Pouco convivi com pessoas negras nas escolas particulares que frequentei. João Victor, Poliana e Potira eram os únicos na minha lembrança, todos da mesma turma que eu nos anos em que morei em Salvador, mesmo sendo essa a capital mais negra do país. Na universidade, sim. Graças à Lei de Cotas, que completa uma década de vigência frutífera nesse mês de agosto vindouro, tive ao meu redor um ambiente acadêmico muito diverso, com a sorte de ter companheiros de turma e professores negros que ressoavam com muita força suas existências sobre toda nossa formação enquanto profissionais e sujeitos. Vi o Brasil que gostaria de viver ali, num ambiente livre e libertador, onde vidas e vozes negras importavam de verdade, onde pessoas negras não estavam apenas cuidando da limpeza ou servindo o cafezinho.
São poucas as certezas que tenho na vida, mas essa é uma delas: o quanto o sistema de cotas é edificante e precisa ser lembrado, discutido e celebrado sempre, já que é o tipo da ação afirmativa responsável por uma mudança realmente substancial no rumo do nosso país, capaz de reescrever o destino de um número gigantesco de vidas negras. O caminho é a reparação das desigualdades históricas inauguradas no processo de escravização de pessoas, prática nefasta que tristemente nos forjou como país. A fome, a pobreza e a população carcerária do Brasil são negras, e não por destino ou coincidência, mas porque um grupo decidiu que deveria ser assim. Temos responsabilidade, os brancos, e não é pouca.
Quando chego em qualquer restaurante no Brasil, logo faço um raio-x para ver quantas pessoas negras estão no salão como clientes ou trabalhando em posições de liderança, como gerentes, maîtres e sommeliers, não escondidos atrás das pias ou como assistentes de serviços gerais. Na maioria dos casos, a conclusão é a mesma: os que comem e bebem sentados são brancos, e esse espaço segue interdito às pessoas de pele escura simplesmente pela confirmação da nossa História escravocrata, um pacto renovado diariamente a cada tiro, a cada voto, a cada corpo preto alvejado que morre de racismo. Seria justo que houvesse mais negros que brancos em todos os lugares por uma simples conta de padaria, já que há mais negros que brancos no país. Mas há uma concentração sistemática de pretos nos extratos mais precários da sociedade, enquanto uma maioria de brancos em todas as outras. Mais rico, mais clara a pele; mais escura, mais dura a pena.
Outro dia, espiando longamente pela vitrine de uma joalheria famosa de Ipanema, vi a cena que deve se repetir em todas as outras dos bairros ricos do Brasil: gente branca comprando joias caras pelas mãos de vendedores igualmente brancos. Só para que a marca fique bem na fita, a modelo da campanha que estampava a nova coleção era negra, mas por ali, negros em posição importante, só na foto. Na vida real, um homem preto que não deve ganhar um décimo do mais modesto brinquinho da loja é o guarda-costas, de braços cruzados diante da porta imensa de vidro impecavelmente limpo. Uma mulher negra, que deve ganhar ainda menos, só entra em cena para levar o café ao casal de compradores, e de cabeça baixa, onde só deve ser permitida dizer "açúcar ou adoçante” se muito, curvando seu corpo como quem não costuma ser visto. Um nó permanente na garganta. Não consigo mais engolir esse tipo de cena sem murchar.
Só murchar, contudo, também não é o suficiente. Até porque continuo branco, jogando fora a nota fiscal de tudo o que compro sem me preocupar, sem nunca ter ganhado um olhar torto, nem tido a bolsa revistada, sem nunca ter visto ninguém atravessar a rua diante da minha presença. Se brancos como eu não nos comprometermos com a luta antirracista, primeiro por meio do reconhecimento de todos nossos privilégios, depois por ações diárias, efetivas e educativas, deixamos de ajudar uma luta que também é nossa, causada e perpetuada por gente como nós. Precisamos entender que não, não somos verdadeiramente iguais.
No Brasil, a cor da nossa pele já nos destina a horizontes bem distintos: um, o da abundância e da facilidade de tudo, da possibilidade de ser quem se quiser, do conhecimento claro do nosso passado. O outro, da falta e da sombra, do apagamento e silenciamento de tudo o que veio antes, de um esforço sobre-humano para simplesmente existir. Precisamos entender de uma vez por todas que meritocracia é papo furado de quem não quer se demorar na compreensão das coisas: como falar de merecimento quando partimos de bases tão desiguais? Como alguém que nasceu e viveu à margem pode competir em pé de igualdade com alguém que já nasceu aceito, validado, amparado pela sociedade? Enquanto uns podem ter sede de sucesso, outros só tem fome de tudo, e se não mudamos todos juntos, se continuarmos a flertar com a colonialidade como forma de organização social, não há espaço viável para qualquer oportunidade de avanço. "O pacto da branquitude", da psicóloga e pesquisadora Cida Bento, me ajudou muito a entender sobre tudo isso, assim como sua entrevista histórica e esclarecedora no Roda Viva, que recomendo muito que seja vista e revista.
A racionalidade que explica o suposto sistema meritocrático não considera ainda o impacto de histórias e heranças diferentes na vida contemporânea dos grupos, tais como qualidade de escolas frequentadas, disponibilidade de equipamentos e acesso à internet nos ambientes familiares e escolares, ao sistema de saúde, de saneamento básico nos locais de moradia etc.
Cida Bento em “O pacto da branquitude”
Gosto de frequentar e recomendar lugares que tenham como missão colocar gente negra na linha de frente, fora e dentro da cozinha. Lugares que existem além do negócio, mas também politicamente. Acabei de sair de São Paulo de alma lavada ao ver a cultura negra inundar a cidade de arte urbana e guiar negócios relevantes e vanguardistas: no Cora, num terraço no Centro da cidade, fui recebido por lambe-lambes que falavam da importância de um voto antirracista, e atendido pelo Marcus e pelo Sérgio, de tranças nos cabelos e risos largos nos rostos. Sentado em cadeiras cor de goiaba mirando uma parte cinza da cidade, provei produtos da época de uma cozinha precisa, e um serviço de salão mais ainda.
Na estrada do Rio para São Paulo, me deparei com o incômodo agigantado que é a Havan, loja de departamentos assumidamente bolsonarista, encarnada na forma torta de um templo grego branquíssimo, um extraterrestre dissonante no meio das estradas empoeiradas margeadas de pobreza que cortam o Brasil. Acima da porta de entrada, um cartaz retrata a foto de uma família, a mesma que o conservadorismo quer que acreditemos que seja a família tradicional brasileira: toda loura e branca, heterossexual, feliz e despreocupada, já que o trânsito é livre num país onde são eles os que mais têm vez. No Alto de Pinheiros, a bizarrice tomou forma de um restaurante chamado Senzala, só com carrões importados de luxo parados na porta, um retrato insensível que é a cara da nossa elite escravocrata, que banaliza e naturaliza as marcas da escravidão, que para elas não é motivo de comoção, mas de escárnio.
Para não perder o brilho no olhar, bastou que me lembrasse de Salvador, no mês passado, quando fui à feira do Largo Dois de Julho, e diante de tantas barracas luminosas tomando as formas de tantos brasis, escolhi a da Dona Rosa, mulher negra sempre de saia e lenço na cabeça conhecida pelos aipins bem escolhidos, pelas pimentas e molhos de pimenta que faz. Dona Rosa representa um mundo de muitas outras que são como ela, mulheres negras donas de saberes tradicionais, mães de misturas únicas, feitas a partir de transmissões de um conhecimento ancestral por suas mães e avós, afrobrasilidade pura.
O destino me trouxe pra cá, trabalho com aipim descascado, pimenta, conservas e feijoada todo domingo na panela de barro, na praça ali embaixo. Moro perto do Castro Alves na subida para o Garcia, junto do teatro, morada boa, o canto dos pássaros é que acorda a gente, uma maravilha. Nasci e me criei na roça, meu pai era lavrador de aipim, cresci no meio de casa de farinha em Jacobina, aqui mesmo na Bahia. Sei quanto tempo para gerar uma mandioca para fazer farinha. A platina, boa para fazer farinha, demora pelo menos um ano para apanhar, é a mandioca mais resistente e a que mais rende. Aqui na feira sou a tia do aipim, da pimenta, do feijão e da feijoada, há mais de 10 anos. E das coisas que vou criando e pondo nas garrafas. Cenoura com cebola no vinagre, cachaça com laranja e alecrim, pimenta com pimentão verde fatiado... Eu vou inventando e o povo vai gostando.
— Dona Rosa, feirante do Largo Dois de Julho, em Salvador
Se quisermos mudar o que aí está, temos que fazer isso juntos, todos, todos os dias, os de todas as cores, mas sobretudo os brancos. Temos muito a reconhecer se quisermos um mundo realmente diferente. A pressão do público, dos ativismos e movimentos sociais, gerados nas ruas e hoje também nas mídias digitais, são indispensáveis para que esse abismo continue sendo um espinho, incômodo e provocativo, até que deixe de sê-lo e desponte, finalmente, em flor. Ser aliado da luta é lutar junto, mudar atitudes, não é só compartilhar no Instagram.
Se não regarmos discussões assim, se não plantarmos tantas interrogações, nada de promissor e humano vai brotar. É a branquitude, uma minoria maiorizada pela perpetuação de um passado colonial que já não nos serve mais, que tem de se responsabilizar pelo peso do racismo e suas consequências. Introduzir o assunto, debater, propor, provocar e se mexer. Agitar e agir. Mudar.
Como mudar? (Não que seja uma receita de bolo)
Podemos começar analisando criticamente o que consumimos em todas as frentes: comerciais de tevê, filmes, outdoors, jornais, revistas, produtores de conteúdo digital… No campo da alimentação mais especificamente, lendo criticamente as obras e autores que são referência no Brasil, coincidentemente, de homens brancos como Luís da Câmara Cascudo, Carlos Alberto Dória, Massimo Montanari e Michael Pollan. Por que não recomendam a leitura de Manuel Querino? Esse sim, homem negro, baiano de Santo Amaro, pensador abolicionista que foi um dos primeiros a falar da contribuição africana na cultura brasileira, a partir de sua própria perspectiva sobre a noção afrodiaspórica da cozinha feita no Brasil. Mas quantos conhecidos nossos já leram ou festejaram Manuel Querino por aí? Pois é.
Lendo o portais negros como o pioneiro Geledés, reconhecendo movimentos e iniciativas negras de todos propósitos e proporções, do Instituto Marielle Franco (que também pode ser apoiado financeiramente) à Confraria das Pretas, grupo de mulheres negras que se junta para tomar vinho e falar sobre ancestralidade. Falar de afroempreedendorismo, apoiar empresas negras como o Dida Bar, o Yayá Comidaria Pop, o Afro Gourmet, a Casa Omolokum, a Modash e a Feira Crespa, isso só para falar do meu quintal, o Rio de Janeiro. Falar deles é falar também de aquilombamento, da formação de teias sustentadas pela resistência.
Lendo Sueli Carneiro, Abdias do Nascimento, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Chimamanda Ngozi Adichie, Cidinha da Silva, Beatriz Nascimento, Silvio Almeida. Seguindo e lendo Djamila Ribeiro, Joice Berth, Carla Akotirene, Fatou Ndiaye, Elisa Lucinda, Maria Clara Araujo, Lourence Alves, Aline Chermoula, Patty Durães, Andressa Cabral, Carmem Virginia e tantas outras mestras. Apoiando mulheres negras na ciência, escolhendo professoras negras para orientar trabalhos acadêmicos, procurando uma médica negra para se consultar em vez de um médico branco, aos quais oportunidades nunca faltarão.
A noite está tépida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exótica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido. […] A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago. […] Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados. Eu era revoltada, não acreditava em ninguém. Odiava os políticos e os patrões, porque o meu sonho era escrever e o pobre não pode ter ideal nobre. Eu sabia que ia angariar inimigos, porque ninguém está habituado a esse tipo de literatura. Seja o que Deus quiser. Eu escrevi a realidade.
Trechos de “Quarto de despejo: diário de uma favelada", um dos meus livros favoritos, de Carolina Maria de Jesus
Se conectando com a própria cultura africana e afrobrasileira, entendendo porque o acarajé se faz como faz, incorporando ar à massa; escolhendo uma receita da Nigéria para fazer no domingo, em vez de mais uma receita italiana. Escolhendo se aprofundar nos estudos de afrobrasilidades, se inscrevendo em cursos como “Muito além da boca: um passeio transatlântico pela cozinha afrodiaspórica no Brasil”, cem por centro gratuito e com um timaço diverso de professoras, que maratonei nos últimos dias. Entendendo que falar de afrobrasilidade no Brasil é falar de um recorte potente e intrinsicamente feminino.
Consumindo as artes plásticas de artistas negros como Maria Auxiliadora, Maxwell Alexandre, Rainha F, Aline Bispo, Roque Boa Morte. Ouvindo o samba de Jovelina Pérola Negra, Clementina de Jesus e Elza Soares, mas também às vozes da nova geração de mulheres negras como a Kynnie, minha amiga de adolescência que sempre vi brilhar e agora reluz para ainda mais gente, vigorosa e coerente com suas próprias verdades. Artistas assim são muito mais que só seus próprios futuros, mas inspiram crianças negras a entenderem que também podem estar lá, nos palcos da vida, falando de tudo, festejados e aceitos. Dando oportunidades reais para que essas pessoas ocupem novos lugares, não os mesmos praticados até aqui.
Enxergando e respeitando as religiões que não são cristãs como as trazidas pelo invasores portugueses, mas também as de matrizes africana e indígena como a umbanda, o candomblé, o xamanismo e os politeísmos, entendendo tudo isso como muito mais brasileiro e original que os ritos de um Deus onipotente, homem e branco, vindo de além-mar. Pensando na entonação que se usa quando se fala da palavra macumba, rompendo com a maneira cabreira com que nos relacionamos com essas culturas para entender seu valor, entender que elas são o sagrado de alguém. Ensinando nossas crianças a tocar berimbau em vez de piano, a fazer capoeira em vez de judô ou krav magá, falando de personalidades negras, lendo histórias infantis com protagonistas pretos, dando bonecas que não sejam só as brancas e louras de olhos azuis. Nós, jornalistas, nos esforçando para manter um repertório de fontes cada vez menos embranquecido, nos desafiando a abranger as cores das vozes que veiculamos como uma amostra real do país que temos, e mais que isso, do país que queremos construir.
maravilhoso
Que texto maravilhoso. Chegando pela indicação na news flows magazine. Já assinando aqui. :)