Escrevo, antes de tudo, para organizar as ideias. Para dar conta das coisas que vejo, que sinto, que não entendo. Parece que os dedos batendo no teclado e o texto compartilhado com vocês, que me leem, ajudam a dar um destino mais plausível à minha certa inconformidade com o mundo. Esse era para ser um texto sobre chocolate, e não tem jeito, vai ter que ser amargo. Em todos os meses do ano, mas sobretudo nesse, de Páscoa, o manto repetitivo do chocolate belga volta a assombrar nossas vidas, brasileiros pós-graduados em viralatice. Mas e se a gente se alembrasse que o cacau, matéria-prima desses chocolates de grife, não vem da Bélgica? Que o país mal planta couves-de-bruxelas, vão plantar cacau, espécie nativa da Amazônia? Não é só porque vem de fora que é sinônimo de qualidade (pode ser justamente o contrário). Antes de ser belga, era suíço. Parece que para ser bom, só precisa que não seja nosso.
Não descanso de tentar entender por que ainda valorizamos tanto, com tanta insistência, o que vem de fora. As coisas têm mudado aos poucos, é preciso reconhecer, mas o movimento exige esforço. Fomos criados para desconfiar de tudo que era nosso, crendo no que quiseram que a gente fosse — o resto —, fazendo-nos dizer que a melhor saída para o Brasil era o aeroporto. Assim, desgarrados dos jeitos como vivemos, comemos, produzimos cultura e conhecimento, deixamos passar ao largo muito do que podia virar motivo de orgulho.
Não tem a ver só com o consumo desenfreado, com a abertura das importações em 1990, como se um raio globalizante tivesse nos cegado para o nosso redor. Nascemos, nação brasileira, com os olhos sempre virados para fora. Com a autoestima abalada, presos num pacto sadomasoquista que nos põe a imitar quem nos fere para escaparmos da posição de presa, nos alienamos do nosso próprio valor. Não é de hoje.
O Brasil foi regido primeiro como uma feitoria escravista, exoticamente tropical, habitada por índios nativos e negros importados. Depois, como um consulado, em que um povo sub-lusitano, mestiçado de sangues afros e índios vivia o destino de um proletariado externo dentro de uma possessão estrangeira. Os interesses e as aspirações do seu povo jamais foram levados em conta, porque só se tinha atenção e zelo no atendimento dos requisitos de prosperidade da feitoria exportadora.
— Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil, 1995
A Bélgica, país que se diz mestre na confecção chocolateira, arvorou-se numa noção comum plantada desde muitos séculos atrás: a lente colonialista que enxerga a Europa como a grande e única fonte do saber. Manobra que resume a atitude de superioridade do mundo ocidental eurocêntrico em relação a outros espaços globais; uma noção de superioridade altamente racializada, aliás. Para os belgas que mexem com chocolate, a mensagem é sutil, mas muito clara: só mesmo um país do seu calibre seria capaz de domar e transformar matéria-prima bruta, vinda do primitivo Sul global, num produto bem acabado, chancelado, agora sim, para ganhar o mundo e o imaginário do prestígio internacional. Vão direto, sem escalas, alimentar os delírios importados das elites.
O mesmo movimento que fez do café um ícone da Itália, onde foi torrado e extraído, quando o pé de café, mesmo, é nativo da Etiópia e só se cultiva do Trópico de Câncer para baixo. Com o tomate, nativo das Américas, que virou símbolo da cozinha mediterrânea, par perfeito dos macarrões de trigo. Com as batatas, presentes nos pratos mais emblemáticos da cozinha francesa, belga e inglesa, mas cuja versão original se enraizou primeiro na Cordilheira dos Andes. Culturas alimentares sedimentadas na apropriação, cheias de partes que ninguém conta ou sequer lembra, porque virou hábito calar o que viesse do outro lado do mar.
Um movimento silencioso que implica que nós, brasileiros, não conheçamos o Brasil; que explica nossas mesas cada vez mais descaracterizadas, cheias de produtos importados. Hamburguerias muito mais bem-sucedidas (e numerosas) que tapiocarias e tacacazeiras. Tábuas de queijos sempre cheinhas de brie, gorgonzola, burrata de búfala e geleia de damasco, sem rastros de Canastras e queijos Minas ou do Marajó, goiabadas ou doces de pitanga, acerola, cupuaçu ou araçá. Manhãs com cada vez mais avocado toast que mordidas travosas de caju.
A Barry-Callebaut, marca que muitos confeiteiros se orgulham de usar, é uma empresa franco-belga sediada na Suíça, a maior do mundo no setor do cacau. Onipresente em qualquer brigadeiro apegado no ambíguo predicado belga, mas não só. Controlando as marionetes do topo de uma operação bilionária, abastecem grande parte do ramo, fornecendo para gigantes como a Nestlé, Unilever e Mondelez, dando corpo a muitas gamas de produtos, sem venda direta ao consumidor. A marca que se diz belga, na verdade verdadeira, já não é tão estrangeira assim: tem mais de uma unidade produtora no Brasil, uma gigante no Sul de Minas e outras duas em Ilhéus e Itabuna, capitais do cacau baiano. Trabalham, na maior parte dos casos, em regime de exclusividade com cooperativas de famílias locais de agricultores, ditando alta produtividade a preços injustos, espremidos pela febril demanda.
Além das fábricas, há filiais de compra de cacau beneficiado espalhadas pelo país, transformado num verdadeiro campo minado da exploração cacaueira: duas em Altamira, no Pará, uma no estado de Rondônia, outra em Linhares, no Espírito Santo, e mais cinco no Sul da Bahia. Além da matriz na cidade belga de Wieze, fechada por um surto de salmonela no ano passado, há fábricas da Callebaut da China ao Chile, da Rússia aos Estados Unidos. Nesses países, usam cacaus majoritariamente africanos de origens como Gana, Costa do Marfim e Serra Leoa, e outros sul-americanos como Peru e Equador, já que o Brasil mal abastece a si próprio. Ainda assim, no site dos bonitos, a pachorra em dizer “o Autêntico Chocolate Belga, criado na Bélgica desde a amêndoa até o chocolate”. Acredita quem quer.
As benditas gotas de chocolate que brasileiros importam da Bélgica são, na teoria, uma linha premium. Na prática, são chocolates com baixo teor de cacau e cheios de açúcar, aromatizantes e gordura de soja, usada como emulsificante. Já que a maioria vai vir soterrada de otras cositas más, a quantidade esmaga qualquer ideia de qualidade. Assim como no café, em que a torra pode abrilhantar o potencial ou disfarçar o mau estado dos grãos, é na torra superescura, então, que amêndoas defeituosas de cacau se escondem, num sabor homogeneizado, mascarado com aditivos — vendido como produto nobre. Nasce a matéria-prima Callebaut: um cacau commodity, de baixíssima qualidade, fruto de condições desumanas de trabalho na lavoura, num saco de pepitas de chocolate caro, fingido de produto especial. Ainda assim, se é belga, é bom. Se é qualquer-coisa-que-não-seja-brasileiro, é bom.
Os grandes consumidores de cacau – Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha Federal, Holanda, França –, para comer chocolate barato, instigam a competição entre o cacau africano e o produzido no Brasil e no Equador. E dispondo como dispõem dos preços, provocam períodos de depressão que atiram nas estradas os trabalhadores que o cacau expulsa. Os desempregados procuram árvores, debaixo das quais podem dormir, e bananas verdes para enganar o estômago: por certo não comem os finos chocolates europeus que o Brasil, terceiro produtor mundial do cacau, incrivelmente importa da França e da Suíça.
— Eduardo Galeano, As veias abertas da América Latina, 1971
Como toda megaindústria de alimentos, a do chocolate ganha nossa anuência porque se vale das grandes manobras de marketing, das embalagens sedutoras com fotos de agricultores sorrindo, dos supostos programas de sustentabilidade com cheirinho de fachada, fortalecidos pelo medo do cancelamento na era das telas. Mas como falar de sustentabilidade se a realidade é que grande parte desses produtores de cacau estão abaixo da linha da pobreza, trabalhando muitas vezes em regimes análogos à escravidão, muitos casos com mão-de-obra infantil?
O escritório da Barry-Callebaut no Brasil, um arranha-céu na Avenida Paulista, é certamente bem diferente das condições degradantes em que seus cacauicultores vivem. A casa-grande só mudou de arquitetura e endereço. O trecho de Darcy Ribeiro que destaquei no início do texto não parece tão atual também para a discussão contemporânea sobre a cadeia do cacau? Uma singela analogia desse modus operandi comum ao mundo colonial: usar matéria-prima de outro lugar, explorar e processar, levando os lucros e os louros. E que se dane todo o resto. Da expansão invasão à banda de ovo belga ultraprocessado, pouca coisa mudou.
Domingo que vem, prometo que o clima muda: conversei com a Dona Nena, que cultiva e beneficia cacau para fazer seu próprio chocolate na Ilha do Combu, a quinze minutos de Belém do Pará, e com a Luiza Santiago, da Kalapa, marca mineira de chocolates feitos com consciência, respeito e cacau do assentamento Dois Riachões, em Ibirapitanga, na Bahia.
Ótimo texto e pesquisa sobre um assunto pouco explorado no Brasil. Parabéns!