Quando criei essa newsletter, decidi que o domingo seria o dia oficial de publicar as crônicas que escreveria. Baseava a escolha no meu próprio costume de ter os fins de semanas livres, como tinha que ser. Pintei a cena do momento de leitura como acontecia comigo: essa coisa romantizada de poder acordar quando o corpo quiser, passar um café, colocar uma música gostosa e se embalar calmamente em uma leitura desapressada, de preferência uma crônica. Me arrepiava todinho com Domingo, de Maria Bethânia: Domingo eu não sofro, domingo eu sou de paz e alegria.
Sou filho de bancários concursados que sempre trabalharam demais, sofreram inúmeros assaltos armados e levaram doenças do corpo e da mente para o resto da vida. Apesar de tudo, tínhamos, juntos, religiosamente, os sábados e domingos. Eram dias de estar entre nós: de arrumar a casa, cozinhar, curtir a família, e se sobrasse tempo, dinheiro e disposição, comer fora, ir ao cinema, ao museu ou à livraria. No ruim, tínhamos sempre o mar, vasto e de graça, à nossa disposição.
Domingos comprávamos o jornal e líamos a revista Programa. Eu só lia a seção Achados imperdíveis, de objetos bonitinhos reunidos a partir de um tema, e a coluna da Martha Medeiros. Depois de crescer, já trabalhando durante a faculdade, maquinava o que podia para ter uma rotina flexível, se assim pudesse escolher. Pelos privilégios que carrego, muito mais que por sorte, esforço ou talento, consegui.
Passei como freelancer por produtoras de cinema, veículos de imprensa, estúdios de fotografia e programas de rádio, sempre sem direitos trabalhistas assegurados, mas sem horários desumanos a cumprir. Tive a carteira assinada só uma vez na vida, por quatro anos felizes, em um cargo de confiança que me garantia a flexibilidade almejada. Sempre tive os sábados e domingos para mim, e sempre valorizei o luxo dessa possibilidade. Luxo que deveria ser apenas o básico.
Nunca deixei de pensar, entretanto, em quem trabalha em outra régua. Na minha realidade mais próxima, nos que trabalham em bares e restaurantes, como muitos e muitos amigos. Gente que tem esse mapa virado do avesso, vivendo em escala 6x1: seis dias trabalhados, um dia de folga. Na maioria dos casos, apenas um-fucking-domingo por mês. Gente para quem sábados, domingos e feriados, ao contrário, costumam ser os dias mais intensos da semana. As folgas da equipe vão sendo distribuídas para os dias de menos movimento, desfavoráveis ao negócio do restaurante, como as segundas-feiras, quando muitos não abrem, ou, se abrem, recebem menos clientes. Enquanto a cidade buzina, então, todo o time que refogou, fritou, lavou, sorriu e serviu pode, em teoria, descansar. Mas, na maioria dos casos, só trabalha mais, dentro ou fora de casa.
Essa semana, li uma pessoa que trabalhou comigo contar, por conta da escala 6x1, que nunca conseguiu fazer o curso de teatro que sempre sonhou, tampouco terminar sua faculdade de Letras. São muitos sonhos adiados ou interrompidos, problemas de saúde, vícios, depressões e outras implicações psicológicas profundas operadas por sistemas laborais assim. Sem tempo ou ânimo para cozinhar, trabalhadores são empurrados para um panorama alimentar igualmente adoecedor, mas o único que lhes parece conveniente: os alimentos ultraprocessados.
Tudo sustentado pela voracidade de um sistema que só pensa em lucrar em cima dos corpos alheios. Com frequência, fruto de relações sutis, mas bastante arraigadas de poder derivadas de uma herança escravocrata que carregamos, e, sabemos bem, se aprofundam com pessoas racializadas. Quem trabalha infeliz, adoecido, assediado ou exausto, não trabalha bem. Não deveria sequer trabalhar.
Pensemos em uma jornada comum às cozinhas e salões da Zona Sul do Rio: oito horas de trabalho e quatro horas no transporte. Oito horas de sono, o que seria digno, fariam sobrar apenas quatro horas para viver todo o resto. O resultado? Pessoas completamente atadas a um modelo sufocante de trabalho que não lhes permite prosperar, se profissionalizar, cultuar sua religião, cuidar da saúde, fazer exercício, sambar, ver Netflix, lavar a louça, transar. Quando chega a folga, ou o esperado domingo-único por mês, o que se faz? Muitas vezes, a semana é tão pesada que quando se está em casa só se quer descansar, desabar na cama com a roupa do corpo (e, mesmo assim, nem sempre dá). Aniversários? Enterros? Tempo para si, para os seus, para fazer nada, de pernas para o ar? Quem tem o direito de gostar dos domingos?
Nos negócios mais sérios — os que levam pessoas a sério, os que lembram que funcionários têm vida —, quebra-se a cabeça pensando no bem-estar de quem trabalha. Fecham as portas um ou mais dias por semana ou, ao menos, escolhem fechar em horários ociosos, por exemplo, para arejar a escala. A produtividade melhora. Trabalha-se mais feliz. Quem trabalha sente-se valorizado. A receita está nos detalhes que, na verdade, são pilares: é preciso oferecer uma escala digna, um almoço delicioso, um ambiente saudável e sem assédio moral. É preciso olhar nos olhos. Deixar emendar duas folgas. Pagar o que é justo. Respeitar horários.
Um modelo [o 6x1] que sobrecarrega as escolas, que passam a cumprir papéis que caberiam às famílias; sobrecarrega familiares mais velhos, que se veem obrigados a cuidar de netos, sobrinhos, etc.; sobrecarrega o sistema de saúde, os transportes, empurra para informalidade, pesa, estrangula e emperra um país inteiro no atraso colonial e nos modelos com perfume escravocrata. Um molde que faz prosperar apenas alguns empregadores, aqueles que seriam prósperos de qualquer maneira porque já saíram com vantagens na corrida com obstáculos da existência.
Quando levei esse assunto a uma das pessoas que mais entende de gestão de restaurantes que conheço, Ana Paula Krebs, sua resposta foi clara: tudo é gente. E gente exige respeito. Jornadas de 12h não traduzem respeito. Surpreender-se que o trabalhador queira folgar aos fins de semana, avisar hoje que vai se trabalhar ou folgar amanhã, pedir que se feche a casa num dia e abra a casa no dia seguinte… Nada disso é respeito.
A discussão nunca deixou de existir nos bastidores, mas se avolumou e ganhou o debate público na última semana, quando, a partir de um movimento social, o Vida Além do Trabalho (VAT), a deputada Erika Hilton tomou a frente da criação de uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) pelo fim do regime 6x1. Para além do que acontecerá nas bandas da lei, e da revolução que é uma parlamentar travesti e negra a encabeçar um importante levante trabalhista, a pressão social, nas redes e nas ruas, bordou com fios de ferro a importância desse tema.
Equacionar o problema exige uma matemática complexa. Envolve voltar-se para as engrenagens de cada negócio de modo individualizado, entendendo as particularidades que cada um guarda. Rearranjar funções, enxugar horários, rever estoques, processos, compras e desperdícios. A linha é ainda mais tênue com empresas pequenas que, por mais humanas que sejam, frequentemente pelejam para sobreviver. Por isso é importante mobilizar sindicatos, associações e pressionar onde der, cobrando do Estado contrapartidas condizentes, políticas de incentivo, revisões fiscais e tudo que possa colaborar para tornar esse novo cenário, a única via para a saúde de quem trabalha na ponta, concretamente possível.
Passou da hora, entretanto, de exigir humanidade de todas elas, mas sobretudo daquelas que podem, já hoje, com a lei que temos, fazer esse tipo de manobra. Abrir mão de uma gota de seu lucro oceânico para devolver a vida digna aos trabalhadores que constróem sua riqueza. Dizem que é preciso ponderar a viabilidade econômica, mas para os realmente grandes, é, sim, imediatamente viável. Falo de redes multimilionárias, megarestaurantes com megainvestidores, e não só no campo da restauração, mas em muitos outros que funcionam da mesma forma. Pode haver perdas, mas no plano humano, há muito mais ganhos. Mas que lógica neoliberal quer sacrificar o seu pelo bem do Outro?
Tudo é gente, Ana me disse. E trabalhar com gente só dá realmente certo se for pela via do respeito, da valorização da vida de cada um, pessoal e profissional. Gente exige respeito. Todo mundo deveria poder gostar dos domingos.
Eu sou venener [
] de carteirinha, e sugiro ler a edição que saiu ontem sobre o fim da escala 6x1, bem completona, como de costume. Mas essa edição sobre o maioral, o Guia Alimentar para a População Brasileira, que completa 10 anos, merece ser emoldurada, lida e relida.Até o dia 4 de dezembro estão abertas as inscrições para o o curso de verão “Alimentação, sustentabilidade e crise climática: diálogos entre teoria e prática”, do núcleo
, da USP, que acontece de 3 a 7 de fevereiro, em formato presencial, em São Paulo. Recomendo demais! Informações e inscrições aqui.
Excelente texto.
Me emocionei ao le-lo .. que profundidade de texto ..do humano .. da exploração.. do ser …abraços paz, amor e luz.\
Continue nesta jornada e receba as bençãos do Universo para você e os seus ..
não se pode dar “privilégios” ao povo, dizem os que já nasceram privilegiados