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O fruto estrangeiro
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O fruto estrangeiro

Capricho de querer comer certas frutas em qualquer época do ano, em qualquer lugar do mundo, cobra um preço alto do planeta (além de não fazer sentido algum)

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Mateus Habib
out 23, 2022
∙ Pago
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Podia pensar em queijo com goiabada, mas queria mesmo presunto enrolado num naco de melão. Prosciutto e melone (se fala proxuto, carregando no X) é um clássico de Verão na Itália, onipresente até nas mesas mais modestas, aperitivo que prescinde de qualquer preocupação com jeitos de fazer — basta juntar um e outro, o embutido tradicional da cidadezinha de Parma, na região da Emilia-Romagna, e o melão cantaloupe*, o mais doce e perfumado, de polpa laranja suculenta e casca enrugada. Nem temperar é preciso, já que se bastam inteiramente, num resumo doce e salgado do mais redondo equilíbrio. Devia ter dezoito ou dezenove anos quando descobri isso, completamente inebriado, depois de ver a combinação luminosa num banquete em Sob o Sol da Toscana, comédia romântica bem anos 2000, em que uma escritora americana resolve mudar de vida comprando uma chácara centenária no interior da Itália, decidida a curar-se de um divórcio doloroso.

Queria repetir a cena do filme em casa, apesar de, nesta altura, estar cruzando uma realidade bem distante da personagem interpretada por Diane Lane. Eram meus anos de ouro na Universidade, os primeiros, tomando cerveja no copo de plástico do Sujinho, no campus da Praia Vermelha da UFRJ, meu primeiro lugar no mundo. No Brasil, ainda por cima, apesar dos melões abundantes e aquosos, como bons primos dos pepinos e melancias que são, o cantaloupe é um melão de luxo, e o presunto cru sempre foi caro por ser importado, também elevado ao patamar de produto nobre. Digo cru porque presunto, para nós, infelizmente virou uma massa cozida, ultraprocessada como uma salsicha, cheia de açúcar e proteína de soja, mas esse assunto fica para outra hora. No supermercado, então, desviava os olhos para outras coisas, e menos por consciência, mas pelo que era condizente com o que meu bolso de classe média podia pagar — e que não eram R$30 em seis fatias de presunto italiano, vindo do outro lado do mar. Não estava em Parma nem na Toscana, afinal, mas no Zona Sul da Bolívar, no meio de Copacabana, com um salário de estagiário.

Cena de “Sob o Sol da Toscana", num banquete italiano com presunto e melão

Assim que cheguei em Portugal, não resisti. Presunto com melão num dia qualquer, pago com moedinhas, foi o que fiz. Enquanto ninava a fruta na fila do caixa, a etiqueta úmida me soprou sua origem; ele mesmo, o Brasil. Matutei, dei outra volta e até busquei mais procedências nas prateleiras, mas acabei levando. Isso porque, enquanto em Portugal o presunto cru é local, bom e barato, os melões costumam vir de longe, já que a produção europeia não dá conta de satisfazer tantas vontades globalizadas. A Espanha e a própria Itália estão bem próximas do Brasil na produção mundial de melões**, mas abastecem seus próprios mercados e alguns outros bons pagadores, como a Holanda e o Reino Unido, onde melão e outros frutos mais parrudos não crescem nem por milagre divino. Em casa, tratei de abrir e limpar o melão e rasgar as fatias finas do presunto com as pontas dos dedos. Enrosquei um no outro, arrumei sem jeito num prato e levei até a boca num deleite total. Depois do prazer, a culpa. Pelo menos refleti e escrevi, me consolei, pensando sozinho.

Não se come frutas tropicais fora dos trópicos sem prejuízo ambiental, devia parecer meio óbvio, mas não é. Consumimos no automático, e é mesmo isso que a indústria global quer de nós: que não pensemos tão a fundo nas nossas escolhas, que não nos demos conta que hábitos alimentares trazidos de longe são, na grande parte das vezes, puro capricho de quem quer ter tudo, a qualquer hora, em qualquer lugar. Assim, fazem-nos desconsiderar o longo caminho que cada produto compramos possa ter feito para chegar até ali, sem questionar ou buscar a real vocação de cada lugar. Mesmo que pareça uma simples vontade, hábitos assim podem ter consequências graves. Incitam, por exemplo, aberrações do agronegócio brasileiro embebido em veneno, como monoculturas capazes de produzir (porque nessa altura nem falam mais em cultivo, só em fazer dinheiro) mais de um milhão de melões por dia só para abastecer o mercado externo.

Eu e meu melão brasileiro no supermercado daqui: sentimentos misturados

Desconhecemos e desvalorizamos os produtos locais, nativos e abundantes porque andamos ocupados demais comendo as mesmas coisas de sempre, independente do lugar ou da época do ano. E é por isso que as prateleiras daqui vivem cheias de abacaxis da Costa Rica, bananas colombianas feias de tão perfeitas e duras, com cara de plástico, complementando a produção local de bananas e abacaxis portugueses, dos arquipélagos dos Açores e da Madeira. Mas e se resolvêssemos variar o consumo, alternar nossas escolhas e comer só o que tem? Ou sou só eu que acho o transporte transatlântico de frutas frescas uma loucura descabida?

Por que raios, afinal, a penca de bananas-prata que comprei numa estrada em Paraty amadureceu na fruteira num par de dias e aqui, no interior português, bananas colombianas chegam no mercado ainda verdes? Passei as últimas semanas pesquisando esse tema a fundo, lendo artigos científicos e relatórios de todos os cantos que alargaram ainda mais o buraco em que achei que estávamos metidos. Vi detalhes sórdidos do que só desconfiava de longe: que frutas frescas viajam por muitas semanas singrando o oceano em navios cargueiros, em contêineres refrigerados equipados com geradores, tudo movido a diesel, o mais poluente dos combustíveis, e que há uma série de atalhos artificiais para retardar o processo de maturação das coitadas, colhidas e despachadas ainda verdes, bem antes da hora. Em vez de cesto de palha, faquinha afiada, cumbuca e mão melada, tudo anda enovelado num léxico laboratorial complexo, cheio de nomes técnicos, moléculas, experimentos e esquisitices que nem deveriam estar envolvidos quando falamos de coisa tão essencial como fruta.

Absolutamente tudo pode ser conduzido: a firmeza da polpa, a coloração da casca, a inibição da formação de fungos, a redução da desidratação natural que faz com que os frutos murchem. A ideia é congelar no tempo o avanço da deterioração da fruta, que por meio dessas manobras ultratecnológicas, pode se manter verde por meses até chegar nas mãos do consumidor final. Frutas que seguem amadurecendo mesmo depois de tiradas do pé, como bananas, goiabas e abacates, por exemplo, exalam uma quantidade maior de etileno, substância que avisa a todos seus poros que chegou a hora da mordida, confirmando sua maturação, amaciando sua carne, adoçando seu suco, arrumando a casa e aprontando a coisa toda. Nos contêineres que transportam esses frutos, portanto, tudo vai muito bem embalado em filme plástico de alta densidade (e haja lixo!), usam sachês absorventes que retiram a substância do ambiente, num efeito naftalina, ou dispersam no ar gases capazes de inibir a ação revolucionária do tal do etileno. Quando chegam ao destino final, vão para salas de maturação com temperatura e umidade controladas, além de etileno a rodo impregnado no ar. Maturam na hora, num estalar de dedos.

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