Parti da minha primeira vez em Paraty, no início do ano passado, encantado com tudo o que vi, conheci e comi. Na estrada da quase triste volta, procurávamos com os olhos baixos uma paragem recomendada por muitos locais. Teria uma vista linda, debruçada sobre o mar e as ilhas verdes de Angra dos Reis, e o melhor pastel de camarão da vida de muita gente. Vi um amontoado de bastões longos de cana-de-acúcar encostados na parede de tijolinhos de um quiosque e não tive dúvida: “Deve ser aqui”. Longos e ilustres, meio sujos de terra, meio cinzas de fevereiro, eles estavam lá fazendo par inabalável com os retângulos de massa dourada etérea, coberta de bolhas quebradiças de ar. Onde há cana, há pastel, concluí, sem sintoma de dúvida.
É justamente assim que costumo descobrir que cheguei na barraca do pastel nas feiras ou esquinas livres da cidade. Mal cabem nos fundos das kombis e varam as calçadas, se empilhando e se espichando onde couberem, deitados ou em pé. Depois de darem caldo, o bolo moído do bagaço seco é jogado pelos cantos, ocupando espaço, desgrenhado e desimportante. Sempre vejo o aglomerado indiscreto de cana-de-açúcar primeiro para só depois perceber que ali também se fritam pastéis. Gosto de ver o momento exato em que são atirados no óleo fumegante e revirados com a escumadeira enquanto inflam, incitando o desejo da gente sentada na sombra em banquetas de plástico, e que não vê a hora de ter as duas mãos ocupadas, combinando um e outro, esquecendo um pouco da vida.
Era o pico do meio-dia na feira do Bairro Peixoto, um calor tórrido. O Rio de Janeiro em dias de sol é mesmo para os fortes. Do jarro imenso de brilho metálico o caldo fresco e grosso, espumoso e triunfante, enche os copos descartáveis até a boca numa só virada, mais vigorosa e segura que de muito sommelier enchendo taças por aí. Ainda paira transparente a certeza velada do repeteco, coisa de carioca que toma mate de galão na praia e sempre pede mais um chorinho. Quem gosta de caldo de cana vive aqui seu estado particular de poesia, logo no início do dia, revigorando o corpo inteiro por dentro, como um mergulho no mar. Confesso que embora seja cristalino o meu respeito, não gosto de caldo de cana. Acho o óbvio, que é muito doce, mas acredito que minha redenção é descontar nos pastéis o que não sinto pelos caldos. Me mantive de pé na fila.
Parei para pensar que um está para o outro, o caldo de cana para o pastel, como o arroz e o feijão, o berimbau e a Bahia, o Arpoador e o pôr do sol. Falar em um é pensar no outro, necessariamente, e falar neles é juntar gente de todo tipo que busca o mesmo alento nesse terreno seguro, melado de óleo, de um afeto simples em que se chega a pé, entre goles e mordidas. São mais uma dessas instituições tão nossas, tão frugais e correntes que ninguém pensa nelas, só adora. Quando vejo duas coisas indivisíveis assim, palpito quem resolveu juntar um e outro. Talvez uma senhora, talvez uma pandemia. Um regime político, uma guerra, um sonho. Ou só uma coincidência da vida, daquelas levadas pelo hábito ou pelas consequências do fio da própria História, que se encarrega de juntar o que combina, o que inunda e alenta o peito da gente, sem que nem saibamos o porquê.
Meu pai sempre fez do caldo de cana seu mata-sede principal. Qualquer dia de calor, entre um e outro lugar, ele comia seu pastel e bebia o suco verde-claro, com gosto de grama, entornando o copo inteiro em um gole restaurador. Extraído na hora em grandes rodas de ferro, em uma barraca na beira da praia do Porto da Barra, em Salvador, ou no maquinário prateado das pastelarias chinesas espalhadas por toda Copacabana ou pelo Centro do Rio. Os pastéis, graças a ele, presumi desde cedo que vinham das colônias orientais instaladas no Rio e em São Paulo, e farejando ao longo do tempo, vi que as versões mais correntes ligavam o pastel de hoje às adaptações de guiozas e rolinhos-primavera, mas com ingredientes locais. O que antes era farinha de arroz virou farinha de trigo, o que era porco, carne moída, e o ao que era peixe ou camarão, o condão irresistível do Brasil ainda tratou de juntar catupiry. Aqui, o que difere um pastel de outro é a qualidade da fritura, a leveza da massa, a minúcia do recheio, o tempero da carne incrementada com azeitonas verdes picadas miúdas, salsinha, tomate e outros caprichos envolvidos num molho só. Há os de recheios que se espalham pela maior parte do pastel, enchendo-o como uma bolsa quente e divina, ou aqueles de bordas propositalmente livres, sequinhas e quebradiças, para distrair a boca e provocar o ar.
O caldo de cana, por sua vez, era o produto principal dos engenhos de açúcar do Brasil, onde era cozido até virar melado, e, depois, barras do açúcar mascavado que exportávamos de volta para Portugal, manchado de sangue. Era dado pelos próprios senhores de engenho aos africanos escravizados que trabalhavam na moagem da cana como forma de dar energia para que continuassem servindo a ele, sem direito a descanso ou escolha. É triste pensar que a escalada do consumo do caldo de cana está ligada diretamente a um processo perverso de escravização de pessoas, essa chaga aberta com a qual temos de conviver, sobre a qual não podemos parar de falar. Entre as paredes dos engenhos espalhados por todo nosso território, fervia-se muito mais que o caldo da cana plantada, colhida e processada pela força humana dessas pessoas arrancadas à força de seus territórios. Fervia-se o sangue.
A cana-de-açúcar não tem nada de doce na sua história, e vê-la processada nua, como era nos engenhos há tempos atrás, me faz voltar a cabeça para as roças onde já estive, embrenhar minhas intenções para o que já vivi no meio do mato, onde sempre aprendi. Minha última vez em Paraty não foi a primeira: voltei esse ano para me hospedar num alambique, um templo tranquilo onde o tempo passa diferente e o vento corre manso, e que guarda a menor e melhor produção de cachaças paratianas, já que é limitada à cana plantada e colhida ali, cortada e moída no mesmo dia por Maria Izabel, uma mulher sábia, serena, certeira.
Me disse que quando chegou no Sítio Santo Antônio, no bairro do Corumbê, nos anos 1990, aquilo era tudo poeira. Foi cultivando aos poucos seus pés de cana, plantando sem desmatar, conhecendo cada palmo de mata como a palma da mão. Em seu santuário de Mata Atlântica mantido da maneira mais natural possível, atravessado pelo canto dos passarinhos, e onde a cor do sangue não corre na mão de ninguém, só nas asas do tiê-sangue, abrandei o que andava sentindo ao percorrer um caminho margeado de pés de cana. Fiz as pazes com esse assunto enquanto caminhávamos num passo lento para uma pequena praia dentro da propridade e resolvi, num impulso, quebrar, descascar e morder um rolete de cana. O caldo claro que minou do bastão fibroso tratou de me adoçar.
Entendi, enfim, que juntar um ao outro, o pastel e o caldo de cana, fazia todo sentido aqui, resultado da própria mestiçagem caótica do país, liga de muito mais que três raças. Quanto à cana, como tento ser otimista, acredito que sua graça de aliar-se a coisa tão virtuosa como pastéis de vento tem motivo claro: redimir-se de ter sido a primeira cultura a pôr o Brasil no buraco. Pastel e caldo de cana podem ser só uma lasca dos nossos dias, é verdade, mas contam um bom tanto da história injusta em que se fundou — tratando de afundar — o Brasil assim chamado.
Sempre prazerosa e útil suas reflexões, Mateus! Bem temperada, eu diria. Sem os excessos de militantes & militâncias, que cuidam de defender verdades a qualquer custo (às vezes, de modo bruto!). O seu olhar é mais poético, o que não elimina a vontade de fincar bandeiras... A questão parece ser sempre de dosagem. E, lembrando a degustação da cachaça da Maria Izabel, goles na boa medida sempre nos faz bem!