“Resolvi plantar quiabo, mais um tanto. O sertão carrega histórias feito lendas que me bordam de Brasil e de um amor tão profundo pela vida que quando vejo estou abrindo covas em algum espaço pra seguir plantando. A relação com a terra, com o tempo de plantar e ver brotar, reborda em meus poros a força de experienciar a vida.
Desde o dia que meu avô me fez amar quiabo, lá pelos meus 7 anos de idade, eu venho desenvolvendo uma relação profunda com ele. Que evidentemente só cresceu nos últimos anos. Os banhos com quiabo em rituais de axé são inexplicavelmente sublimes. Os carurus, as infinitas técnicas e formas de corte. As inúmeras possibilidades de preparo para alcançar a perfeição em baba ou não. Aqui temos quiabos que acompanham a terra há mais de 60 anos. Rebrotam e nos acompanham entregando beleza todo ano.
Quiabo deve ser plantado por quem não gosta, ou pelo menos é o que o vento conta por aqui. Quando por quem não come ele brota explosivamente. Quiabo não se pode de jeito nenhum semear do alto. O corpo deve reclinar e agachar, tentando ao máximo alcançar a altura da cova para realizar a semeadura. Do contrário os pés alcançam alturas que tornam dificílima a missão de colher seus frutos. A flor do quiabo presta serviço de caneta pelo caminho da roça e é de um tom rosa querendo ser vinho que só ela sabe dar a palavra. Cuidado ao colher quiabo, o vento daqui anuncia que ele catuca (juazinho danado).
Resolvi plantar quiabo mais um tanto.”
Alice Lutz*
Quiabo é desses verdes injustiçados, é impossível não reparar. Há certa vilania e resistência no ar quando se quer saber quem gosta deles, o que se pensa deles, quem come quiabos ou não. Como com o jiló, diminuído pelo amargor, ou o coentro, por sua própria existência, o quiabo é desestimado por sua baba, liga de tantas receitas, fio de tantas histórias. Tem quem garanta saber tirar a baba com precisão, enquanto outros sopram que o segredo está mesmo na escolha: deve-se quebrar sua ponta com o polegar, um por um, gentilmente, segurando seu corpo delgado. Se romperem sem recusa quer dizer que estão bons, firmes e frescos; caso a ponta se curve, molenga, deve ficar por lá. Se penso em quiabos, logo pego minha cabeça fugindo para a Bahia e me vejo sem saída. É lá que o ar recende a azeite de dendê, e quiabos estão sempre aos montes nas cestas e balaios das feiras e mercados das cidades. Não basta sorrir, cantar, biri-biri e umbucajá: a Bahia cultiva uma relação profunda, indivisível com sua ancestralidade africana, e, portanto, com o quiabo, também.
Não é difícil entender sua intimidade com a cozinha afro-baiana, já que o quiabo é nativo da África, e bem antes de pensarem em fazer dessa terra brasileira qualquer coisa, quiabos já eram o centro de muitos pratos, rituais e saberes do lado de lá do mar. Estudando sobre alimentação afro-brasileira, entendi o porquê: o quiabo tem um ciclo de cultivo curto e sementes discretas, de trânsito fácil, que batidas na terra nova brotariam com rapidez, se espalhando e se espichando pela relva, tomando conta de tudo.
De lá para cá, em processos ancestrais de guarda e multiplicação de sementes, quem trazia sementes de quiabos nos bolsos, nas tranças, nas danças, não só manteria acesa a continuidade de uma cultura alimentar, mas renovaria o vínculo tênue entre o novo território, sobre o qual não pairava escolha, e a memória inseparável da terra originária, onde se queria, se deveria estar.
Também aprendi a não ter medo de enxergar que certas preferências escondem muito mais que nossos gostos, e que negar ou apagar do quiabo sua baba, sua parte constituinte, não deixa de ser um processo de embranquecimento, de torná-lo diferente do que ele é, sendo de onde é. Quem resolveu decretar que sua baba o tornaria menor? Quando aprendemos a achar a baba do quiabo ruim? No fundo, é a mesma matéria de preconceito que sofrem as baianas de acarajé que tem suas presenças ameaçadas em praça pública, onde sempre estiverem, com a desculpa de que o cheiro do dendê é muito forte. Racismo, o nome da doença.
Por tudo isso, vibrei de emoção quando ajudei a preparar o replantio de algumas linhas de quiabos lisos e quiabos-carcará, mais curtos e rajados, espremendo as vagens secas para retirar suas sementes num pote de vidro, semanas atrás, no Sítio São José. Dias depois, um punhado dos quiabos frescos que trouxe de lá reapareceram fatiados num almoço frugal em que juntei arroz integral com feijão cavala, de Belém, quiabo refogado com dendê e farinha fina de Paraty. Mas fiz pensando na Bahia, onde os quiabos têm seu prato-palco, a quiabada, um ensopado rico que ainda leva charque, camarão seco e um gole de dendê, e vive em cartaz nos cardápios populares da cidade. Sei pela sorte de ver com os próprios olhos que quiabada é prato feito trivial nas calçadas empoeiradas da velha Salvador.
Na Bahia, antes da quiabada, conheci os carurus**. Achava engraçada a baba que despendia de cada colherada grande, puxada do fundo da panela com vigor e levada ao prato com firmeza, derramando seu peso e deixando seu visgo pelo caminho. Mistura dos saberes indígenas (que já socavam seus alimentos no pilão) e africanos escravizados (que ainda agregaram amendoim, camarão seco e dendê à receita), o caruru é um dos recheios do acarajé, mas seu ponto alto é mesmo em setembro, no dia vinte e sete, quando vira protagonista do dia de São Cosme e Damião — é o caruru de Ibeji para as religiões de matriz africana. Puxei o assunto e meu pai lembrou dos carurus de sua época de menino, rememorando uma lembrança cristalina. Me contou que na casa onde cresceu, como em toda a Bahia, o dia era sempre sagrado e dedicado ao prato, com direito a ritual. Na intenção dos santos gêmeos, protetores dos erês, sete crianças da vizinhança deveriam comer um prato de caruru antes dos adultos.
Comiam com as mãos, sentados no chão, ao redor de uma mesma vasilha de alumínio, que continha todos os insumos de um caruru completo. Punham vatapá, xinxim de galinha, arroz branco, feijão preto, feijão fradinho, pipoca, palitos de cana fresca, fitas da carne do coco, acarajé, abará, rapadura, milho branco, farofa, e, ufa, é claro, o caruru. O tempo foi passando, as crianças deixaram de brincar na rua pela violência dos dias e pelas telas do celulares, e a tradição foi estiando.
Na casa da Jaci, uma grande amiga da família, porém, a partição segue viva: em vez da roda de meninos comendo com as mãos, convida a família, os amigos e os amigos de amigos para comerem em sua casa, e prepara sete quentinhas completas para distribuir às crianças do bairro que cruzarem seu caminho. A cada ano, porém, é mais difícil encontrar quem tope. Muitas crianças não aceitam; são de famílias evangélicas. Não comeriam comida de santo.
Cozinhando, comendo, conversando e convencendo, temos chances de fazer as pazes com o quiabo, de reparar aos poucos a chaga ainda tão aberta do racismo no Brasil, que de tão vil, atinge até a alimentação. Criar, comer e divulgar uma cozinha que valorize os ingredientes que representem essa cultura, como sempre fez a chef Andressa Cabral, agora ainda mais com seu Yayá, uma reverência à cozinha afro-diaspórica no Brasil, também. Sorri por dentro e por fora quando citei o Oyó, um dos potinhos que Andressa criou para Meza Bar, porto sempre seguro da noite do Rio, em uma matéria que fiz: entre outras coisas boas, tinha um leque de quiabos tostados, comida de Omolu, em homenagem ao seu orixá. Dali em diante aprendi a fazê-los tostados no forno, e agora vivo levantando quiabos corados pelo rabo para jogar direto na boca. Deito um punhado deles inteiros com fio farto de azeite e revolvo sem requinte numa assadeira de bordas altas. Tiro antes de ficarem crocantes, ainda escorregadios por dentro. Passei a adorá-los, enfim.
Se mesmo assim nada disso fizer sentido para você, já que quiabo é coisa gosmenta, te aconselho a procurar saber de um pé de quiabo. São compridos e despontam em uma flor amarela linda no topo, flor amarelinha de pétalas finas e miolo cor forte de vinho tinto. Se não gostar de flor, desisto. Aconselho que vá a Bahia.
* Alice é uma amiga de alma, cozinheira e agricultora que vive e cultiva maravilhas cheias de história e respeito no Sítio São José, na Serra da Bocaina, na divisa entre o Rio e São Paulo
** Caruru também é folha corriqueira nos matos e roçados do Brasil, e quase todo sertanejo conhece. É uma das que atendem pela sigla modernosa de PANC, os matos comestíveis de quintal
Lindo texto! Como diz o provérbio africano “Quem come quiabo, não pega feitiço”
Também amo quiabo. Como grelhado, na salada, na quiabada, no caruru...