Era uma dessas manhãs laranjas de verão, voltando de um mergulho rápido no mar de Copacabana. Enquanto pedia um mate e um pastel de carne que só as casas de suco do Rio sabem fazer, me encolhi ao ver uma senhora loura com a barriga trincada entregar um envelope para o moço atrás do balcão. Seria mais bonito dizer que se tratava de bilhete, uma boa gorjeta, um apanhado de poemas ou qualquer coisa mais simpática, mas não: era um sachê de suplemento alimentar. Algo parecido com um whey protein, mas enriquecido com todos os nutrientes e benefícios que se podia imaginar, gritando em letras garrafais. O sabor do pó fino, que dó, era de banana, mesmo tendo bananas em pencas, de todos os graus de madureza, enfeitando os cantos da prateleira multicolorida. Em vez da fruta em si, enzimas, aromas, adoçantes e outros produtos distantes de qualquer coisa palpável, explicadas em termos cada vez mais difíceis de entender. Pelo menos para mim, que como por prazer.
Lembro de uma campanha de tevê que assisti na adolescência e tinha a Luciana Gimenez como garota-propaganda, era um plano de emagrecimento que durava uma semana, com nome em inglês. Além dos shakes já comuns nesse tipo de dieta, o que mais me intrigou foram as sopas em pó e barras de cereais salgadas, como a de frango com arroz e legumes. Dá pra imaginar? Outra marca, mais atual, pipocou como um anúncio que vi nas redes sociais vendendo refeições supostamente completas dentro de uma garrafa de plástico — bastaria completar com água, agitar e pronto, fez-se um almoço em dois tempos. O próprio site da empresa diz que a linha surgiu para quem não tem tempo, oportunidade ou vontade de cozinhar. Um atalho para quem não quer parar de trabalhar e render-se à tarefa penosa de ir às compras, escolher alimentos frescos, deixar que eles estraguem e juntem mosquito antes que seja tarde demais. Parece mesmo prático, não? É por artimanhas assim que, num pulo, já estamos terceirizando tudo o que comemos, deixando que cápsulas suplementem nossa alimentação para que não tenhamos que nos preocupar mais com ela, curando todas nossas lacunas.
Não vai pegar, ponderei, sem querer acreditar que as pessoas se privariam de comer o que gostam seja lá pelo que fosse. É raro, mas já cruzei com quem não ligue para isso. Nem todo mundo tem um prato favorito, espreme os olhos e faz bico quando ouve “feijoadinha”, sente o coração disparar quando alguém deseja “bom apetite”, enquanto o prato feito pousa na mesa. Ou enche a boca d’água em ver ou só em pensar em caquis da época, mesmo sem gostar tanto de caquis. Não vivem pra comer, são o tipo feliz com um mesmo prato ou com pequeníssimas variações todos os dias, e acham que cozinhar é uma grande perda de tempo. Nem todo mundo pensa que beterrabas têm cor linda quando cortadas pela primeira vez e que todas as cenouras são colhidas puxadas pelos cabelos. Seria romantismo demais da minha parte achar que sim, eu sei, até porque tem gente que nem isso pode escolher sentir. Mas há quem reduza tudo a nutriente, não se demore em nada que não seja prático, objetivo, eficiente. Reduzem comida literalmente a pó, descolando todas suas cores do contexto social e cultural tão profundos que os alimentos carregam, os resumindo à sua mera funcionalidade — vem daí, aliás, a banalização do termo funcional para falar desse tema.
Essa mania tem nome de doença, nutricionismo, a junção de reducionismo com nutrição, um termo cunhado pelo pesquisador australiano Gyorgy Scrinis, e é discutido nesse episódio do podcast Prato Cheio, que recomendo muito a quem se interessar pelo assunto (e fala do projeto bizarro de ração humana que João Dória e a igreja católica tentaram emplacar em São Paulo alguns anos atrás). Quem se ajusta a esse estilo de vida acaba vendo um prato de comida como um gráfico de nutrientes, não como a colcha de retalhos de afetos e pertencimento que pode ser. Assim, sem perceber, deixam a comensalidade de lado, rasgando as dimensões humanas de memória, da construção e da troca conjunta de experiências ao redor da mesa. Não importa de onde o alimento vem, como é feito, quem está por trás, que história tem, mas sim suas propriedades, benesses e prejuízos ao corpo. Uma corrente de pensamento que separa alimentos entre o bem e o mal, bane frituras, açúcar, farinha ou arroz branco de uma vida inteira, condenando ao fim uma teia complexa de humanidades.
Na corredeira das tendências vazias, acabamos nos agarrando em alguma novidade qua indústria alimentícia escolheu que a gente amasse. Nos pegamos lanchando um pacote de biscoito com cheiro de pum, tomando um chá enlatado que tem mais conservantes que extrato de folha, esquecendo a última vez que se descascou uma laranja para chupar, que se furou uma tangerina com o polegar, perfumando o ar. Quando nos damos conta, o bonde passou: esquecemos de nos conectar com o que comemos, com o amor despendido em cada receita de família, e boiamos num mar de produtos desalmados, esbarrando com transtornos alimentares e uma obsessão perigosa pela própria imagem refletida no espelho. Enfim, conseguem o que querem: emboloram nossa relação com a comida, que passar a existir como um casamento infeliz, uma relação abusiva, no modo automático. Quem ganha e quem perde com isso, o palpite deixo com quem lê.
Numa das esquetes de Cócegas, peça de teatro responsável por moldar boa parte do meu humor, Heloísa Perissé interpretou Miss Mossoró, personagem que fazia uma sátira cirúrgica desse culto exagerado ao corpo. Ria alto quando a ouvia contar que nas festas infantis, enquanto todos se esbaldavam com docinhos de uma mordida só, ela se contentava com um copo de guaraná diet — e quando extrapolava era porque tinha colocado gelo. Talvez sem se darem conta da gravidade de todo esse relativismo, é o que acabam pregando médicos sem noção, que ganham rios de dinheiro a custa de dietas ultra-restritivas embaladas a vácuo ou prescrevendo uma pretensa reeducação alimentar que só afasta as pessoas do alimento e de suas potências. Uma dessas, que conheci por meio de uma amiga, nem se apresenta como nutricionista, como mas como educadora alimentar. Avessa a dietas, apavora seus pacientes a partir de uma série de ensinamentos taxativos que devem ser levados para a vida: verdades absolutas como a de que o papel alumínio jamais pode tocar a cebola no forno, por exemplo, e nenhum alimento brotado deve ser consumido. Isso significa que aquela cabeça de alho esquecida na porta da geladeira tem de ir pro lixo, mesmo que você já esteja cansado de saber que nesse país, milhões morrem de fome.
Fritando minha paciência, vi um vídeo seu dizendo que alho frito, dourado, nem pensar, já que acidifica o sangue, pro terror do Oswaldo Aranha e todos os seguidores do prato que é um dos pilares da cozinha tradicional do Rio de Janeiro. Alho cru vai bater mal, então nada de homus ou babaganoush, mesmo sendo descendente direto de libaneses. Misturar alho e cebola num refogado encantado? Também não deve ser feito: a escolha é entre um ou outro, já que juntos anulam suas ações medicinais, e são elas que devem prevalecer. Juntar duas proteínas animais num prato só é coisa inadmissível, pois são incompatíveis como água e óleo, e só dificultam a digestão. Dê adeus ao filé à cavalo, ao escalope de carne com molho madeira e arroz à piamontese, àquele peixinho à milanesa e qualquer coisa à carbonara. De primeira, já penso que quem joga comida no lixo, banindo tantas formas possíveis de comer, não deve trabalhar com alimentação. Desconfio sempre que vejo a palavra “descarte” em qualquer receita.
Cultura não se negocia, não se troca nem se põe na balança, e acredito, enfim, que achar um equilíbrio vale para tudo, e mais ainda quando se trata de alimentação. Com consciência, boa intenção e informação, dá pra ser feliz, saudável, boêmio e formiga, tudo ao mesmo tempo, meditando em cada dose. Comida de verdade, saúde e nutrição não vêm vestidos de cápsulas gelatinosas nem bebidas sintéticas, mas de frutas da época, vegetais de cabo a rabo, arroz e feijão. De variedade e biodiversidade, não de uma vida fadada à peito de frango com batata doce e brigadeiro fit nos mais indulgentes dos dias. Comida de verdade é a que é natural, simples, familiar, a que acontecia antes disso tudo virar assunto. Em tempos em que pelejamos para resgatar bandeiras importantes como o valor dos saberes tradicionais, profissionais, empresas e criadores de conteúdo que propagam o mosquito do nutricionismo são um atraso na nossa formação. Freiam nossa evolução em todas as frentes, reforçando cada vez mais uma ruptura com a cultura ancestral que nos põe de pé, pautada nos fazeres manuais, na relação com a natureza, com os sinais de nós mesmos, do céu e da terra. Isso sim faz milagre, faz um bem danado. Trata de nos alimentar o corpo, a alma e o que mais precisar de vida.
Como num acaso feliz, na última sexta-feira visitei a Naiara, minha amiga da época da faculdade que não via há anos. Quando a conheci tinha os cabelos lisos e longos, mas o mesmo jeito doce e sorriso quase lírico de hoje. Dois filhos depois, cortou os cabelos curtos porque não lhe sobrava tempo para cuidar deles, e muito antes disso deixou que seguissem sua vontade de cachear. Naiara diz que faz da vida um jogo, insiste em ver sinais em tudo, escreve e diz poesia pelos cantos: “Quero sugar o tutano da vida, amigo”. Abraçou a missão de maternar com sabedoria, se enxergando e se perdoando pelo caminho, e se esforça para que suas crias comam bem, mas sem neuras. Acredita de verdade que a forma como nos alimentamos desde cedo é decisiva para construir um país melhor. Mal sabia que esse assunto dominava minha cabeça quando me recebeu em sua cozinha com um jarro fecundo de suco de beterraba, cenoura, maracujá, mel e linhaça, feito por ela e seus garotos. Num gole só, senti esperança no futuro.