Morei grande parte da minha vida em um desses apartamentos antigos e espaçosos de Copacabana, e nossa família sempre foi gregária. Muitos verões assistiram aos galetos de domingo, rabadas e feijoadas desavisadas, arrumadas de uma outra para outra, além de aniversários, batizados, formaturas e qualquer tipo de reunião que envolvesse cerveja de garrafa, chão sujo de tanto pisar e cozinha farta de comida e gente falando alto. Eu e meu irmão tínhamos quartos separados, mas colados, e seguimos a tradição da família no tino para os pequenos encontros. Segui, sobretudo. Durante a infância e a adolescência, com a virtude da casa grande e dos pais liberais, levava os grupos de amigos para dormir nos fins de semana, fazíamos bolo e brigadeiro, estourávamos pipoca na panela. Na hora de dormir, alta madrugada quase de manhã, disputávamos os colchonetes, encaixados no chão do quarto pequeno como num jogo de tetris, vivendo a impreocupação dos nossos privilégios, entre eles o de ter a pele clara, o almoço pronto, nenhuma conta para pagar. Entre descobertas, amores platônicos e laços inquebráveis de amizade, tudo se convertia em gargalhada, mesmo nas bagunças mais bagunçadas, mesmo nas receitas que davam errado.
Fui o tipo de criança artista, que pedia microfones em vez de carrinhos ou bonecos, e lá em casa não havia quaquer tipo de julgamento, qualquer preconceito caro ou barato. Brincar com a maleta de maquiagem do meu pai, que dividiu o funcionalismo público com a carreira de ator de teatro, por exemplo, sempre foi coisa natural para mim, jamais digna de olhares tortos. Ver gente de todo o tipo nas cochias da vida e viver entre atores e atrizes, camareiras, costureiras, manicures e contra-regras, também. Esse mundo não só era natural para mim, mas era o mundo que eu queria. Um mundo de gente diferente e criativa, que burla as convenções por pura autenticidade e vontade de ser. Por ser essa criança engraçada, desinibida e performática, entrei no curso de teatro desde muito cedo.
Na Catsapá, escola de musicais que hoje funciona no Jardim Botânico (na minha época, a casa amarela era em Botafogo), onde estudei por alguns anos, fiz amigos, canto, circo, dança, teatro e sapateado. Por lá, travei uma relação de amor com empadinhas abertas de queijo que custavam um e vinte, feitas pela Bia, uma senhora agridoce, e que explodiam na boca com sua casquinha firme no topo, receita que venho tentando repetir em vão ao longo da vida adulta. Em êxtase, decidido a praticar a dança prateada em casa, pedi um par de sapatos de chapinhas metálicas de presente e fomos atrás dele, eu e minha mãe, em uma loja de galeria, na Tijuca. Quando os vi, sabia que seriam aqueles: um sapato bicolor, preto-e-branco e de cadarços finos que pareciam ter saído das cenas molhadas de “Cantando na Chuva”. Passei a sapatear sem limites por aí, e é claro, dividia a glória com todos os amigos que iam dormir lá em casa.
É acertado marcar o tempero habitual de todas essas noites: o riso nada contente do interfone, que gralhava furiosamente nos confins da cozinha. As ladainhas justificadas — “pessoas sapateando em cima da minha cabeça” — vinham da vizinha de baixo, Dona Eloá, uma senhora pequena que deitava seu sono leve justamente sob o chão do meu quarto, mas com muita polidez e gentileza, sem nunca levantar a voz. Dona Eloá era uma senhora muito doce e culta, de cabelo curtinho, branquinho, e sempre que nos encontrávamos no elevador, papeava sobre a vida como quem precisava conversar antes de pedir com carinho que parássemos de incomodá-la. Vivia sozinha naquele apartamentaço onde tudo era milimetricamente arrumado, um apartamento escuro, cheio das obras de arte que colecionava. Tinha ficado orgulhosa quando soube que passei para Jornalismo na UFRJ.
A ritualística se cumpriu por anos a fio, eu sapateando, ela reclamando. Em um certo momento, as queixas passaram a ser escritas à caneta no livro de ocorrências do condomínio, e lá ia minha mãe tentar explicar e se desculpar, na página seguinte. Até que um dia, cansada de justificar o injustificável — a adolescência, as danças insones, a própria vida, enfim —, minha mãe deu sua cartada final: imprimiu e colou um poema de Carlos Drummond de Andrade no livro. Já seria lindo qualquer fosse o texto, porque acho nobre, muito sensível e sagaz responder qualquer coisa com poesia. Por isso, e por acreditar que em tempos tão nefastos (inflação, fome, guerra, violência policial…) só a poesia salva, compartilho este que virou um dos meus textos favoritos do mundo. Depois dele, Dona Eloá, que hoje já partiu, nunca mais reclamou.
Casa arrumada
Casa arrumada é assim: um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa entrada de luz.
Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não centro cirúrgico, um cenário de novela. Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os móveis, afofando as almofadas… Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo: Aqui tem vida…
Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras e os enfeites brincam de trocar de lugar. Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições fartas, que chamam todo mundo pra mesa da cozinha. Sofá sem mancha? Tapete sem fio puxado? Mesa sem marca de copo? Tá na cara que é casa sem festa. E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.
Casa com vida, pra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde. Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante, passaporte e vela de aniversário, tudo junto…
Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda. A que está sempre pronta pros amigos, filhos… Netos, pros vizinhos… E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca ou namora a qualquer hora do dia.
Arrume a casa todos os dias… Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo para viver nela… E reconhecer nela o seu lugar.
— Carlos Drummond de Andrade
A AUTORA DESTE fofo POEMA É LENA GINO, AUTORA/ROTEIRISTA na TV Globo. Drummond? Não mesmo.
Adorei! Minha casa é assim❤️