Maria estava parada há mais de meia hora no ponto do ônibus. Estava cansada de esperar. Se a distância fosse menor, teria ido a pé. Era preciso mesmo ir se acostumando com a caminhada. O preço da passagem estava aumentando tanto! Além do cansaço, a sacola estava pesada. No dia anterior, no domingo, havia tido festa na casa da patroa. Ela levava para casa os restos. O osso do pernil e as frutas que tinham enfeitado a mesa. Ganhara as frutas e uma gorjeta. O osso, a patroa ia jogar fora. Estava feliz, apesar do cansaço. A gorjeta chegara numa hora boa. Os dois filhos menores estavam muito gripados. Precisava comprar xarope e aquele remedinho de desentupir nariz. Daria para comprar também uma lata de Toddy. As frutas estavam ótimas e havia melão. As crianças nunca tinham comido melão. Será que os meninos iriam gostar de melão? A palma de uma de suas mãos doía. Tinha sofrido um corte, bem no meio, enquanto cortava o pernil para a patroa. Que coisa! Faca a laser corta até a vida!
— Trecho de ‘Maria’, conto de Conceição Evaristo
Lamentou que hoje em dia tudo andava avacalhado quando pegou o pote de maionese, confirmando as queixas todas que desfiava junto com o frango: “Viu só? No meu tempo era de vidro, e a gente ainda usava para guardar banha de porco”. Verteu o conteúdo do pote raspando com uma colher de sobremesa, o pensamento longe, se levantando junto com a luz fraca da manhã que entrava pelo basculante da cozinha. Mal tinha passado o café e já estava com as mãos suspensas no ar, cortando cebolas com a faca de mesa serrilhada, os cubinhos caindo no pote plástico de paçoca, redondo e resistente, que guardava de todo São João. Nos últimos anos, dava-se o luxo de não fazer um frango do zero só para o salpicão. Comprava pronto na dona Ida, que rodava frangos no espeto aos domingos e escolhia sempre o maior e mais bem bronzeado para ela. Voltava satisfeita com o frango assado nas mãos, aliviada de poupar horas na cozinha tendo de preparar um. Amassando alho no pilão, esfregando entre a pele e a carne, passando limão, esfoliando com sal. Não gostava de cozinhar, era o que dizia, mas tudo o que fazia era divino. Dizia que não sabia como tinha aprendido; sua prática era faca amolada, afiada na dura pedra da própria vida.
Trabalhava como diarista na casa de várias famílias da Barra da Tijuca, já namorara porteiros, pedreiros ou técnicos de empresas de telefonia, que eram os homens que ela tinha tempo de encontrar nos corredores brancos dos condomínios, já que não sabia mais o que eram fins de semana, de tanto que trabalhava. Casou-se com um deles, o único que não ficaria no seu pé simplesmente porque tinham turnos sempre trocados, era vigia noturno. Quando estava livre ela só queria dormir, aguar suas plantas, pensar na vida, ler o evangelho segundo o espiritismo que a acompanhava pra cima e pra baixo, como um patuá. No tempo livre, também aprendeu na marra a gostar de cuidar dos dois netos que sua filha única largava em sua casa de tempos em tempos, sem nem pedir permissão, porque se não gostasse, quem gostaria daquelas crianças? Quem cuidaria delas com amor?
Com os preços sempre tão altos, se acostumou a não ter um banquete de aves inteiras no centro da mesa todos os anos. Sua avó e sua mãe sempre tinham porque criavam, porque toda casa guardava um quintal, e porque a vida parecia menos penosa naquele tempo. Em alguns natais ganhava de presente, noutros, não. Nesse natal não ganhou. Nem um peru de pernas para o ar, nem a bola de boliche espetada de cravinhos, decorada com fios de ovos. Quando foi ao mercado comprar as coisas para o salpicão passou longe da zona dos congelados, mas ouviu anunciarem no microfone o quilo do Chester, essas aves que só aparecem nessa altura do ano e ninguém sabe ao certo o que são, a vinte e nove reais. Um quilo até daria, ponderou com os grampos do cabelo, mas qual desses bichos tem um só quilo? Têm no mínimo três, quatro, e com cem reais daria para fazer muito mais coisa que um prato. Daria para uma ceia inteira, e com folga. Para seu salpicão reluzente, cremoso, colorido, cheio de ingredientes-surpresa. Daria até para as rabanadas.
Rabanadas altas e bem fofas, cobertas de açúcar fino e canela, sem nenhuma parte descoberta que denunciasse seu passado de pão dormido, eram sua especialidade. Batia no muque as claras e gemas em neve bem montadas, obra que atribuía aos ovos graúdos da venda da Túlia, e porque eram ovos de quintal, bem diferentes dos ovos de granja do carro de ovo que passava na favela. Fazia só para os seus, e mesmo nos anos em que não sobrava disposição, murchar não era um cenário possível, e ainda arrumava tempo para algumas encomendas da vizinhança, “para fritar tudo de vez”. Em casa, seu segredo mais luminoso eram suas rabanadas. Sentia um orgulho discreto em fazê-las, mesmo que de cara amarrada, exausta ou apressada, dizendo que seria o último ano que teria essa trabalheira toda, virando-as com a ponta do garfo no óleo fervilhante. Gostava é de ouvir os elogios e os gemidos de prazer de quem as provasse, mesmo que não acusasse o golpe, vestindo uma cara de dúvida em vez de um semblante envaidecido. No dia seguinte, a mordida gelada com café quente fazia daquela manhã diferente entre todas as outras. Sozinha, lembrava das mulheres mais velhas de sua família fazendo as rabanadas do mesmo jeito, de olho, sem caderno de receitas, tudo escrito no ar. Tinha muita coisa naquele doce. Uma Beatriz inteira polvilhada de açúcar.
Nas duas pontas da mesma cidade, o que Biá chamava de rabanadas, dona Neide, herdeira profissional, chamava de fatia dourada. Rabanadas naquele trecho estranho do Rio de Janeiro também eram um jeito de distinção social: “Rabanada é coisa de pobre”, sussurrava na sala, certa de que ninguém a ouvia. Biá sentia um prazer sórdido ao dizer à sua patroa mais antiga que não sabia fazer rabanadas, mesmo que, todo ano, no início de dezembro, a insistência voltasse. Na casa de dona Neide via tantas encomendas chegarem embrulhadas em papel celofane e palha da costa — bolos, rocamboles, pudins, docinhos, empadões —, por que raios ela haveria de fazer suas rabanadas para aquele povo que nem a olhava no olho? Dentistas de renome que nunca se importaram em vê-la sorrir? Vingava-se privando aquela família besta das melhores rabanadas do mundo, enquanto eles achavam que eram felizes com as fatias finas, mal fritas, porcamente cobertas de açúcar, borrachudas e escuras demais que encomendavam. Nem douradas eram, Biá se ria por dentro, bicando café. Tinham dinheiro, casa na praia e na serra, mas não tinham gosto para comida de verdade. Vinha tudo sempre de fora, tudo mais enfeitado que gostoso. Biá sabia porque sempre sobrava.
Seu nome era Beatriz, o que para todo mundo, era natural, virava Bia, mais fácil de dizer, ainda mais para uma adolescente. Dona Neide chamava-a tanto, entretanto, e de tão longe, que se zangou de prolongar a emissão vocal do i e achou que seria mais fácil esticar no a. Biá era muito mais fácil que Bia, sobretudo do andar de cima, o andar dos quartos e da sala de televisão com telão que rolava do teto, de onde o grito ainda tinha de descer as escadas e chegar até a cozinha. Simplesmente não fluía, até que um dia, sem mais nem menos, só rebatizou. Bia, sem aviso prévio, teve seu nome trocado. Virou Biá. Há mais de vinte anos acabou vestindo esse novo nome. Depois passou até a gostar da força na última sílaba que a diferenciava do resto das bias, que eram todas muito meigas, e ela fora sempre diferente.
Há mais de vinte anos tinha se acostumado a ter sua noite de Natal no dia 25. Tinha selado o compromisso com essa mesma família, onde trabalhava há mais tempo, e pagavam dobrado o que pagavam nas terças e quintas comuns para que ela trabalhasse no dia 24. Preparava, servia, recolhia e lavava tudo, deixando a cozinha um brinco como nunca encontrava. Depois mofava no ponto de ônibus, a pele colada de suor, as pernas doídas de tanto perambular. Não que ganhar a diária dobrada fosse dobrar muita coisa em sua casa. O preço da diária andava defasado, o mesmo há bons anos, dona Neide nunca aceitara aumentar. Achava de bom tamanho dar a passagem, que estava cada vez mais cara, e preparar algumas marmitas do que sobrasse para que Biá levasse para casa. De qualquer jeito, Biá não tinha muito do que reclamar. Que fazer, se quando foi pedir para aumentar, ameaçaram nunca mais chamar?
Chegou em casa no arco mais alto da madrugada, um silêncio aliviado. Alisou uma foto três por quatro de sua mãe com o polegar, ria e chorava ao mesmo tempo, sem saber ao certo o que sentia. Como uma gota de sangue que se espalha por uma folha de papel toalha, deitou-se na cama com a roupa do corpo, derretendo de cansaço. Olhou para o teto em transe por uns bons vinte minutos. Levantou, pôs a camisola, escovou os dentes e tornou a deitar-se. Leu o evangelho e na primeira página adormeceu. Abriu os olhos às oito e meia, quando um carro de bombeiros passou. Leu o evangelho. No espelho, notou novos cabelos brancos em contraste com a pele escura. Foi fazer rabanadas.
Coisa bonita a Bia guardar as rabanadas pra quem de fato merece. 💌
Um conto de natal tropical, agridoce. Gostei tanto!!!