Quando conheci Danni Camilo, uns bons anos atrás, ela se apresentou como a dinossaura da restauração do Rio de Janeiro, toda irreverente, nunca vou me esquecer. Jurássica de tão experiente, sagaz, ousada e vanguardista, Danni pôs e segue pondo de pé os melhores restaurantes da cidade, treinando equipes honestas para olhar nos olhos e para servirem cuidando — mas zela que nem mãe pelo cuidado com suas brigadas. Não faz concessões, entra sempre com o pé na porta, dá seu texto e faz bonito, mas sai andando se precisar, sem nunca abaixar a cabeça. É dessas pessoas que sinto orgulho em saber que existem no mesmo tempo em que eu, e reconheço a sorte em poder estar ao lado dela escutando, aprendendo, construindo junto. Por isso, compartilho com alegria essa sorte com vocês, que me lêem.
Danni Camilo é a dinossaura mais sedutora que você vai conhecer, e seduz pela ironia fina, pela risada gostosa de ouvir, pela certeza com que advoga pelas causas da liberdade, da equidade, das lutas sociais de raça e gênero, e só assim se anda adiante, é no que acredito. Nessa entrevista, transcrita a partir de três horas intensas de uma conversa muito franca por vídeo — ela no Rio, eu em Coimbra —, falamos sobre a raiz escravocrata inegável por trás dos restaurantes do Brasil, sobre a importância de superar essa cultura de exploração e subserviência e sobre sua atuação na RAET, a Rede de Apoio à Empregabilidade TransGarçonne, destinada à colocação de pessoas transgênero no mercado de trabalho. Aproveitem!
Antes de começar, uma perguntinha: você gostaria de receber entrevistas assim por áudio, como um podcast? Deixei uma enquete no meu Instagram, se puder, deixa sua resposta por lá!
MH: Hoje você presta consultoria de implementação de restaurantes do zero, e também treina equipes de restaurantes que precisam de realinhamento. De que forma você transmite os valores nos treinamentos de equipe que faz?
DC: Nos meus treinamentos, brinco sempre que o trabalho da hospitalidade é o de mostrar as avós que moram dentro da gente. Não se entra numa casa de vó sem receber uma água, um café, uma fatia de bolo, um dedo de prosa. Ir ao restaurante é uma experiência de cinco sentidos: o conforto da cadeira, o volume da música, o comer com os olhos, tudo importa. Trabalhamos com o desejo de manter essas pessoas perto da gente. Acho o termo atendimento até pobre para o serviço de salão, pois não estamos só atendendo, estamos conduzindo uma experiência, cuidando, ajudando aquela pessoa a curtir aquele momento. Temos muito mais funções mais legais do que só atender — em um banco pego uma senha e sou atendida, resolvo uma necessidade —, nosso trabalho é muito mais que isso. Quando falo para uma brigada mais jovem costumo dizer que eles são MCs, são mestres de cerimônia, que têm que estar com o rap pronto, na ponta da língua.
Acho interessante que passem pelo menos dois dias dentro da cozinha para ver o produto in natura, entender a cocção, o ponto, todos os tempos da cozinha, o preparo de todos os pratos, tudo tem que ser parte do domínio desses colaboradores. Não trabalho, por exemplo, se não derem o cardápio completo do restaurante para o garçom provar, e já chego perguntando se eles sabem como funcionam as comissões que eles ganham — e a maioria não sabe.
Hoje, com as mídias digitais, os clientes já chegam no restaurante cheios de expectativas, já viram as fotos, o cardápio, as avaliações. Digo que a jornada do cliente começa no digital, e cometemos o erro de não dividir a experiência do digital com quem está no serviço. Às vezes o cliente chega pedindo um prato que foi postado aquele dia pelo Instagram e o garçom não faz ideia do que possa ser, porque o empregador não dividiu isso com ele. Vejo que, cada vez mais, o problema está muito mais no empregador que nos clientes ou nos colaboradores.
MH: Como reescrever a cultura de servidão no Brasil, um país onde a escravidão parece nunca ter acabado, só se disfarçado? Como separar nossa cultura servil, escravocrata, de um serviço adequado e eficiente?
DC: São algumas questões, todas estruturais. A primeira reflete nesse retrato escravocrata do Brasil como um todo, e sobretudo no Rio como ex-colônia portuguesa. Estava ouvindo um podcast outro dia do Laurentino Gomes, em que falava sobre o terceiro livro da série Escravidão [que será lançado em julho, na Bienal de São Paulo], dizendo que para o Brasil vieram 54% de todos os africanos escravizados do mundo. Quando vejo que nós pretos ainda somos 54% da população do país, penso que nada mudou.
O reflexo colonial está no empregador, que já erra no recrutamento. Temos um esquema de trabalho que é muito duro. Esse formato 6 por 1 (trabalha seis dias, folga um), o fato de trabalhar onde todo mundo mais se diverte, tudo isso é muito duro. Trabalhei com uma pessoa que chegou do Ceará com 19 anos indicado por um irmão, foi do posto de pia ao cargo de maître, e disse que até hoje, com 47 anos, nunca passou um réveillon com a família dele. As escalas são duras, essas pessoas trabalham jornadas de 8h legalmente mas sabemos que são sempre mais longas; há sempre o famoso "extra" na mão para fazer um domingo a mais, dobrar para o segundo turno para complementar a renda, isso porque já passam em média de 3 a 4 horas por dia no caminho entre casa e o trabalho, porta a porta. Se somar tudo isso, entendemos que ele está dedicado a esse trabalho pelo menos 16h por dia, na maioria das vezes.
O modelo de trabalho na restauração é escravocrata na sua essência. Escutamos em todos os grupos de empresários que não há colaboradores para trabalhar; dizem que ninguém quer trabalhar, todos só querem fazer extra. Claro que querem ser extra, o benefício que se tem como CLT não volta em saúde, educação, segurança pública, transporte. Quem faz extra decide se é aniversário da filha e escolhe não trabalhar naquele dia. Trabalha o dia que quiser, a hora que quiser. Na ponta do lápis, vai por no bolso um valor maior que um garçom que trabalha de carteira assinada botaria. Agora, principalmente depois da pandemia, as pessoas estão escolhendo o que querem para a vida delas porque a morte ficou muito próxima. E pensam, com razão: vou morrer sem ter vivido?
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