Quando comecei a escrever este texto, pairava sobre uma onda qualquer do Oceano Atlântico. Embarquei de Portugal para o Brasil tomado pela ideia vã de tentar escrever minha emoção em voltar ao meu país dois anos depois de ter saído dele. A primeira vez de volta ao lugar onde me reconheço por completo. A primeira vez em dois anos não sendo um completo estrangeiro, um estranho no ninho. Ensaiava dizer assim: “Enquanto você lê esse texto”, escrevê-lo por completo, num rompante de sentimentos urgentes que me sairiam pelas pontas dos dedos a trocentos mil pés de altura. Não rolou. A classe econômica cada vez mais apertada, a noite mal dormida e a manta de dúvida que me cobria — o que realmente estou sentindo ao voltar? — adiaram a escrita, substituída por três filmes medianos, uma bandejinha de massa ultracozida e garrafinhas de vinho de qualidade duvidosa. Precisava pisar aqui, sentir o que precisava sentir, e só depois escrever.
Não volto permanentemente, mas por um mês quase inteiro em que pretendo me encharcar daquilo tudo que escasseou dentro de mim pelo último par de anos. Meus amigos de verdade, minha família escolhida; os poucos familiares de sangue que ainda restam no Rio; o cheiro de maresia do bairro onde nasci e cresci; uma série de lugares e comidas que me faltam alguns dias tão graves como um órgão.
Suspirei alto quando vi o Mondego, destino oficial do chope pós-trabalho da minha mãe, as cadeiras de vime trançado que marcavam a pele da minha coxa; Mondego na esquina do apartamento onde cresci e que, ironicamente, leva o nome do rio que corre na cidade onde hoje vivo. Queria ir à Peixaria Shirley, no Leme. Sentar para comer o couvert do La Mole. À Cantina Donanna, dona do melhor pão de alho do mundo, e que cantina nenhuma da Itália desbanca simplesmente porque esta é feita do meu infinito interior. Donanna onde fui anteontem, e que por meio de seu mural me fez descobrir que o Cine Jóia, cinema diminuto de galeria, cinema de rua e de bairro, cinema-cinema, voltou.
Almocei aliviado e sujo de areia no balcão serpenteado do Braseiro de Copa, que os da Gávea pouco conhecem. Ainda não matei as saudades do Belo Bar, que, já vi, reformou seu teto. Comi as empadas da Dona Empada. O milho verde do Gui e os amendoins do Bomba, enrolados em papéis de quatro sabores. Ainda vou ao Baby Lanches, que parece ter mantido cada centímetro do que era antes desses dois anos: um balcão onde me sinto completamente nu, presente do jeito mais inteiro e profundo. Quero ir ao acarajé do Jay, que nem sei se ainda está lá, observar o dendê e a Nossa Senhora de Copacabana ferverem na hora do rush. Viver, enfim, o bairro e a cidade para onde minha família migrou, ainda nos anos 1980, para fazer a vida melhorar e vingar. Frio na barriga só de pensar.
Passei horas do dia de ontem vendo a orla de prédio justapostos, imensos, do lugar onde sempre estive: de dentro do imenso azul, o corpo afundado no mar de esmeralda líquida. Fui ao Rebouças, ao Oliveira e ao Fusca em uma noite só. Na Visconde de Caravelas, mirei abobado os troncos das árvores revestidos de cabaças e os abricós-de-macaco amazônicos iguaizinhos aos da UFRJ, árvores que sempre me foram banais e, pelos últimos anos, simplesmente deixaram de cruzar meu caminho.
Ainda assim, mesmo aqui, nem tudo cheira a maresia e milho cozido. É angustiante ver, ao lado da beleza que permanece quase impassível, a crueza do que não é belo e se aprofunda. A pobreza, o lixo, a crescente população em situação de rua, a racialidade que mantém-se nesses marcadores, a desigualdade que é a grande tônica dessa cidade. Em escada nacional, os biomas brasileiros queimando pelos criminosos do agro. Tudo cada vez pior, contínuo claro de um modelo-mentalidade bastante colonial.
No início do mês, quando falei sobre minha dissertação de mestrado para o grupo de estudos
, da Escola de Saúde Pública da USP, uma das integrantes me perguntou: como é morar no país que nos colonizou? Respirei fundo para dizer em um minuto o que poderia virar uma hora, resumida no desconforto em poder gozar da tranquilidade que o meu país desconhece; uma tranquilidade alcançada, em muitas medidas, às custas da desigualdade de outros países, como o meu.Em algum minuto aflito do voo, driblo o zumbido surdo da turbina folheando um livro “vira-vira” do Rubem Braga. Busco, no meio das cambalhotas de caos que viravam minha mente, uma espécie de alento. Paro numa frase que parecia ser escrita para mim: “Ergue-te, cronista, e cumpre o teu dever”. Cumpri. Voltei.
Poxa! Que bom ler você! Acredite, eu estava com muitas saudades dos seus escritos, seu jeito de picar as palavras em cubinhos e misturar num texto. Como dizem nas redes, você tem o molho ahaha. Espero que tenha descansado e se reabastecido de Brasil com s. Dois anos tbm era o tempo que estava fora e daqui tenho feito meus marinados. Bem vindo de volta ao "Subs".
Sem dúvida, o melhor pão de alho. E mais um texto primoroso