Não cresci nem vivi na roça — mas no oposto dela, bem no meio de Copacabana, essa princesa maltrapilha em disputa contínua entre beleza e caos. Quanto mais me afasto do mar e me embrenho no sertão, o verdadeiro centrão do Brasil, mergulho mais um pouco em mim. A crônica de hoje era sobre pão com mortadela, mas provei outras coisas pelo caminho e não pude conter o desvio. Uma batata cozida inteira, cortada ao meio em duas bandas e recheada com uma fatia dobrada de mortadela, presa com palitos de dente e mergulhada no óleo quente, por exemplo. Um sanduíche chamado “passado”, já que tem a mortadela passada na chapa, coberta de uma fatia fina de queijo fresco e três fatias de tomate, fechados no pão francês e servido cortado em dois na vertical, e depois em rodelas, para comer com as mãos, aos poucos, aos pedaços. Das duas descobertas, uma parecença crucial: as bordas crocantes da mortadela que entornam pro lado de fora da batata e do pão, tostadas e crocantes, que se estivessem num bistrô da moda, chamariam de mortadela crispy. No mesmo lugar onde provei o tal, o Bar do Passado, em São João da Boa Vista, trazido por um garçom apelidado Pé de Pano, também vendem um sanduíche chamado futuro — “é igual ao passado, só que com um ovo estalado, bem”. Tive esperança no mundo.
Além dos croquetes viciantes de mortadela do Bar da Frente, na Praça da Bandeira, no Rio, nunca tinha provado mortadela em mordida quente. É que poucas coisas na vida acho tão boas como o pão com mortadela de todo dia, frugal e monumental, um dos mais acertados casamentos que já conheci. O par costuma prosperar por si só, sem juízo da natureza dos dois, e juntos, são a prova de que inventar a palavra simplicidade deu certo. Melhor se o pão for francês fresquinho, ainda morno, e a mortadela de boa procedência, cortada bem fina, sem se aguentar em pé, quase translúcida. Mas se não for, é bom igual. Não vou entrar no mérito nutricional aqui, já que a mortadela da qual falo é um produto ultraprocessado, feita da carne de mais de um bicho e cheia de aditivos, muito distante da receita original que surgiu na Itália, séculos atrás. Mas sopra o vento das memórias, das histórias, que é o que me interessa falar, pelo menos hoje.
Ventos como a lembrança íntima e diária da vó Tita, avó do meu namorado, nascida e vivida no interior: seu marido dirigia um táxi, e em todas manhãs ela preparava um pão com mortadela e uma térmica de café para que ele levasse dia adentro, enquanto rodava em busca de alguém que lhe esticasse o braço. Embalava no papel rosa em que vinha a mortadela ou no plástico fino que costumava vir colado no papel, que destacava com cuidado e empilhava num canto da cozinha. Semanas atrás, enquanto fazíamos juntos um cuscuz paulista, vó Tita recontou o ritual, rolou os olhos para cima e suspirou. “Meu taxista”, disse baixinho e reticente, mordendo os lábios de baixo. Rememorar é seu jeito de chorar a viuvez com a qual se acostumou a conviver. E meu jeito de perceber que pão com mortadela é universal, e como qualquer bocado feito e embrulhado com amor, sempre nos lembra alguém.
De tão barato e presente em todos brasis, o embutido rosa antigo, salpicado de cubinhos de gordura, virou até alcunha pejorativa para atingir os militantes dos partidos de esquerda. O sanduba magro de pão com mortadela, feito com uma fatia só, era o combustível dos sindicatos em reuniões e dias de greve, comícios e conferências dos partidos afins, de coração vermelho como o meu — o que minha mãe, sindicalista inveterada, confirma com gosto, orgulho e saudade. Mortadela? Não podia pedir um apelido melhor. Numa produtora onde trabalhei, a mortadela também era o fôlego de quem chegava de barriga vazia. Serviam cedíssimo um café da manhã gratuito aos funcionários, que iam chegando e bicando sobre a toalha plástica da mesa do refeitório, daquelas que aderem aos cotovelos. Havia sempre pão francês, mortadela, margarina, café e uma caixa de leite longa-vida, o jeito gracioso e antigo de dizer que ele é pasteurizado, e por isso vive bem em prateleiras, sem conservantes nem graça. O café preto enchia as térmicas o dia todo, reposto amargo e forte, rima dos prazos apertados. Era feito naquelas máquinas grandes de metal, comuns em padarias e botequins, com várias torneiras, filtros de pano e artimanhas pilotadas por mulheres, sempre com seus saberes no bolso. Tinha, de novo, uma sensação esperançosa de que qualquer dia que começasse com pão com mortadela tendia a ser melhor — e sempre era.
Paro e penso em todos os pães em que já passei manteiga e comi. Nos anos em que morei em Salvador, tínhamos a sorte de ver uma padaria da janela de casa. Ficava no final de uma ladeira no Rio Vermelho e se chamava Ganesha Panificadora, com letreiro laranja-vivo. Além das latas de óleo de soja, farinha de biju, leite de coco e outros artigos nada indianos que vendiam, faziam pães, biscoitos e bolos acima de qualquer média. Diariamente, fornadas do mais perfeito pão francês que já comi tomavam aquele trecho da rua Macaúbas desse perfume terno e familiar, o cheiro de pão que amansa qualquer tempo ruim no país do carnaval. Que perfura qualquer peito no país da fome.
O sabíamos porque ele se espichava até a nossa varanda, no segundo andar, num anúncio morno e silencioso, quase religioso. Era um pão quebradiço por fora, mas sem esfarelar; nem pálido nem tostado demais. E se ninguém falava do sal é porque estava sempre na medida, nem insosso, nem salgado. Um traço mais granuloso de fubá no topo dava textura a esse pedaço prosaico de massa quando nele corríamos o dedo, tateando sua beleza antes de dividi-lo ao meio, com a faca pequena de serra. Ainda quente, o miolo vaporoso se desfazia como quando se puxa um chumaço de algodão, queimando as pontas dos dedos. Na minha ultima ida à Bahia, passei na rua para reviver tudo isso, sonhando com eles, e vi que a padaria fechou. O pior: nesse pão, acho que nunca deitei mortadelas. Prova esmagadora de que a vida segue sendo vasta e bonita, mas injusta.
Mais uma Crônica esplêndida🎖💫
Absurdamente DELICIOSO 🥖 🍳 e Mortadela😋
Beijosss😘
Sonhando com o próximo pão onde deitarei mortadelas ❤