Mesas do cotidiano, mesas de festa
Reflexões sobre um colóquio luso-brasileiro de alimentação
Colóquio: um encontro de especialistas de determinado assunto com o objetivo de debater ideias ou discutir pontos de vista sobre um determinado tema. Não sou eu que digo, mas um dicionário amarelado, edição do século passado, e que passou de mãe para filho, guardando em seu recheio uma mecha do meu cabelo infantil. Confio nele (no dicionário, não no cabelo), para onde gosto de correr antes das telas quando quero saber o que as palavras são.
Aconteceu, há um par de semanas, um dos mais importantes eventos acadêmicos europeus que discutem o tema da alimentação, tão amplo, a partir de uma perspectiva inter-multidisciplinar que privilegia a dimensão cultural para se pensar de modo complexo as tantas camadas que revestem este assunto. Foi o 10º Colóquio DIAITA Luso-brasileiro de Património, História e Culturas da Alimentação, que em sua edição comemorativa de uma década, sob o tema Mesas do quotidiano & Mesas de festa, movimentou a Faculdade de Letras e outros locais históricos de Coimbra, cidade onde vivo. Além de apresentar minha pesquisa de mestrado, tive a oportunidade de fazer parte do evento de modo ainda mais ativo, integrando sua comissão executiva.
Encontros acadêmicos assim, grandes e coletivos, têm me ajudado a situar minha própria pesquisa dentro de um conjunto mais amplo de pesquisadores como eu. Também têm servido como um termômetro que me aponta, quando corro os olhos panorâmicos pelo programa que beira uma centena de falas, o modo como as coisas estão caminhando nesse campo de estudos, sobretudo nos trabalhos que pensam o Brasil. É estimulante ver pesquisas afins, que protagonizam debates, personagens e territórios tão comumente postos à margem, agentes de um Brasil que reivindica para si um papel mais central na história como um todo, mas, nesse caso, na história da alimentação, expandindo a compreensão muitas vezes limitada sobre o que fomos, somos e seremos quando se pensa nessa matéria tão cara.
Entre montar coffee breaks, entregar crachás, arrastar mesas e lidar com projetores e pendrives rebeldes, então, consegui assistir falas que me colocaram brilho nos olhos, me borbulhando o peito. Vi Alessandra Mansur, Doutora em Patrimônio Cultural e Sociedade, da Univille, falar do milho colorido a partir das literaturas indígenas e apresentá-las em português e na língua nativa de cada povo. Selma dos Santos, Doutora em Antropologia social, da UFG, pautou o adoecimento de mulheres indígenas com a progressiva mudança nos seus hábitos alimentares.
Ryzia Cardoso, docente da UFBA, discutiu o camarão seco como alimento identitário, popular e votivo da cozinha afro-baiana. Na conferência de encerramento sobre Marcelino de Carvalho, um literato paulistano ligado à etiqueta e às boas maneiras, o necessário contraponto com Carolina Maria de Jesus e sua crua literatura feita de dentro da favela do Canindé, ainda tão duramente atual.
Houve, ainda, aquelas que não consegui assistir, mas que, de muitos modos, falaram comigo: os usos da carne de fumeiro em Salvador, a farinha de mandioca como produto simbólico, o arroz de cuxá no Maranhão oitocentista, a insegurança alimentar discutida a partir dos Restaurantes Populares do Rio de Janeiro, o trabalho de cozinha e as relações sociais entre mulheres encarceradas e tantos, tantos outros. Igualmente confortante é encontrar que muitos desses, além da investigação fundamental, empenham-se na direção daquela que tem por objetivo principal transbordar as letras escritas e mudar a sociedade civil em concreto, ampliando o impacto para além do plano intelectual.
Eventos como esses, para acadêmicos veteranos ou novatos, como eu, servem também para trocar ideias, estreitar laços e construir novos. Nos corredores, tratei de driblar a timidez e me apresentar àqueles que admirava de longe, como Ana Carolina Viotti, Rafael Gonçalves e Gabriel Gurian, do Comer História, projeto que adoro e acompanho há tempos. Conheci Massimo Montanari, historiador italiano que é um dos pioneiros desse campo, nome que estampa a capa do livro História da Alimentação, que ganhei bem antes de pensar em estudar este tema tão a fundo.
Na conferência de abertura, Montanari discursou belamente sobre o tema dessa edição, costurando festa e cotidiano na comida camponesa e nas mesas da elite. Uma multidão de olhinhos sorridentes o assistiam. Apesar de especialista na Idade Média, me flechou em cheio com uma ideia que me pareceu atemporal: como as festas dos mais pobres exorcisam o medo da fome.
Caminhando por Coimbra entre uma palestra e o almoço, falei da minha pesquisa de mestrado e dos meus planos para o doutorado. Ele me contou sobre o mestrado que fundou na Universidade de Bolonha, ainda nos primeiros anos desse século, Storia e cultura dell'alimentazione, lançando esses termos ao mundo acadêmico de então, apegado em ver a alimentação como uma questão meramente biológica.
Generoso, me deu boas pistas por onde seguir, e anotou seu email em meu telefone, dizendo que esperava meu contato para enviar algumas referências que tinha sobre o assunto. Colhi suas expressões faciais e cada sugestão com o zelo de quem colhe flores raras. Desenferrujando meu italiano, agradeci a honra: Grazie, sarebbe un grande onore.
Às três da tarde do dia 24 de outubro, em uma sala suntuosa da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, cercado de livros de lombadas douradas, lustres imensos e cortinas pesadas, apresentei minha pesquisa de mestrado: comer “de mão” e o caso do capitão, que já está publicada para quem quiser ler. Foi logo depois do Professor José Newton Meneses, da UFMG, que dividiu seu estudo sobre a galinha ao molho pardo de Minas Gerais em narrativas memorialísticas e literárias. Falar desse Brasil no meio de um ambiente tão opulento não me intimidou ou me fez sentir deslocado. Pelo contrário: deixou na minha boca um gosto bom, subversivo de certo modo, marcado pela certeza de que esse Brasil pode e deve ocupar esses e todos outros espaços.
Apesar da cabeça que sonha alto e se empenha em reconhecer seu lugar, sinto-me ainda muito verde nos lugares acadêmicos por onde ando. Tateio com cuidado como esses eventos funcionam, a importância deles, dos aprendizados e das relações. A cada nova platéia em que sento ou tablado em que subo, aprendo e me entendo um pouco mais. Ajusto as expectativas, revejo as metas, os desejos e aspirações.
Sigo cada vez mais firme na minha intenção de colaborar na construção de sentidos mais honestos, críticos e inclusivos para se pensar as muitas e mutáveis culturas alimentares que constituem o Brasil em toda sua complexidade. Observando o que se come, como se come, onde, com quem, com o quê, feito por quem. Tudo para, no fim, falar de pessoas. Falar da gente.
a comida é um dos traços mais importantes de uma cultura. nada mais justo que ela seja estudada e debatida.
que bonito te ler. <3