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Toda quarta-feira tenho certeza que não vou conseguir. Quinta, uma luz fraca vai se acendendo ao longe, acenando seu gostinho de esperança. Sexta já tô de cabeça feita: tenho certeza que vai sair mais um texto da newsletter naquele domingo, e suspiro de alegria. Claro que há sempre pensamentos escritos “de gaveta", como se fala no jornalismo para pautas sem muito prazo de validade, mas a verdade é que, de todo jeito, cada semana é um novo começo no exercício dessa escrita tão pessoal que ponho aqui, feita de palavras juntas e frios na barriga. A graça de costurar tudo na hora me completa profundamente: pescar aquela palavra solta, revisar tomando café quente, buscando a letra que comi, o sentimento que escondi, uma tirada que lembrei, a volta que dei buscando me fazer entender.
O impulso inadiável da escrita me enfeitiça, mas também cuida do meu juízo em dias assim, confusos como esses últimos, depois de ver a política do Brasil rolando na lama. Quando entendi que talvez pudesse escrever crônicas ou qualquer texto de contornos mais próprios e frouxos para mais gente ler, me perguntei se o cronista não era aquele que saberia escrever sobre tudo — pois eu não saberia, nem pretendia carregar esse peso vaidoso que é saber demais.
Apesar do diploma e da alma de jornalista, da intuição pulguenta e permanente da dúvida, da curiosidade desmedida, não acho que o jornalista ou qualquer outro precise ter opinião formada sobre tudo, e os que pretendem tê-las, adianto, não simpatizo. Quer riqueza maior do que saber dizer que não se sabe de alguma coisa? Ensejo mais lindo para se aprender qualquer outra ideia nova?
O imprevisível, o desconhecido, o ainda-não-sabido são meus fiéis melhores amigos; são o fermento que meu peito precisa para seguir vivendo de escrever. E se o dia-a-dia escorre pelos os dedos sem que a gente se dê conta, quem proseia sobre o cotidiano tem na manga fértil do tempo as cartas dadas pela própria vida, vasta e incerta. Por que não se inundar dela? "Olhe ao redor", recomenda o poeta tcheco Rainer Maria Rilke em Cartas a um jovem poeta, uma dessas joias de cabeceira para quem ama a escrita.
Houve fases em que escrevi muito, desesperadamente. Sentia-me muito vivo. Resgatei de uma delas a falta que me fazia uma escrivaninha para trabalhar e estudar, naquela altura da vida. No segundo andar dos meus privilégios, num apartamento 203 de Copacabana, constatei que precisava ter mais conforto para escrever em casa já que sou jornalista sem redação, trabalhando onde durmo mesmo antes disso virar a regra. Ainda por cima, tenho hérnias de disco; duas, aos vinte e nove.
Liberei espaço no sala-quarto onde vivia para encaixar essa mesa feita para se escrever, com nome bom de falar. Tirei uma folga do computador quente no colo da almofada e saí à procura de escrivaninhas na rua. Não sabia que seria subitamente feliz perguntando “você tem escrivaninha?” nos antiquários e lojas de móveis do meu bairro do coração, onde nasci e vivi pela maior parte da minha vida até agora.
Foi só no exercício da palavra dita em Copacabana que cheguei à conclusão que escrivaninha era um desses falares dotados de graça particular. Que era um diminutivo em essência: ninguém quis alisar sua cabeça e fazê-la mais fofa ou infantil, simplesmente nasceu assim, melosa e faceira. Uma tarde inteira dizendo escrivaninha me deu uma sensação parecida de quando um tiê-sangue cruzou meu caminho em Paraty: uma esperança, uma sorte, um sopro de flor. Como quando se vê um cajueiro ao vivo pela primeira ou milésima vez, ou quando se acha um bilhete de amor (ou uma nota de dois ou dez reais) no bolso da calça, depois de idas e vindas da vida ou da máquina de lavar.
Mas tê-la era mais concreto que falar de suas qualidades relaxantes. Na rua me senti feliz, é verdade, mas não encontrei nenhuma do modo que pensava, do preço que podia pagar. Bem que tento, mas é difícil resistir à precisão cirúrgica da tecnologia: dois cliques e encontrei pencas como as que havia sonhado, antiguinhas, pernas longas, madeira escura mas não muito, gavetas fundas e úteis. Uma delas estava em cartaz num site de leilões onde já fiz alguns bons achados, dica de um amigo. “Apresenta três espaçosas gavetas laterais e gavetão central, com divisórias para canetas, clipes e elásticos. Toda maciça. Pernas retas”, carimbava o anúncio, categórico, apaixonante. Era exatamente como queria! Esse instante pequeno se perfumou de óleo de peroba, brilhoso e escorregadio; senti meu coração disparar. Pude sonhar com ela, fazer planos de enfeitá-la de flor nas manhãs folgadas, água com pastilha de vitamina C chiando quando a garganta arranhasse, café coado todo-dia, farelos e calhamaços de papel, marcas de copos depois de desistir de evitá-las, miudezas que simplesmente não consigo jogar fora, livros, durex, óculos de grau, canetas, pontos, pontas.
Vi que tínhamos um futuro fértil pela frente, mas decidi rolar até o final do anúncio, essa mania de seguir em frente, e emudeci. "Feita em madeira nobre, pertencente ao primeiro quartel do século XX” terminava, gelada, a descrição. Não bateu bem. Tenho minhas reservas óbvias com o militarismo, ainda mais nesses últimos anos, no momento mais áspero e retrógrado do país, à beira de um novo abismo. Como iria guardar dentro de casa um móvel que nasceu e viveu para um exército de homens treinados para o pior, dentro de um quartel, o primeiro quartel do século XX?
Algarismos romanos são coisa séria, pensei, meio apavorado. A mesa foi rapidamente destituída do título de escrivaninha, que não merecia, e virou peça de museu. De um museu militar. Virou mesa, essa palavra chata, curta, sem muita emoção, emissão vocal ou interesse de árvore. O que teria visto aquela escrivaninha antes de virar mesa, em tempos tão tortos? Logo ela, toda maciça e cheia de divisórias. Certamente, os horrores da ditadura. Não dei conta de sublimar o fardo; era pesado para mim e seria para minha escrita. Era linda e barata e maciça e podem achar que é bobagem minha, mas não comprei. Que vá ao gabinete de alguém que não se importe com seu passado. Acabei encomendando uma nova de uma loja moderninha da internet, empresa de mulheres, madeira de reflorestamento, trilhos na parede, sem pés fincados no chão. Sem grandes predicados, mas de ficha e cabeça limpa. Melhor assim.
Em Portugal chamam escrivaninhas de secretárias, não sabem o que estão perdendo. Por outro lado, compensam com a mais completa vulgarização do uso de diminutivos onde puderem, transbordam carinho e cuidado em tudo. Cada vez que ouço e descubro um novo inho por aqui, pauso o mundo e me derreto. Quem não gosta de diminutivos nega joaninhas em suas próprias essências pequenas e pintadas, vermelhas de bolas pretas, para começo de conversa. Quem gosta, aqui, pode ter um mundo mais leve diante dos olhos: vai tomar água fresquinha, e o fino, que é como se chama o chope em Coimbra, rapidamente virará um finito, com pegada meio castelhana. Manteiguinha sempre posta à mesa, beijo é beijinho, um mero obrigado pode virar obrigadinho “e a nata também caseirinha", já me disse uma senhora para dizer que a nata, o apelido de quatro letras para o pastel de nata, era de fabrico próprio. Apesar disso, o costume é de servi-los frios, o que diminui um bocado a graça que têm quando estalam quentes na boca. Brincar com cachorro aqui é fazer festinha, e no Porto, o prato-símbolo é a francesinha, nascida assim como se fosse pequena, mas que é um senhor sanduíche de prato, com carnes, ovo, queijo e um molho ralo delicioso.
“Se gosto de poesia? Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos, amizade, amor. Acho que a poesia está contida em tudo isso.”
— Carlos Drummond de Andrade
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