de que se tratava mesmo de um pé de carambola: uma fruta mínima, carambolinha, pendurada como um brinco, que acomodei na palma da mão, com pena de puxar. Um acaso embalado pelo vento, um caso ancestral entre mulheres brasileiras, as folhas e os rituais de cura. Não acreditei que havia um caramboleiro ali, desavisado, bem no meio de Copacabana.
Há os casos de fruta evidente e exibida, como o do jambo em certas ruas que sabem de sua presença porque o próprio jambeiro se encarrega de gritá-la em voz alta, rolando seu tapete rosa-choque asfalto afora. Ou a jabuticabeira, que explode primeiro em florezinhas brancas, depois de bolotas bem pretas agarradas ao seu tronco liso e malhado. Mas são casos de histórias mais discretas que me põem sempre a pensar o quanto de fruta está aí nas ruas, desabrochando de graça ao capricho da cidade e de alguns transeuntes mais atentos. Gente sensível que olha para cima já tentou criar projetos para mapear as árvores frutíferas do Rio, mas nenhum ganhou força para se manter de pé. O Pomar no Asfalto, por exemplo, começou no Grajaú, bairro vizinho da Tijuca, na Zona Norte, e pelo menos lá, conseguiu uma façanha bonita de se ver: mapearam dezenas de frutíferas pelos bairros das redondezas para quem quisesse passar por lá, e com sorte, sacudir, cutucar ou apanhar sua própria fruta, cria legítima de um milagre urbano. Tem goiaba, abacate, mamão, manga, araçá, graviola, caju, jambos e elas, as carambolas, estrelas desse texto.
Já com a pulga da carambola atrás da orelha, tropecei em outro acaso: no último domingo, dia de sol em São Paulo, pedi a sidra da Tão Longe Tão Perto, projeto de vinhos sem frescura da sommelière Gabi Monteleone, e quando recebi, descobri que era de maçã com carambolas. É claro que sorri, bebi, gostei. Azedinha, turva, seca e refrescante, com bolhas finas e feita naturalmente, sem aditivos nem conservantes. É uma colaboração que junta a base fermentada de carambolas da Cia dos Fermentados, gente muito competente quando o assunto é qualquer coisa que envolva fermentação, e a sidra de maçãs da Vivente, produtora de bons vinhos naturais brasileiros. Vão dois terços da sidra de maçã e o restante do fermentado de carambola, que fica duas semanas de macerando com as cascas e sementes, como um vinho laranja, coisa que deixa a sidra travosa que nem fruta mordida, mesmo.
Carambola não é uma fruta comum. Não se acha em qualquer canto, dela mal se faz sorvete ou suco. Não é nativa daqui (vem da Ásia), é fruta de época quente, o que costuma dizer qualquer época em muitos brasis, de cor que se confunde entre verdes, amarelos e laranjas, todos lindos, claros e profundos. E pintas. São todas sarapintadas, diferentes uma das outras, como toda boa fruta de verdade que pende acima do chão, singular como impressão digital. Seu nome é verborrágico em si próprio, faz salivar só de dizer, gostoso de articular, falar ligeiro ou devagar: carambola. A caramboleira, sua mãe, tem som de caramba, de bola, bolero, a dança, e de boleira, a moça que faz bolos. Mas melhor que seu nome, seu gosto e seu formato estrelado cinematográfico é seu cheiro particular, que invade tudo.
Sempre que vejo carambolas viajo no tempo. Mais precisamente para a casa da dona Lourdes, mãe do meu padrinho. Se chamava Paulo Afonso, nascido em Paulo Afonso, na Bahia. Um câncer de pulmão roubou sua vida quando eu tinha 11 anos, fim que me fez passar o dia na cama em posição fetal, chorando esse corte seco, talvez o primeiro que me abateu. Sua voz era rouca e mansa, seu olhar terno e sereno, seu senso de humor ácido e generoso, e sua missão, na minha cabeça infantil, era fazer quem amava feliz. Sua mãe, Dona Lourdes, tinha um caramboleiro enorme e frondoso, que nas minhas poucas visitas à sua casa estava sempre carregado delas, tão lindas que pareciam enfeites de natal pendurados nas pontas dos galhos alvoroçados. Era parar na calçada esperando que alguém abrisse a porta que o cheiro já anunciava a fruta, se insinuava mais bonito que todos os outros cheiros das frutas do pomar, e que não eram poucas. O cheiro das carambolas era carregado por qualquer cauda de vento que passasse, e escorria invisível se espalhando por cada brecha de ar. Não me lembro de quase nada daquela casa, mas do cheiro que sinto de olhos fechados e parecia um perfume espirrado permanentemente no ar, suave e insistente. Enquanto escrevo, como uma carambola fatiada fininha, bem pura, sem qualquer resquício de acidez, só doçura e lembrança. Um estalo de saudade estrelada em cinco pontas.
Tudo que @mateushbib escreve me emociona, olhar aguçado e escrita sensível carregada de poesia como o pé de carambola da casa da mãe do dindo …””saudade estrelada em cinco pontas
Que sorte a minha ter crescido com uma caramboleira no quintal, elas eram doces e lembro muito de fazer da sua árvore meu esconderijo, subia e perdia a hora por lá sonhando, observando, comendo os frutos, que saudades! Lembro também que minha mãe fazia uns doces de estrela, como chamávamos eu e meus irmãos,por causa do formato delas ao serem cortados, era uma compota, coisas que minha mãe fazia para ter um docinho em casa. Outra lembrança que tenho é de um macaco chamado Sassá que fazia uma farra com os frutos e que muito implicava comigo, quando nos encontravamos pelas galhas da caramboleira. Obrigada me trazer tantas lembranças Mateus 💜