Mil vezes milho
Regenerar para produzir: a força do milho nativo e colorido na minha visita ao sítio agroecológico da Alice Lutz, na Serra da Bocaina
Certas coisas que vivemos demoram um tempo específico para serem digeridas. Comigo, pelo menos, é assim: mais significativas são, mais lentas se decantam no jeito que me fizeram sentir. As coisas fortuitas escrevo logo, as mais profundas, demoro. Menos por medo de não dar conta de inventariar o olhar, mais pela necessidade de deixar que certas vivências se assentem por conta própria até que possam ser escritas. A lida respeitosa com a terra é uma dessas coisas: algo que mexe muito comigo, um movimento solene demais para um garoto urbano como eu, que vibra com gosto permanente de primeira vez quando vê a natureza se provando poderosa como é. Foi em março desse ano, mas só hoje senti na boca a madureza do que vivi nesse par de dias que passei no sítio São José, da Alice Lutz, minha amiga agricultora e cozinheira que vive e trabalha em São José do Barreiro, na Serra da Bocaina, na divisa entre o Rio e São Paulo. Tudo culpa de uma sensação grandiosa de pertencimento à terra úmida, de esperança no futuro que nasce pelas mãos de quem leva o facão na cintura, agachando para plantar de baixo, abrindo berços, deitando sementes, cuidando e vendo crescer até colher, comer e replantar. Alimentar e retornar ao início do ciclo outra vez: pé na terra e sol na tez.
Alice é o tipo de gente que se entrega em tudo o que faz — amores, trabalhos, causas, receitas — de um jeito muito farto e seu. Nos conhecemos numa iniciativa bem nerd como gostamos, que juntou gente que trabalha com cozinha para criar algo novo, potente e sustentável. Criamos o S.OBRA, uma obra sustentável, projeto que pôs em potes de vidro um novo destino à parte das xepas das feiras livres do Rio. Uma pimenta cheia de borogodó à base de caquis quase passados no outono, e de tangerinas maduríssimas no inverno, acenderam fogo novo na nossa vida por alguns meses. Não foi adiante, mas a gente foi. Passamos a viver em estado de poesia, eu e ela, trocando coisas nossas, pedindo um ao outro que revisássemos nossos próprios versos, porque ela também gosta de tirar as palavras para dançar, e o faz muito bem, em quantidades copiosas, típico de quem escreve para manter-se são. Depois de tudo ainda vi muito da minha mãe naquele colo. Ainda por cima, usavam a mesma colônia de gengibre que Alice me pedia e eu sempre esquecia de trazer quando viajava. Amizade de arianos, que quando começou, já parecia coisa de anos.
Moída pelo estresse do mundo anacrônico da tevê, onde nasceu e cresceu — e produziu Um Pé de Quê, prova que a fruta não cai longe do pé —, Alice agarrou o privilégio de poder deixar uma carreira sólida no seu auge para viver de cozinhar, o que já fazia há tempos. Quando a pandemia estourou, foi de mala e cuia morar num pedaço de terra da família, parte do movimento neoruralista que anda tão em alta mas que poucos fazem com responsabilidade, como Alice faz. Pôs em prática um plano compromissado de converter aquela terra, que em tempos longínquos deve ter visto monoculturas de cana e café, tradicionais nessa região, em um sistema orgânico e agroecológico, num modo saudável de coexistência entre espécies e biodiversidades múltiplas para produzir alimentos. Estudou, contratou gente estudada para ensinar, começou a plantar e colher. A vontade de visitar ficava comigo, no sonho.
Continue a leitura com um teste grátis de 7 dias
Assine prato feito para continuar lendo esta publicação e obtenha 7 dias de acesso gratuito aos arquivos completos de publicações.