Guardo carinho especial por receitas de um pote, panela ou travessa só. Se esfria, logo penso em arrozes caldosos, gratinados, fricassês, tudo feito com sobras. No Verão, comeria todos os dias um tabule inventado lá em casa, feito com triguilho, lascas de um frango que já fora galeto, pepino, cebola roxa, tomatinhos partidos ao meio e um exagero feliz de folhas de hortelã inteiras, bem frescas e tenras, recém-lavadas, tudo obra de uma vasilha só. Preencho os tempos vazios bolando saladas assim na minha cabeça, vinagretes de grãos, lentilhas, batatas pequenas e tantas outras que vão bem servidas frias, revolvidas com azeite, salsinha picada e uma rodada terrosa de pimenta preta moída na hora (não do reino, porque meu rei é o Brasil). Junta-se tudo, uma festa para os talos e aparas, perde-se pouco ou quase nada, prerrogativa importante em tempos famintos de um planeta esgotado. A louça não se espalha pela cozinha e tudo se resolve em poucos golpes de colher, poupando o corre-corre de cumbucas, guarnições e mesa posta, já que brilham sozinhas ou como acompanhamento de qualquer outra coisa, tudo sem muito rigor. Gosto delas por não ter que ocupar tantas bocas do fogão e porque perdi o costume de usar o microondas. Mas quenturas nem vêm ao caso, já que é de coisa fria que quero falar. De salpicão, mais precisamente, uma invenção brasileira, assim como o conhecemos.
Salpicão é dessas receitas que quase todo mundo gosta e que têm tanto a ver com o Brasil em geral, não só em época de Natal. Cai bem em qualquer sol porque é geladinho, e pode ser ainda mais refrescante com raspas da casca do limão, talo de salsão fatiado ou um pouco dos dois. Não há regra nem limite pro gosto de cada um: salpicão pode ser mais ou menos leve, com maionese, creme de leite ou iogurte natural para dar a liga; mais simplão, com poucos ingredientes certeiros, ou bem recheado, montanha russa de pedacinhos de todos os jeitos. Só não pode faltar batata palha. Salpicão, para mim, começa a ser especial justamente por isso: é cremoso e crocante ao mesmo tempo, dois estados elevadíssimos do comer. Leve, mas malicioso. Tiro meu pouco com uma colher funda, ponho no pote que cabe na mão e cubro de um filete folgado de azeite antes de morrer de amores por ele.
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