— “Ô, menino. És brasileiro? Veio estudar?
Começou assim, eu assentindo que sim.
— Gostas de ler? Já fostes na biblioteca da cidade? Há coisas muito boas e podes pegar de graça sendo estudante. Coloca no Google assim: lista dos melhores 100 livros de todos os tempos. Encontra-se tudo, Dostoiévski, Shakespeare, e um que eu gosto imenso, 1984, do George Orwell, já lestes?
Disse de novo que sim, tinha lido 1984, e por um segundo, fiquei feliz. Deve ser uma professora aposentada da universidade, uma intelectual que gosta de jogar conversa fora, falar de livros e cultura, pretexto perfeito para um jornalista sempre em busca de uma história que faça a cabeça borbulhar. A alegria não durou muito. Em poucos segundos, me radiografou com os olhos, da cabeça aos pés, e exclamou:
— Sou Bolsonaro. Quero que ele ganhe as eleições de vocês. Não gosto do Lula. É igual ao presidente socialista daqui, uma porcaria, só serve para dar subsídios e fazer com que as pessoas não queiram trabalhar.
Um dos mais emblemáticos livros da literatura contemporânea, 1984, de George Orwell, nascido na Índia britânica, foi escrito em 1948, nas bordas dos regimes autoritaristas que emergiram da Segunda Guerra Mundial. A história, um futuro distópico controlado por um ditador único, o Big Brother, foi a que inspirou o nome do reality show, porque, nessa distopia (o contrário de utopia), havia os mesmos espelhos onde todos são observados e controlados o tempo todo, até dentro de suas casas. Será que esta senhora se identificou com o autoritarismo do livro? Não entendeu a história, pensei, inocente, antes de concluir que podia ser pior: pode ter gostado do lado do algoz e se animou com um regime vertical, repressivo e retrógrado, que reforça as desigualdades, debocha e aparta pluralidades, diversidades e liberdades. Desejaria ela ter sua vida pública e privada controladas? Ou, ainda, queria ser ela a controlar a dos outros? Me devolveu uma moeda que deixei para trás na máquina, talvez não seja mau caráter, só está mesmo distraída, conjecturei.
Para não tornar aquela lavanderia um mar de pitangas vermelhas com minhas palavras e flechas de amor, deixei-a falar. Não lavaria roupa suja com ela, já que nenhum de nós parecia ter muito fôlego para isso naquela tarde quente, e porque ela mal prestaria atenção: estava de fones de ouvido, absorta na tela do seu computador apoiado nas coxas fartas, navegando pelas redes sociais e acreditando em qualquer besteira obsoleta que a conviesse, como toda boa senhora bolsonarista. Se fosse mesmo viver uma distopia autoritária, o que Bolsonaro propõe, essa distinta senhora provavelmente não estaria numa lavanderia com seu computador no colo, nem haveria as redes sociais em que ela passa o dia pendurada, destilando seu desânimo. Talvez não estivesse com a tarde de uma terça-feira livre, provavelmente às custas do governo socialista de Portugal, que ela tanto critica. Olhei no fundo do olho mágico de uma das máquinas de lavar, minhas roupas girando lá dentro, querendo fugir dos olhos dela. Podia sair pra dar uma volta, atender uma ligação imaginária ou arruinar meu dia deixando as entranhas falarem mais alto que a cabeça. Perguntei, então, sem dar muita bola:
— Sério? O que a atrai nele?
— Acho-o muito bonzinho, parece ser honesto. Vou olhar se tem alguma foto do Bolsonaro aqui e já deixar uma curtida, ela respondeu, serena.
Lula não tem cara de bonzinho. Não tem olhos azuis nem filhos homens que o pajeiem para o gozo do patriarcalismo, onde o macho alfa está sempre rodeado dos seus próprios machos. Talvez não pareça honesto por não ser engomado nem diplomado, e porque aos olhos da elite dominante que o abomina, não passe de um metalúrgico de nove dedos e orelhas de abano, que fala errado e jamais deveria ter ascendido ao cargo mais importante do país. É esse cara que pode, entretanto (como já fez em seus mandatos passados), voltar a fazer o Brasil crescer. Foi esse cara que já beneficiou milhões de brasileiros com seus governos de viés social, e o que mais pode importar que isso num país em franca decomposição como o nosso?
Talvez essa senhora não saiba das consequências nefastas do bolsonarismo — a violência em todas suas formas, a homofobia, a naturalização da mentira e do porte de armas, o desmonte das políticas públicas — ou talvez, como boa parte de seus eleitores, não se importe com nada disso. Tivesse mais tempo e paciência, gostaria de tê-la explicado porque gosto mais do Lula. Diria que, antes de tudo, com esse candidato, fala-se de respeito à democracia e à liberdade de expressão e de imprensa, não o contrário. Com Bolsonaro, não nos dão descanso: posturas e instituições democráticas são postas a prova a todo momento, defendem a ruptura com a democracia e saudam sem escrúpulos um passado antidemocrático. Será que idolatra Salazar, como Bolsonaro endeusa o Coronel Brilhante Ustra, torturador abjeto da ditadura militar?
Quando resolvi dizer sem alarde que apoiava Lula, respondeu que ele era muito ruim, agitando a cabeça em negação, com ar de desprezo. Um amigo brasileiro havia a dito que o PT tinha conseguido destruir o Brasil em 30 anos. Não adiantaria, mas queria ter dito que, ao contrário do que ela sabe, foi a fome que acabou de voltar ao patamar de três décadas atrás. A fome, essa que Bolsonaro nega existir apesar de tanta gente pedindo comida pelas esquinas, piorou muito — e não só pela crise aprofundada por uma pandemia mal-cuidada, rechaçada por ele. De 2002 a 2013, quando Lula era presidente, caiu em 82% o número brasileiros considerados em situação de subalimentação, e em 2014, o Brasil saiu do Mapa Mundial da Fome, da ONU. Com Bolsonaro, voltou, ainda que sejamos um dos maiores produtores de alimento do mundo. O ingresso de alunos em universidades nos governos petistas é incomparável, assim como os programas sociais e ações afirmativas que levaram gerações romperem o ciclo da pobreza e desenvolverem-se profissionalmente, se emancipando e emancipando os seus da estrutura servil que domina o Brasil. Dizê-la que Lula só reduziu o desmatamento na Amazônia desde que assumiu seu primeiro mandato, enquanto Bolsonaro só aumentou. Nunca se tentou com tanto vigor explorar economicamente terras indígenas e só não vê quem não quer os cortes dramáticos de verbas na educação, na ciência e na cultura, nos quais esse presidente não acredita. Quando me despedi puxando meu farnel de roupa limpa, ela relembrou: não deixe de procurar os livros. Preferi entender como um apesar de tudo, ainda teremos os livros.
Nesse domingo começa um novo futuro, um mais esperançoso para o Brasil que importa. Esse onde o pobre vai, em breve, poder voltar a comer picanha passada na farinha com uma cervejinha gelada num domingo qualquer. A elite que não vota em Lula de jeito nenhum treme de raiva, afogada em sua própria hostilidade, ao ver que está prestes a ganhar as eleições presidenciais do Brasil um cara que fala que o pobre do Brasil, se depender dele, vai voltar a ser feliz, comer bem, se vestir bem, passear bem. E a elite não aguenta ver o pobre feliz porque não quer perder suas regalias, fincadas na desigualdade. Querem a manutenção do sistema colonial: as empregadas e babás negras, a barganha do serviço do pedreiro, o resto do almoço para o porteiro. Querem ter sempre razão porque são sempre mais claros e mais ricos que aqueles que gostam de oprimir. No fundo, não querem um governo que coloque essa gente na Universidade. Quem vai cuidar dos meus filhos, da minha casa, da minha vida, como na época da escravidão, das capitanias hereditárias que formaram nossa nação? Acham-se importantes o suficiente para arriscar levar-nos ao segundo turno por suas convicções pessoais, porque, no fundo, não estão nem aí para nada que não seja seu. Porque não conseguem votar num candidato que tenha a cara e o jeito do povo brasileiro, como Lula tem.
Sempre fui de esquerda, vermelho de alegria, e não é que não quero ser rico, mas quero que todo mundo seja. E às vezes riqueza é só ter onde dormir, o que comer, ter acesso à educação, saúde, cultura, lazer. Quem não vota em Lula agora, em alguma medida, é condescendente com um Brasil que pode seguir dividido, sendo governado para os ricos, não para os pobres. Quem vota em Ciro Gomes, terceiro colocado nas pesquisas mais recentes, precisa estudar mais ou afastar-se um pouco do espelho. Sabem que ele não vencerá essas eleições, e mesmo assim, escolhem, apertando 12, resumir os anseios de quatro anos penosos num voto nulo? Quem vota em Ciro no primeiro turno, provavelmente, vota em Lula no segundo. E por que não fazê-lo agora? Por que discutir com gente cascuda como Marina Silva, Caetano Veloso, Joaquim Barbosa e Lilia Schwarcz, que já declararam seus votos em Lula? Será que realmente se acham mais inteligentes que eles? Eu, não. Sigo vigilante, cheio de esperança e coragem, sem perder o brilho nos olhos e a vontade de mudar, menos por mim, mas por esse Brasil abandonado que precisa ser cuidado de verdade. É hora de se juntar, não separar-se ainda mais. Quero e espero a vitória da paz, da empatia, da liberdade e da democracia em suas formas plenas. O prato cheio para todos, antes de tudo. Bom voto!
Coisa linda, querido. O seu texto, como sempre, me dá aquele quentinho no peito. Obrigada por isso.
obrigada pelas palavras Mateus. vontade de imprimi-las em camiseta, nas costas, para usar na fila do 2º turno na escola pública deteriorada que voto, no meio de um bairro de classe média alta onde vejo bandeiras do brasil em mais janelas do que gostaria. ir deixando passar as pessoas na frente, para que todos leiam. "não se preocupa, não to com pressa". tá difícil manter a força, o bom humor, a energia para viver neste país onde tudo isso acontece. um abraço apertado.