Domingos como o de hoje, pelo menos no Brasil, se levantam cedo da cama. É dia das mães, data que aprendemos a seguir e a celebrar, e quem gosta de cozinhar e tem o privilégio de escolher o que se põe na mesa costuma cumprir feliz a sina de preparar comida de festa. Arregaça as mangas da preguiça, abre espaço na geladeira e no coração e lança mão daquelas receitas especiais, que aparecem só de vez em quando, e que todo mundo espera e gosta. Seja para as famílias numerosas ou enxutas, para aquelas feitas de laços de sangue ou não, das casas mais modestas às mais abastadas, toda família que gosta de comer e beber junto tem sua comida de festa, seus pratos queridos postos em travessas no meio da mesa ou sobre as bocas do fogão, feitos para se servir à vontade, sem cerimônia, com os ombros baixos e o riso quente. O sentimento antecipa o próprio domingo, já que o preparo costuma começar bem antes dele. Dificilmente se faz comida de festa de uma hora para outra.
Não sei o que senti quando descobri que o Cervantes de Copacabana tinha fechado, só pensei que lá se ia mais um retalho gordo da nossa identidade. Com ele, seu sanduíche de pernil, pedida responsável por grande parte da fama boêmia que tinha. Lembro de esperar muitas vezes de pé na calçada da Prado Júnior por uma mesa no salão diminuto, mesmo nas horas mais altas da noite, olhando intrigado o letreiro de néon que tingia de vermelho aquele trecho de rua madrugada adentro. Ou me contentar com o balcão, comendo em pé, onde via toda a mágica acontecer. Sempre insisti, porém, que do Cervantes preferia o sanduíche de filé com queijo e abacaxi, e o motivo é minha régua desleal: nos últimos bons anos, por algum motivo que agradeço, pensar em comida de festa, para mim, é pensar em pernil de porco, um dos assados favoritos nos domingos mais especiais da minha família. E servido quente, no prato, muito suculento, acompanhado de maionese de batatas e cenouras, farofa torrada pacientemente no fogo baixo, feijão vermelho e arroz branquinho. Sanduíche é coisa para o dia seguinte, com o que sobra. Mas nunca sobra.
A dona dessa receita incomparável é a Drica, minha prima médica, que depois de abrir e fechar barrigas de mulheres em maternidades públicas do estado, resolve descansar, no fim de semana, pondo as mãos na melhor perna de porco da qual os nossos já tiveram notícia — e adianto, somos muitos. A marinada é demorada, vara dois ou três dias, e a lista de seus ingredientes, longuíssima. Vinho tinto, cebola roxa, alecrim, manjericão, suco de limão e azeite de oliva são alguns deles, todos colocados de olho e com muito alho, prerrogativa das receitas familiares assim, feitas com fluidez. A peça robusta, rosada e pesada do bicho é disposta com osso e tudo numa assadeira de alumínio de bordas altas, e furada inúmeras vezes, coberta com a mistura perfumada e enovelada num saco plástico. No par de dias que se seguem, a estrela dos banquetes de domingo toma uma prateleira inteira na geladeira, onde é remexida, espetada, regada às colheradas grandes e virada para que todos os gostos se entendam, penetrando na alma da carne. Drica faz tudo isso de unhas longas, perfeitamente esmaltadas, de uma cor diferente a cada quinta-feira, quando vai-vaidosa ao salão.
Desde que me entendo por gente a Drica é a Drica, e se ouço chamarem de Adriana, demoro a ligar o nome à pessoa. O apelido íntimo carrega um carinho embalado há muitos anos por uma relação meio de irmão, meio de filho, muito mais do que de primo. Na casa e no colo da Drica sempre fui mimado, criança livre e protegida, mesmo agora, aos vinte e nove. Fico feliz quando a faço sorrir, por isso me faz tão bem tê-la apresentado ao mundo dos vinhos, até então desbancado por décadas de sua carreira inarredável de cervejeira. Começamos pelos rosês e a coisa não parou mais; comemoramos e abrimos juntos muitas garrafas especiais e tantas outras banais, diárias, avivando as histórias e os casos que contamos, sempre apinhados na cozinha, apesar da sala de estar. Anos antes disso já vivíamos colados, eu mexendo nos seus cabelos ruivos, observando a linha firme com que traçava os olhos amendoados rente aos cílios, num delineado suave e firme, sua marca registrada. Criança, já gostava do bife que ela passava para mim, de me enrolar no edredom de flores brancas e beges no primeiro apartamento em que morou quando veio de Belém para fazer sua residência médica no Rio, um conjugado rua Prado Júnior, a mesma rua do Cervantes, talvez por destino. Até hoje, casada e com dois filhos lindos e de coração enorme, não saiu de Copacabana, e nem pretende.
Preparar um bom pernil não é para qualquer um. O da Drica, quando vai pro forno, ainda no sol claro da manhã, pede fogo baixo e tempo arrastado. Três, quatro, às vezes cinco horas, até. Tira-e-põe de papel alumínio para tostar a pele, mas sem ressecar o meio. Depois de pronto, basta triscar a ponta do garfo para entender tudo, vendo a carne desmanchar. O pernil da Drica é um acontecimento, e só não é feriado porque já costuma cair num domingo. Na minha memória, pousa sempre na mesma mesa quadrada, no mesmo tabuleiro em que assou, e enquanto todos se fartam e gemem de prazer, Drica bebe a Original mais gelada das redondezas ou um gole grande de vinho rosê, mexe nos cabelos ruivos que cegam o sol da tarde, nesta altura já se pondo, e ri, perguntando se o pernil ficou bom, mesmo sabendo que sim. É o jeito dela de dizer “eu te amo”. “Hoje fiz maionese” é outro. Vale dizer que nem sempre o relógio dos dias permite que o porco seja caipira, criado solto e com cafuné, mas da última vez em que isso aconteceu, me lembro que era uma leitoa que alguém havia trazido de um sítio, a carne ainda mais macia, a gordura quase doce. Acho que chorei.
No último Natal, redescobri o pernil que minha avó faz, e que não comia faz tempo. Fui feliz, mas por lá, a banda toca de outro jeito: aos 88, não convém que a marinada seja tão paciente, e as arrumações prévias se resumem a um tempero mais trivial, sem troca de lençóis, espetadas e giros dourados. A peça fica no forno por mais tempo, e no fogo mais alto, motivo pelo qual sai mais mirrada, bem menor que quando entrou, e de capa mais escura e firme, salgadinha e espirituosa. Enquanto meu pai escorregava a faca elétrica que a carne pedia, a graxa escura, espessa e brilhosa que ficou na assadeira pousava nas quatro bocas do fogão, para desgrudar e ferver. “Esquento e ponho num potinho para servir do lado, como está se fazendo hoje em dia”, ensinou minha avó, vertendo o ouro líquido na molheira de aço-inox, para que cada um regue no prato a carne com o molho quente, uma colherada de outro mundo. Comi com arroz, farofa feita com as aparas crocantes da carne e nacos das cerejas escuras que estavam no meio da mesa, dando sopa.
Trouxe algumas fatias desse pernil para o Rio, e no dia seguinte da minha chegada, empilhei com queijo meia-cura e uma geleia de cebola que fiz e fechei no pão francês. Minha vó faz o que pode, eu fiz o que pude — meu próprio sanduíche de pernil, no desencontro com os domingos sem sobras, sem outro porto para amarrar meu porco. Hoje, no Rio, o sanduíche de pernil que mais me faz feliz é o do Opus, que funciona desde o fim dos anos 1960 bem ao lado da Confeitaria Colombo, na rua Gonçalves Dias. Mas para o o alento de quem busca matar a saudade do Cervantes e talvez ainda não saiba, a mesma equipe de cozinha e salão migrou para o Parada de Copa, também em Copacabana, com o mesmo sanduíche, a salada de batatas reconfortante feita só de batatas, o chope ainda mais gelado e o ambiente mais moderno, mais espaçoso e iluminado, o que nem sei se gosto, mas que tem sido coisa natural de se acontecer.
De um jeito ou de outro, não vou tentar disfarçar que hoje acordei meio sem-lugar de se estar. Escrevo esse texto de longe, apesar de um longe lindo, forrado de flores de todas as cores, mas nem sei o que vou almoçar hoje. Sei que não vai ter pernil, nem o colo de nenhuma das mães que a vida me deu — a Drica, a tia Vera, a Ana, a Marlene, a Dinda, a minha própria, meu coração que bate fora do peito... Mas ontem, Drica me avisou por mensagem de texto, em terceira pessoa, talvez para disfarçar a saudade: “Amanhã vou fazer pernil da Drica, com maionese e farofa”. E por um minuto, se armou uma festa dentro de mim.
No meu Instagram tem vídeo do pernil desmanchando, da farofa sendo feita, da dona da receita. Mais detalhes sobre o pernil da Drica conto na coluna para assinantes pagos da quinta-feira que vem: mando a receita completa, apontada por mim, que acompanhei de perto a dança, anotando tim-tim por tim-tim.
que fome me deu! fiquei feliz em saber que o opus é indicado! quando eu estive no rj, resolvi parar num boteco pra comer um pão com pernil e abacaxi. não conhecia nem o nome, nem a fama do lugar. foi ótimo, tanto que voltei no ano seguinte, rs. já vou deixar na minha lista pra próxima ida ao rio.