Prato Feito: um ritual brasileiro
Um ano de newsletter [texto originalmente publicado em fevereiro de 2022]
Passei os últimos tempos colecionando fotos de placas de PF por Copacabana, bairro onde sempre morei, como num impulso íntimo. Nas idas apressadas ao mercado, à farmácia ou à feira do Bairro Peixoto nos meses mais frouxos da quarentena, quando os restaurantes já podiam abrir, clicava sorrateiro os anúncios de pratos do dia dos botequins da vizinhança. Tentava mitigar a saudade dos dias sem relógio num bar desses de esquina, de ver e ser gente feliz, comendo e bebendo de cabeça leve e corpo livre. Quando o isolamento apertava, ia para as fotos e viajava em galetos, farofas, fritas quase molengas. No meu arquétipo de molho à campanha ideal, suculento e pedaçudo, só de tomates e cebolas.
Depois, a saudade foi tomando conta de tudo. A cabeça cruzava o Rebouças na garupa da tarde e ia aos corredores da feira de São Cristóvão comer carne do sol com baião de dois, esse prato com nome de dança. Pensava na feijoada completa de sábado depois de uma volta na feira do Lavradio, nos bolinhos do Bar do Omar, vendo o samba e a cidade iluminada de prata do Morro do Pinto. Em um dia qualquer enquanto o país se esvaziava, desci e pedi um PF pra viagem no bar da minha rua, a comida ainda quente. Paguei a conta de um prato só enquanto o barbante que volteava o papel rosa, embrulho da quentinha de alumínio, apertava ainda mais minha saudade. Voltei com o pacote nas mãos como se fosse um troféu. Sempre achei bonito todo o ritual do prato feito, espécie de radiografia cultural de nós mesmos.
As fórmulas mudam de tempero e assunto em cada canto do Brasil, e seja onde for, cartazes, quadros e tabuletas anunciam o que se serve enquanto nos mostram quem somos ali, naquele instante e lugar, marcados de giz. (Parecem cardápios, mas se olharmos bem, são espelhos.) Cortes de carnes, ingredientes, jeitos de fazer, chamar, combinar e servir entregam retalhos da nossa história; são nossa identidade mesclada montada num só prato redondo, barato e exato. Trocaria todos os risotos, peixes crus e caviares que já comi por um bom PF, penso, com certa insistência. No meu quintal, um Rio de vários legados, lembrar deles é arrumar alguma carne, arroz, feijão, farofa e salada num prato de vidro ou na marmita dos dias.

Reparo que nos PFs cariocas, por exemplo, feijão e farinha vão com frequência apartados de seus pratos feitos, em cumbucas pequenas de onde podem ser repostos como convir, repetidos em colheradas ou derramados inteiramente sobre tudo. Feijões costumam ter mais lugar que farinhas e farofas, contrário do que se vê no Norte e no Nordeste. No Rio, é comum encontrar farofas inexpressivas, claras e rarefeitas, em cantinhos ou porções tímidas, temperadas pela falta de hábito. Nas mesas de restaurantes do Pará e da Bahia, terras gigantes onde vivo a sorte de ter os dois pés, a farinha é mandatória, abundante e bem escolhida. Onde há PF as farinheiras são órgão vital, e circulam de mesa em mesa, sem cerimônia. Cada um serve-se o quanto quiser de farinha fina ou grossa, branquinha ou amarela, amálgama da fome.
Farofa é coisa mais doméstica. Em Salvador e no Recôncavo, a farofa é de dendê quando o restante também, mas se não for, pode ter amendoim e camarão seco. No Pará, minha família é das farofas de manteiga, torradas em fogo baixo com toucinho e cebola, e fechadas em pote de vidro para que durem por uma semana, já que se come diariamente com quase tudo. Nesses dois lugares o feijão mulatinho é a regra, não o preto, e em Belém, gosto de ver como farinha por cima de açaí com charque, peixe frito ou camarão seco também é sinônimo de PF. Na altura de Minas, feijão e farinha viram uma coisa só no feijão-tropeiro, essa invenção genial, e divide espaço com as vidas do milho, desfilado em angus de mérito africano, na canjiquinha, no cuscuz, xerém e quirera (ou quirela), pares naturais de costelinhas de porco estaladiças e suculentas, de fora para dentro. Quanto mais ao Sul, mais salsa que coentro no fim de tudo, e saber a hora e o lugar de cada um também é um dom.

É bom lembrar que o Brasil é imenso, e entre essas duas letras, o P e o F, há também um mundaréu de pratos apegados, impartíveis, inseparáveis de suas guarnições. Clássicos como a carne assada com molho ferrugem e espaguete, o frango ensopado com ervilhas e batatas gloriosas, cozidas no próprio molho corado, a vaca atolada infalível com mandioca cozida, desmanchando na ponta do garfo. Pernil com maionese (ou macarronese!), língua com purê, rabada com mais batatas e agrião. Moquecas e peixadas com pirão.
A lista não tem fim*, e move o Brasil desde que começaram a ser servidos em pensões e paragens na estrada, restaurando as energias de tropeiros e trabalhadores que iam e vinham de suas lidas diárias na terra. Era comida de casa, feita em casa, no seio de cada família. E até hoje, viajando de carro ou olhando para cima nos sobrados das cidades, é nesses pousos onde mais gosto de comer. Respiro aliviado diante dos cheiros, dos chiados e da singeleza dessa cozinha fundamental. Essa que se faz pelas entranhas dos bairros, nas janelas mais discretas, nas receitas de olho, num saber-fazer que mora na escuta e na língua falada. Uma cozinha amorosa, que envolve e desarma, e pela qual se tem algum carinho, mesmo que antigo.
Essa cozinha de instinto, feita no fio dos dias com desenvoltura e sem embaraço, se não é feita por mulheres, certamente foi ensinada por elas. Há ciências ocultas e numerosos verões por trás de cada refogado, cada escolha de panela e esguicho de vinagre, muitas vezes sem razão clara de ser — e não por gosto ou vocação, mas pelo tom desbotado da cultura de um tempo que dizia que lugar de mulher era na cozinha, desimportante. Como se fosse fácil desossar um frango, fazer uma dobradinha, uma um panelão de feijoada, de maniçoba ou vatapá. Preparar o almoço pensando no que deixar pro jantar.
Em 2022, meu primeiro almoço na rua foi um PF no Belo Bar, meu boteco no mundo. Era frango à milanesa de capa dourada e crocante, e com arroz solto, feijão grosso, farofa pouca, fritas quase crocantes, tomate e cebola. Raspei o prato, um duralex âmbar insuspeito, óculos escuros de uma dessas mesas de plástico vermelho da Brahma. Vi minha própria mistura refletida no vidro, e que aquele prato era feito da cozinha e da gente do Brasil. E que fome sinto, agora. Não devia ter escrito esse texto tão longe do meio-dia.
*A lista não tem fim posto que cultura é coisa viva.
Aqui, quatro endereços imperdíveis para comer um bom PF no Rio de Janeiro:
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arroz com feijão misturado enche a boca d'água em qualquer hora do dia.
post delicioso, texto gostoso e esfomeante.
beijo