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Chocolate brasileiro: da Amazônia às Gerais

Chocolate brasileiro: da Amazônia às Gerais

As histórias de Dona Nena, a Filha do Combu, e de Luiza Santiago, da Kalapa Chocolates

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Mateus Habib
abr 16, 2023
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Chocolate brasileiro: da Amazônia às Gerais
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A barrinha rústica, 100% cacau, da Dona Nena, feita inteira na Ilha do Combu

Na Amazônia paraense, a quinze minutos de popopó* de Belém, Izete Costa, conhecida na região da Ilha do Combu como Dona Nena, é um ponto fora da curva. A maioria dos produtores de cacau dali passou uma vida sem ver a cor do chocolate feito com a matéria-prima que cultivam, beneficiam e vendem para atravessadores. Criada no meio do cacau, Nena vivia da venda das frutas do seu redor, que sempre brotaram espontâneas na umidade sombreada de sua floresta-quintal. Quando não havia açaí, que é pá-pum, apanhar e vender, também beneficiava e vendia cacau para atravessadores. Mas sempre reservava um pouco para fazer chocolate caseiro, só para a família. Até que entendeu a potência que tinha nas mãos e resolveu mudar.

Hoje, dali, seu cacau não viaja mais. Nena planta, quebra, fermenta, seca, seleciona, descasca, parte, torra as amêndoas, e, ufa, faz chocolate. Sem combustível queimado para que elas circulem pelas estradas empoeiradas do país em grandes caminhões, ou, no pior dos casos, embarquem num navio rumo à Europa, e depois partam ao resto do mundo em forma de chocolate, taxado de belga.

Quando passávamos para o atravessador, não sabíamos mais o caminho que essas amêndoas percorreriam. A indústria não visa qualidade, mas sim o cacau bulk, sem seleção, vendido misturado. Hoje o quilo desse cacau está variando de R$9 a R$13, dependendo do atravessador, que ainda vai ganhar em cima ao vender para as indústrias. Já o cacau premium, selecionado, o quilo está em torno de R$25 a R$35, quando é comprado diretamente por marcas de chocolate artesanais, bean-to-bar.

— Dona Nena, a Filha do Combu

O cacau da Dona Nena não se mete com laboratório, mudança genética, gente engravatada ou arranha-céu. Cresce na agrofloresta nos fundos de sua casa e das famílias vizinhas, agrofloresta que sempre foi assim, viva e biodiversa, bem antes de se falar em sustentabilidade. Os cacaueiros sempre estiveram lá, em consórcio natural com outras espécies nativas como o araçá, o açaí, o cupuaçu, o taperebá e a palmeira da pupunha. É cacau de várzea, original dali, acostumado ao regime das cheias e vazantes dos rios, já que está nas margens do Igarapé Combu, alimentado pelo rio Guamá. Pude ver tudo isso de perto quando a visitei, em 2019. Não desgrudou da minha lembrança a majestosa sumaúma centenária que vigiava tudo de cima, mostrando como a gente é pequenininho. Imaginem só o que deve ser morar e trabalhar debaixo da mais alta árvore da Amazônia?

A flor do cacau explode miudinha em cinco pontas, com formato de estrela, anunciando a fruta que brota do tronco, trepada como jabuticaba. O cacau verdeja, amarela e avermelha até que possa ser colhido. Dentro de cada fruta saudável moram, no máximo, 42 amêndoas. Daí em diante, todo trabalho é manual, num pós-colheita dispendioso: o cacau é partido e esvaziado das amêndoas envoltas de polpa branquinha, postas para fermentar. Em duas etapas, em cochos de madeira, são remexidas algumas vezes durante seis dias, numa sucessão de reações químicas que vão construindo sabor, definindo acidez e amargor.

Dona Nena no documentário Street River, de Beto Macedo e Tiago Berbare

Depois, são despejadas em terreiros numa estufa e revolvidas com grandes rodos de madeira para que sequem completamente. Como acontece com o café, livrando cada bago de toda umidade. A seleção manual das amêndoas do cacau, numa mesa, como se cata feijão, deixa só as bonitas e maduras irem adiante. São torradas no forno, descascadas e quebradas, e viram o que conhecemos como nibs. Só depois desse processo criterioso de quase um mês e das tantas etapas que dão lugar às notas aromáticas complexas do bom cacau é que pode-se falar em chocolate.

Aprendi com minha família todos esses processos, e aos poucos fui aperfeiçoando. Hoje transformamos toda nossa matéria-prima aqui mesmo. O chocolate que fazemos ajuda a valorizar o produto e o produtor, gera emprego e renda para as famílias próximas, porque absorvendo o cacau delas, os que se adequam ao padrão de qualidade, pagamos um preço melhor do que venderiam aos atravessadores. Assim, fazemos a economia girar dentro da própria comunidade.

— Dona Nena, a Filha do Combu

Seu produto mais conhecido são as barrinhas rústicas, a massa compactada dessas nibs processadas no moedor de ferro, embrulhada na própria folha do cacau, amarrada com uma tirinha da folha do açaizeiro. Lixo zero. Fazia com o pilão, como aprendeu com seus mais velhos, mas a vigilância sanitária disse que não. Horas depois de moldada, a pasta amanteigada 100% cacau vira uma barra rija, ralada para fazer caldas encorpadas, uma caneca de chocolate quente ou salpicada sobre qualquer coisa. Um produto integral, feito da história e da cultura ribeirinha, íntima do cacau nativo daquele lugar, protegido e mantido pelas próprias mãos de quem nasceu e labutou ali. Além da barrinha, dona Nena vende outros tabletes, brigadeiros, licores e bombons, os distribui em uma loja própria na capital e despacha para restaurantes famosos em Belém e no Sudeste.

Infelizmente, as pessoas ainda não têm o hábito de comer o chocolate de verdade. Estão muito acostumadas com o açúcar, o leite, que mascaram muito a qualidade do chocolate. Nosso objetivo é esse: criar nas pessoas o hábito de consumir um chocolate de qualidade. Um chocolate de origem.

— Dona Nena, a Filha do Combu

Cacau baiano, do assentamento Dois Riachões (Foto: Fellipe Abreu)

Na Mata Atlântica baiana, outro grande polo cacaueiro do país, quem segue levando adiante a produção sustentável também são agricultores familiares como ela. Comunidades indígenas, quilombolas e assentados rurais expropriados pelo coronelismo do cacau que se instalou na região durante o século 20; o mesmo que explorou famílias locais em regime análogo à escravidão para o manejo do cacau tipo exportação. A vassoura-de-bruxa, fungo que dizimou essas lavouras, também varreu fora os coronéis entre os anos 1980 e 1990, abrindo uma brecha para os assentamentos da reforma agrária, frutos da luta incansável dos movimentos sociais que brigam pelo direito básico de um pedaço de chão.

Na retomada da terra abandonada, a monocultura de sol pleno do cacau antigo deu lugar a novos pés de cacau agroecológico em cultivos consorciados diversos, misturados às árvores nativas. Exemplo de manejo sustentável no Sul da Bahia, o sistema cabruca de cultivo pressupõe a natureza preservacionista do cacaueiro, que precisa de sombra para crescer forte, sem derrubar as jaqueiras, cajazeiras e jequitibás que ergueram-se pelo caminho. Agora, em conjunto, ensejados pelo espírito coletivo e associativista da reforma agrária, essas famílias retomam a cadeia do cacau nas mãos, fazendo o próprio chocolate ou fornecendo para marcas que se importam verdadeiramente com quem está por trás da matéria-prima.

A quebra do cacau no assentamento Terra Vista (Foto: Carlos Alberto Boby)

Em assentamentos como o Terra Vista, uma das primeiras ocupações do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) na região cacaueira baiana, instalado numa antiga fazenda produtora no município de Arataca, hoje se cultiva cacau em comunhão orgânica e agroecológica com pomares e hortas que abastecem a comunidade. Também plantam e colhem saber: têm uma escola com ensino básico, um curso de graduação em agronomia, seis cursos técnicos e especializações em agroecologia. E produzem chocolate, com cacau lá plantado, colhido e beneficiado, vendido nas lojas do Armazém do Campo espalhadas pelo país.

No assentamento Dois Riachões, em Ibirapitanga, também no Sul da Bahia, a mesma história de luta coletiva foi salvaguardada no curta documental “Cacau e Liberdade”, dirigido pelos jornalistas Fellipe Abreu e Patrícia Moll. Eu quebrei muito cacau, só que eu não tinha direito de chupar um caroço de cacau, disse dona Luiza dos Santos, assentada que já fora força de trabalho das grandes fazendas. No lugar do gado e do cacau anteriores, os assentados entraram plantando o que comer — feijão, milho, mandioca, hortaliças — para dezenas de famílias que produzem e beneficiam o cacau em conjunto, quebrando as frutas maduras com o facão enquanto entoam cantigas regionais. Fazer chocolate assim regenera não só a terra, mas a cultura, a sociabilidade, a autoestima de um povo.

Uma das marcas que compra as amêndoas secas do assentamento Dois Riachões é a Kalapa Chocolates, sediada em Minas Gerais. Biológa, Luiza Santiago começou a fazer chocolate por curiosidade, sem a intenção de fazer dele seu trabalho. Depois de uma temporada de voluntariado numa comunidade na Bahia que mexia com cacau, visitou produções agroecológicas, permaculturas, produtores muito pequenos… e se encantou de vez. Quando voltou da Bahia para Minas, já levou cacau na mochila. “Comprar um chocolate pronto para derreter não foi opção para mim. Me encantei justamente por fazer o chocolate, acompanhar todo esse processo.” Passou a dedicar-se aos chocolates 100% nacionais, feitos à base de plantas, sem leite de vaca, literalmente da terra à barra.

Há 10 anos comecei essa busca. Como biológa, voltei para pesquisar sobre a planta, theobroma cacao, original da bacia do rio Amazonas, e me questionei: se a origem é daqui, por que não existem marcas brasileiras fazendo esse chocolate e mostrando que o cacau é nacional? Na Kalapa usamos não só o cacau, mas todos insumos produzidos no Brasil, preferencialmente nativos, quase todos comprados diretamente no produtor, valorizando quem precisa ser valorizado, quem está na base. Não foi uma decisão — para mim foi sempre o único caminho a ser feito.

— Luiza Santiago, da Kalapa Chocolates

Em vez de buscar crocâncias de avelãs, pistaches e amêndoas, combinações batidas de produtos importados, Luiza elegeu a castanha de baru, nativa do Cerrado brasileiro, espécie que corre risco de extinção. Na barra Embalo Crocante, baru rima com cumaru, fava perfumada da Amazônia, no chocolate 61% feito com leite de coco. Na Páscoa que passou, o ovo Rios Voadores tinha só frutas amazônicas: pedacinhos de açaí, camu-camu e caramelo de guaraná. Numa edição passada, usou o buriti.

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Como marca, como vou construir um referencial verdadeiramente nosso oferecendo blueberry, cranberry e pistache? É muito mais fácil usar cranberry do que buriti, por exemplo: vou aqui na esquina numa loja a granel e encontro um cranberry que foi produzido sabe-se lá onde. O buriti compro direto da fonte, em uma comunidade produtora, é muito mais difícil. Frutas assim são uma coisa tão nossa, era para estarem tão disponíveis, mas é bizarro pensar que é muito mais fácil comprar uma que venha de outro país, mais acessível no sentido de acesso e de preço.

— Luiza Santiago, da Kalapa Chocolates

Pela proximidade (de distância e coração), o Sul da Bahia sempre foi seu principal fornecedor de matéria-prima. No assentamento Dois Riachões, para onde Luiza vai mês que vem, não pela primeira vez, viu de perto um modelo de produção exemplar. “São referência de agricultura familiar, com várias áreas de plantio, extremamente organizados, com foco em qualidade. Um sistema de manejo agroecológico incrível, que merece ser conhecido, valorizado e replicado para vários locais, não só na Bahia (dão assistência, inclusive, para produções no Pará), mas pelo mundo.”

O cacau in natura do assentamento Dois Riachões (Foto: Patricia Moll)

Quando provoquei Luiza sobre o chocolate belga, respondeu confiante acreditar que, pelo menos no Brasil, a cultura do chocolate belga estava com os dias contados. Acredita que vamos chegar num ponto que vai ser brega falar em chocolate belga. Depois de ser suíço, depois de ser belga, só posso torcer e escrever para que o chocolate que comemos seja mesmo, um dia, verdadeiramente brasileiro. O movimento principal é descomodificar, mirando na qualidade para que nosso melhor cacau fique no Brasil, consumido e reconhecido como o produto de excelência que é. Para que todo mundo se orgulhe em dizer que usa e come chocolate feito inteiro no Brasil, nossinho da Silva, com salários justos a quem está na terra e tudo mais que implique justiça social e consciência ambiental. Assim, e só assim, é que a conversa pode ser mais doce.


Faixa-bônus: aos profissionais do chocolate e da confeitaria, como fugir do chocolate belga Callebaut como matéria-prima?

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