
Tinha uma mesa redonda porque sempre poderia chegar mais um. Não era de quinas, mas de possibilidades de cadeiras. Mantinha uma pilha delas num canto do quintal porque precisava ver todo mundo comendo sentado na grande mesa, do jeito que qualquer um quisesse. Pensava que essa coisa de não poder comer assim ou assado era mania de rico. Achava comer sem camisa, de biquíni, de colher ou de mão a coisa mais natural e bonita do mundo. Para ela não tinha nada mais importante do que estar ali, fosse como fosse. Nada mais prazeroso do que aqueles domingos, as mesmas conversas, a mesma galinha com macarrão, o mesmo sorvete trifásico de creme, chocolate e abacate no pirex fundo, a única coisa feita de véspera. Partido-alto, feijão fervendo, cerveja geladíssima e gente que ela gostava. Um dia de paz, mesmo que não fosse de pernas pro ar, como nunca conseguia ficar.
Já que acordava cedo todos os dias, aos domingos não era diferente. Fazia a feira para a patroa quase todos os dias, mas no domingo era diferente. Era a feira do seu bairro, feira onde ia com a roupa que bem entendia, onde todo mundo a conhecia de verdade, como pessoa física. Levantava na paz do Senhor vestindo uma alegria discreta, com a cabeça no almoço daquele dia. No trabalho só fazia cozinhar, mas era em sua casa a única refeição da semana que preparava com tremendo e completo prazer, com o coração inteiro devoto ali. Não fingia gostar de cozinhar no trabalho. Não gostava — e era trabalho. Guardava essa coisa de cozinhar com amor quando estava entre os seus, sem ninguém lhe azucrinando as ideias. E dava gosto vê-la ocupar a cozinha de outro jeito, relaxada, com a entrega de quem prepara um banho vivo de ervas.
Alfazema no cangote, vestido fresquinho e cabelos soltos, caminhava devagar as três quadras para baixo até chegar ao Largo da Ajuda, onde a feira se armava. Era apertar o ritmo e danava a doer o pé que torceu feio outro dia, voltando do trabalho. O ônibus, freando aos solavancos, a fez pisar em falso, e dizia a mesma coisa quando alguém lhe perguntava se ainda doía: é uma dor que arde. Era ainda pior antes de Joana Gunça aparecer numa daquelas tardes e receitar um preparado que tratou de firmar seu movimento. Com as ervas certas, machucadas na cuia cantando seu ponto baixinho, esfregadas com fé no calcanhar apressado, tinha ganhado os caminhos e a força do passo de volta.
Ela estava em seu castelo pra que foram lhe chamar
É ela Joana Gunça
É ela a flor do mar
Maresia é seu cavalo ela não pode andar a pé
É ela Joana Gunça
É ela a flor do mar
Todo sábado dizem que vão vir comigo para que eu não carregue peso, mas cadê que alguém acorda? Feira tarde é feira feia, me deixe, eu digo quando apertam minha mente, me chamando de teimosa. E venho. Me pico. Chego aqui e tomo um caldo de cana com calma; gosto de estar sozinha com meus pensamentos. Meio quilo de cebolas, dois molhos de cebolinha, o dobro de coentro. Tomates maduros, pimentão verde, pimentinhas todas, cabeças roxas de alho, tudo dentro desse meu carrinho velho de guerra. Quiabos só quando estão realmente bonitos e nem carece quebrar as pontas pra saber. Feijão catado só quando o preço é amigo. O cominho de Zete, moído na hora. Corante-colorau porque leva o sol pra comida.
Rumo no fim pra lona do Manel, que já tem separada uma galinha bem bonita, toda tratada e recheada com os miúdos, do jeito que eu peço e gosto. Quem vem chegando sempre traz uma coisinha acessória: a vizinha o vinagrete, a sobrinha a maionese, o cunhado a farofa, o irmão o arroz... As cervejas e os refrigerantes de sempre. Ninguém combina mas dá certo e nunca nada falta. Sabem que a galinha, o macarrão e o feijão são meus. São comigo. Na hora chiada do pinga e frita, se tiver roupa na corda, eu peço que tirem para que não pegue o cheiro, e porque aquela imagem me desorganiza.
Fundo de quintal, panelas cheias no fogão, os pratos rasos de vidro emborcados na toalha plástica da mesa, tudo esperando a hora do sim. A vida era longe de ser perfeita, mas naqueles domingos, parecia chegar perto. Música pros seus ouvidos era ver todo mundo comendo feliz. Ela inventava afazeres na cozinha e reparava de camarote o modo como cada um gemia de prazer. Secava uma cumbuca, via um apertar os olhos chupando a coxinha. Bicava sua gelada, ouvia outra elogiar a pimenta que tava pegando feito a peste. Gostava especialmente do momento em que misturavam arroz, macarrão e feijão, encontro interdito nas casas metidas dos brancos. Cada um ali, mesmo com suas diferenças, era melhor junto que separado. Comida e gente. Era o que acreditava e dizia. Marcília, chefe de família.
Adorei, especialmente o colorau que traz o sol para a comida 💫
Deu pra sentir o cheiro da comida... o zum zum zum das conversas , as risadas ... e ouvir o silêncio de D Marcília , observando tudo. E feliz , com todos esse barulho de gente.