Machacari, Camacan. Cabinda, Quiloa, Mina, Rebolla. Sentado no sofá, olho ao redor e meus olhos sempre param no mesmo lugar. Naquele par de quadros, talvez os primeiros que comprei na vida, quando saí da casa dos meus pais. De bolsos magros para qualquer pretensão de decoração, recorri à dica de um amigo, os leilões virtuais. Havia muito espólio e velharia, mas com alguma sorte, alguma coisa vistosa a preços que podiam começar bem baixos.
Não demorou para que as encontrasse: duas reproduções de ilustrações de Johann Moritz Rugendas, um viajante e pintor alemão do Brasil colonial, em belo e grosso papel, por cinquenta reais de lance inicial. Subi timidamente para R$60, nenhum lance a mais, e quem arrematou fui eu. Comprei, confesso, porque tinham cara de arte, estavam em bom estado e no precinho. Não sabia nada sobre essas imagens publicadas pela primeira vez em 1835, na Alemanha, em Voyage pittoresque dans le Brésil, com base nos originais feitos em 1827.
Na época, eu entendia muito pouco da imensidão que guardavam os termos ali escritos, nomes de povos indígenas e de entrepostos comerciais do tráfico transatlântico de africanos escravizados, frequentemente confundidos com a origem real daquela pessoa. Essas palavras — Machacari, Camacan, Cabinda, Quiloa, Mina e Rebolla —, postas como legendas daqueles rostos, não me diziam grande coisa. Não atinei para o fato de as quatro últimas estarem na letra de Zumbi, de Jorge Ben Jor, música que eu já conhecia — e eu teria entendido tudo se a escutasse com atenção.
Investi em boas molduras e os pendurei com orgulho acima do meu sofá, por onde permaneceram durante os três anos em que vivi ali, naquele quarto e sala em Copacabana. Gostava deles a ponto de decidir trazê-los para Portugal, embalados com cuidado e plástico-bolha, evitando que o vidro rompesse na mala. Acontece que eu nunca tinha pensado, até relativamente pouco tempo, no teor de violência que aquelas imagens continham. No que subjazia por trás daquelas expressões que não eram de riso, descontração ou satisfação.
Não havia nada naqueles olhos. Eram rostos contritos, olhares perdidos que nunca encaravam o olhar de quem pinta. O que o artista retrata são pessoas expostas em suas condições de fragilidade, em situações que os exibem de perfil, de modo a tornar evidente o tamanho de seus crânios, seus traços distintivos, suas vestes e tatuagens. Mais que registrarem, essas imagens classificam, escrutinam, hierarquizam. Carregam na tinta a impressão de que exibem rostos de modo explícito, à revelia clara de quem é exibido.
Rugendas, como Debret e muitos outros, eram formados em academias européias de renome, contratados pela empresa colonial para informar a Europa sobre a vida e o estado de “civilização” das colônias. Suas ilustrações são documentos históricos de importância indiscutível, fontes valiosas de pesquisa, assim como grande parte da documentação produzida durante a colonização. Mas para além disso, é importante considerar que, longe de serem neutros, eles faziam parte fundamental de um sistema hegemônico de poder e dominação.
A ilustração quase engana, mas é diferente da fotografia: não estamos diante da captura, ainda que armada, de um instante real, e sim de uma representação cuidadosamente construída, ainda mais impregnada de escolhas, ideologias e intenções. Talvez por isso, elas grudem na gente de forma ainda mais eficaz e insidiosa, moldando nosso olhar sem que suspeitemos estar diante de uma narrativa, não da realidade.
Para olhos omissos como os meus de então, essas ilustrações viraram apenas trabalhos artísticos, descontextualizadas de seus reais significados, tomadas como cenas pitorescas da nossa história, apenas como aquilo que é digno de ser pintado. Infiltrada no que parece inofensivo e belo, a violência simbólica se atualiza, naturalizada, sofisticando sua permanência nas raízes da sociedade.
O desconforto andava me rondando há meses, mas a lâmpada se acendeu de vez quando assisti a uma entrevista de Larissa de Souza sobre seu processo criativo. A artista comentava sua preocupação com o lugar onde “Esperança”, uma de suas pinturas, iria estar se fosse entregue à galeria e vendida: “É a imagem de uma mulher negra nua, na corda bamba, ferida, imagina ela vai parar na casa de uma pessoa branca, uma imagem tão frágil, sabe?” Aquelas palavras falaram comigo, me constrangendo e me modificando ao mesmo tempo.
Com a boca amarga, fui pesquisar mais sobre esses registros, algo que, talvez já soubesse, aumentaria a náusea. Achei os textos que acompanham as ilustrações, breves comentários do próprio autor, e nem precisei ir muito além. Em uma passagem, Rugendas escreve que “os Minas e os Angolas são considerados excelentes escravos; dóceis, fáceis de instruir e suscetíveis de dedicação”, enquanto “os Rebolos são mais turrões, e mais predispostos ao desespero e desânimo, do que as outras duas raças”.
“Os Angicos são mais altos e mais bem feitos, tem menos traços africanos nos rostos, são mais corajosos e astutos, apreciam mais a liberdade. Os Minas distinguem-se por três incisões em semicírculo que do canto da boca vão até a orelha. Os Gabanis são mais selvagens e mais difíceis de instruir que os precedentes. Os Monjolos são os menos estimados.” E assim prossegue, retirando suas humanidades, relativizando o absurdo. Tudo muito duro de ler, de saber que existiu. De que ainda existe, ainda que de outros modos.
Digerindo o indigerível, assentei um aprendizado que a pesquisa tem me dado: a importância de colocar na roda a moralidade de quem enuncia, seu contexto e suas motivações. Sempre. Nesse caso, a motivação era clara, direta e bem paga: a de construir uma narrativa que se queria sobre o Brasil. Cada um enxerga de onde está, a partir de quem se é, do que quer enxergar e, principalmente, do que pretende transmitir. E eu estava ali, por anos a fio, estetizando de modo acrítico a dor negra e indígena bem no meio da minha sala de estar.
Pode ser tentador recorrer ao fato de que imagens assim foram produzidas em outro tempo, sob as luzes de outras lógicas, adiando o incômodo, suavizando a gravidade. Acredito no contrário: que não basta contextualizar historicamente, mas é preciso confrontar eticamente. Nossa época é hoje e é a partir dela que olho. Encarar essas imagens de frente, então, é recusar a conivência com um passado que insiste em se repetir. É entender o peso do que imagens como essa ainda são capazes de produzir no presente. O que hoje sei e é imperativo saber, é que essas são imagens de dor. Uma dor que não é bonita, e não deve ser apreciada.
Comprar essas imagens. Em um leilão. Imagens que possivelmente foram produzidas nesse contexto — um leilão, mas de outro tipo, um leilão humano, prática amplamente difundida no Brasil da primeira metade do século 19, quando essas imagens foram feitas. Tamanha monstruosidade contida em dois quadros que tinham, para mim, apenas valor estético.
Olho para eles, nessa altura encostados num canto da sala. Penso nisso e sinto meu sangue engrossar a ponto de chumbo. O mal-estar vai voltando, vou sentindo uma vergonha. De mim. Do que nossa vizinha, angolana do Zaire, para quem prometi um almoço baiano quando o verão chegasse, podia pensar se encarasse o trauma mais grave de seus antepassados como meros enfeites da casa onde moro. Como se à dor coubesse moldura.
Penso em Gê Viana, artista maranhense que em fotomontagens, colagens e outras intervenções sobre imagens de arquivo, busca restituir a humanidade e ancestralidade de cenas coloniais como essas. Ao adorná-las de coroas, colares, tecidos e ornamentos, a artista devolve a dignidade e a realeza a essas pessoas, honrando suas verdadeiras origens e ampliando imaginários possíveis sobre elas. Fazendo isso, não apaga a violência da imagem original, mas sobrepõe-lhe outra camada de narrativa e poder. Agora, sim. Finalmente sorrio.
o processo de desnaturalizar o que sempre nos pareceu natural é longo. foram séculos de constantes apagamentos, tudo muito bem orquestrado. não podemos mudar a história, mas é importante ressignificá-la, sobretudo para que não se repita. aos poucos, a gente consegue.
Dos enjoos e remédios amargos necessários