Entrevista: Tuca Mineiro e Luciene Mota, produtores de cafés orgânicos especiais
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Não sei se pela curiosidade que nasceu comigo, pelas prerrogativas da profissão ou por uma fusão entusiasmada dos dois, mas sempre que me aproximo de um assunto que me interessa — e costuma ser comida, bebida, cultura —, investigo e estudo até onde puder, do beabá mais primário ao detalhe mais insólito. Nada, porém, substitui a escuta, o tempo precioso de prosa com quem faz, coisa que tenho vivido com intensidade nos últimos anos, em permanente estado de reportagem. Apesar de andar há tempos com vários cafés diferentes na despensa e na cabeça, eu, um curioso de cidade grande, só fui entender um pouco do que era café especial mesmo no fim do ano passado, quando sujei os sapatos de lama visitando pela primeira vez um produtor de café especial, o Tuca, do Uca Café Orgânico Especial, na roça, e na semana passada, quando entrevistei outra produtora, a Luciene Mota, do Luci Café Orgânico (dessa vez, à distância).
Os dois não se conhecem, mas vivem e mantêm seus cafezais no Sul de Minas, junto da Serra da Mantiqueira, a um par horas de distância um do outro, e são adeptos do manejo orgânico* e agroecológico**, cada um à sua maneira. Conversando com eles me lembrei o significado real de se levantar essa bandeira: engendrar de vez um elo inegociável de respeito, proteção e responsabilidade com o planeta, consigo mesmo e os seus, com seu redor e as gerações futuras. São gente que percebe o tempo da natureza e escolhe trabalhar junto dela, com paciência, intimidade e atenção, e é gente assim, livre e corajosa, gente que olha nos olhos, que mais me interessa escutar. Supunha saber, mas só de perto entendi que o caminho até o gole de um bom café especial é realmente longo, e em todas as etapas o cuidado humano é imenso, como tem que ser.
Conheci os cafés do Tuca pela Laís Aoki, sommelière e amiga que admiro, e que numa continuação natural dessa teia que se forma em torno de quem consome e apoia produtos de verdade, feitos por gente, fez chegar até mim um pacote num acaso, em uma degustação de vinhos. Visitando o interior de São Paulo alguns meses depois, não tive dúvida: estiquei até o sítio Baixão da Serra, no município de Caldas, quase em Poços de Caldas, num dia de chuva fina. Lá, Delmar Benelli, o Tuca Mineiro, como é conhecido, nos recebeu em sua casa, passou um café no alpendre e nos levou para ver as bananeiras, feijões, abacateiros, ninhos de cobra, voos de pardais de corações a mil e outros trilhões de vidas trançadas nas fileiras do seu cafezal.
Enquanto caminhávamos sobre a terra íngreme, Tuca foi contando que depois de alguns anos viajando pelo mundo resolveu se render à vocação da sua região e à tradição da sua família — o café —, mas rompendo com os padrões vigentes da produção comercial que o rodeia, feita de plantas cansadas, de rendimento alto, forçosamente apressadas por agrotóxicos, e cafés doentes, mortos bem antes da água quente. O contrário do que faz aqui, em escala pequena, natural e pessoal. Praticamente sozinho, ele cuida, espera, colhe, lava e separa os que flutuam, mais secos (os “bóia”), dos verdes, ainda imaturos, e dos cereja, aqueles redondamente maduros e vermelhos, que estão perfeitos para serem apanhados. Depois, deixa secar em terreiros suspensos do chão, quando tudo, mais uma vez, depende do tempo e da vontade do sol em fazer evaporar a umidade dos grãos o suficiente para que possam ser torrados. Na última safra, fez uma estufa para espantar o tempo frio.
Leva para sua tulha***, no abrigo da luz e do calor, até uma máquina que descasca os frutos do café. Então descansa os lotes por alguns meses “para que os grãos se equalizem”, torra, descansa mais um tanto, embala e vende, vigiando a qualidade e a saúde de tudo, do início ao fim. “Por ser uma produção muito pequena, muito restrita, tudo manual e sem veneno, não entro na lógica do mercado de aceleração total da produção, então tenho um tempo maior para trabalhar esses cafés, no momento que acho que é melhor para eles.” De lá, as cascas do café viram adubo para a terra junto com as cascas dos ovos que suas galinhas põem pelo quintal, ao lado de outros preparados feitos com os insumos que a própria terra dá, como colônias de microorganismos eficientes alimentados com melado de cana, feitas a partir de tubos de bambu recheados de arroz branco cozido que deixa fermentar em uma área de reserva verde, tudo com o intuito de nutrir e regenerar.
De volta ao alpendre, colhemos alguns limões-cravo e outros galegos (os mais miúdos, de casca verde e lisa) para levar, comprei alguns cafés, ele nos preparou uma tapioca com os ovos caipiras que tinha acabado de apanhar e filtrou seu “frutas vermelhas” um café feito de catuaí vermelho, uma das variedades que cultiva, e que naquela manhã lembrava morangos e amoras. Era um grande café, com gosto de fruta mordida do pé, e que na boca, em forma de gosto, cheiro, cor e saliva, resumia docemente tudo o que tinha vindo antes para que ele estivesse ali, elétrico.
Na hora, lembrei que guardava numa gaveta da memória um café parecido que já tinha provado, com a mesma sensação vibrante de vida, torrado pela Tocaya. Fui atrás do pacote e li o nome da Luciene Mota, cafeicultora por trás do sítio Alecrim Dourado, no bairro do Alecrim, em Pedralva, perto de Itajubá. Depois de conversar com Luciene, logo entendi que a afinidade não era só na xícara, e que seu trabalho também era minucioso, da capina incansável nos tratos culturais até um pós-colheita feito com muito esmero para que o café mantenha seu potencial intacto. Além de vender as sacas do seu café verde para a Tocaya torrar, agora também vende seu próprio café, o Luci Café Orgânico, e abraça todas as etapas do processo, salvo a torra, que hoje é feita em uma cafeteria em São Lourenço, e em breve, também será feita em sua propriedade.
Trocamos áudios inacabáveis no WhatsApp, e tomando um café do lado de cá, senti a mineirice mansa de quem vive em sintonia fina com a terra onde pisa, a sabedoria serena de quem forjou o próprio caminho com altivez, trabalho duro e uma paixão genuína e destemida pelo que faz. Com seu marido, Wilson, ela cultiva alguns mil pés de catuaí amarelo, catuaí vermelho e arara (uma variedade de café de fruto bem amarelo e graúdo) no terreno de um sítio cedido por antigos clientes que viraram amigos. Como nosso encontro não foi pessoal, pelas entranhas do seu cafezal, fui perguntando e ela contando e ensinando coisas lindas, que decidi transcrever aqui em alguns trechos das suas falas que ainda ecoam em mim pela beleza, força e generosidade que têm.
MH: Luciene, me conte um pouco da sua história? E da sua história com o café especial?
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