Espirrava baixinho como convém a uma senhora pequena. Cabelos curtos, bem brancos, ainda com a marca dos dentes do pente. Saía para comprar biscoito de polvilho na feira todas as quintas com o vestido envelope de algodão na altura dos joelhos, deixando de fora as canelas ruças, calçando sapatos surrados de couro preto com a cara mais confortável do mundo. Passava reto e desejosa pela banca de flores, sem nunca parar. Achava comprar flores o maior luxo que alguém podia se dar. Uma falta de coragem a corroía por dentro porque eram sempre um dinheiro perdido: cumpririam sua função de serem belas e morreriam logo depois? Estavam sempre fadadas ao fim. Como nós, mas muito mais rápido, ela pensava sem dizer. Ficava arrasada só de imaginá-las definhando, juntando mosquito, mofando a água, e tanta gente sem comida no mundo. Voltava leve mordendo o biscoito de vento, pensativa e primaveril. As flores vivas guardadas na memória.
Depois que viu o único filho entrar num avião para nunca mais voltar, entendeu sem mágoas que seria mesmo só. Nunca criou filho para ficar na barra de sua saia, mas para ter uma vida melhor que a dela. Nem esperou, igualmente, nada em troca por todo o investimento que fez no garoto para que se tornasse comissário de bordo. A vizinhada fofoqueira insinuava, mas ela não se amargava dele nunca tê-la chamado para voar. Se ele estava feliz, ela sentia-se bem. Nem ter filho queria, mas já que teve, amou e cuidou.
O marido vivo dava mais trabalho que companhia. Ao seu lado sentia-se irritantemente só. Respondia às perguntas dela com outras perguntas, trocava o nome dela com de outras mulheres. Parecia se incomodar até de vê-la sorrir. Tinha deixado de falar ou fazer coisas de amor desde que ela tinha perdido o segundo projeto de filho. Não a perdoou por escolher com chá de arruda o que fazer com seu próprio corpo de mulher. Mas sair dali era mexer num vespeiro, e foi achando, engenhosa, seu jeito de continuar.
Quando o marido morreu, sentiu uma alegria singular minutos depois do enterro. A última pá arrancou do seu peito um suspiro de liberdade que nem ela sabia que viria. Nas primeiras noites o silêncio da casa incomodava simplesmente porque era estranho aos últimos 50 anos. Não demorou para que se apaixonasse por ele, o silêncio, preenchido pelos barulhos abafados da cidade. Os conhecidos telefonavam, insistiam, se plantavam no seu portão, não entendiam que tudo que ela queria era espaço. Espaço para ser, agora sim, inteiramente só. Dita gostava do silêncio. Não havia melancolia ali. Apreciava imensamente não ser mais obrigada a ouvir a televisão matraquear quase vinte e quatro horas por dia.
Sem o marido em casa, começava a fazer em todos os cômodos as coisas que ele não gostava que ela fizesse. Quando ia de cotonete na mão limpar os ouvidos no sofá e ele a repreendia, criticando seu gosto por esse grande prazer de enroscar a pontinha do algodão dentro da sua orelha miúda, sem furo de brinco. Agora Dita limpava sem pressa os ouvidos na sala, na cozinha, no quarto, até no quintal, olhando o céu, sentadinha num tamborete de plástico branco. Em todo lugar, menos no banheiro, onde o fez por todas as últimas décadas, disfarçada entre a cortina de vapor do banho quente.
Adorava estar só e calada, ouvindo os barulhos que ela mesma escolhia fazer: a agulha tocando o disco de Odair José, de quando era moça, a água molhando os vasos antigos de cimento com espadas fortes de São Jorge, o som sempre diferente do fósforo riscando a caixa para acender o fogão. Uma vez sentou no chão de tanto rir quando a cabeça de um fósforo desgovernado se desprendeu do palito e foi parar no seu couro cabeludo, queimando-a por um segundo, arrancando-lhe um tufo. Não lembrava a última vez que tinha sentado no chão.
Todo dia pegava um pouco daquela latona de doce de leite mineiro que o velho não queria que ela comesse na sua frente porque ele vivia com o açúcar alto. Desfilava pela casa saltitando de lata e colher na mão, lambuzada de prazer. Gostava de saber que ia morrer e tinha, ao menos, conseguido realizar os pequenos deleites que uma vida vivida pensando nos outros tinha a feito esquecer. Aos oitenta, sentia-se pronta.
Tem gente que nasce e morre com uma risada presa na boca. Dona Dita era uma dessas. Do tipo que ri com os olhos, com os dedos da mão, balançando a cabeça para os lados em negação, sem nunca gargalhar ou rir de sentir a barriga doer. Mas ria. Todo dia, um pouquinho que fosse. Tinha qualquer tipo de vocação para ser feliz e nem sabia muito bem o porquê: faltava dinheiro, disposição, planos, motivos de revista, só não faltava vontade de rir de qualquer coisinha, de varrer qualquer rusga do dia para debaixo do tapete e voltar de novo a se sentir satisfeita, entregue ao dom do destino, sem maiores pendências. Ia tocando em frente, pequena e inteira.
No dia em que morreu, uma quinta, ela sabia que seria o último dia. Não sabia explicar para o espelho — simplesmente sabia. Raspou o tacho da conta e do porta-níquel de motivo chinês e encheu de flores o carrinho de feira. Rosas, lírios, margaridas, girassóis, antúrios vermelhos, gérberas roxas e cravos brancos. Só dispensou os tingidos com anilina azul. A florista não entendeu a comoção da mais nova freguesa, velha conhecida que sempre vira passar de longe, sem nunca parar. Dessa vez, tinha arrematado grande parte da barraca mergulhada em baldes. Embrulhou tudo no papel presunto e entregou à senhorinha, que cheirava, ela própria, a leite de rosas.
Enfeitou a casa com gosto, como quem dá uma festa. Limpou os ouvidos, tomou suco de goiaba e deitou lá pelas três da tarde no sofá, pernocas para o ar perfumado. Partiu delicada, a cabeça suave, feito um periquito. Deixou uma única coisa escrita com sua letra pastosa, de caneta vermelha, em cima da muda tevê: morri, mas vou em paz — importa é que as flores ficaram vivas.
tô tirando o atraso dos textos não lidos e, nossa, que pausa bonita parar pra secar as lágrimas depois de me deparar com esse. <3
Tá lindo demais 💘