As notícias no Brasil pedem a quem sente que se distraia para não definhar de desânimo. Busco conforto na cozinha, acho que nem preciso mais dizer, mas quando nem para isso parece haver clima, é o conforto da cozinha que me busca num lampejo de leveza que me faz companhia. Aconteceu na última quarta-feira, e como uma daquelas vontades repentinas que atravessam o céu de um olhar parado, resolvi fazer uma receita que adiava há semanas, de uma vontade adiada faz ainda mais tempo — quibe de forno. Mesmo que distante, meu parentesco libanês justificou o hábito duradouro de quibes a fio nas mesas da família, tanto os fritos, moldados na mão, os quibes “de bico”, crocantes por fora e de recheio soltinho com cebola translúcida por dentro, quanto os crus ou assados no tabuleiro, riscados em losangos com a ponta da faca, como faz o meu pai. De um jeito ou de outro, minha melhor memória de infância sobre eles é sempre a pista de canela em pó incorporada à carne ainda fria, e fico besta como combinam tanto, a carne moída e essa especiaria doce. Queria ter estado lá para ver o momento da primeira pitada, assistir a cara de “deu certo” dessa pessoa com sopro de anjo.
Antes de comprar os ingredientes liguei para o meu pai, que tem costume de fazer a receita de olho, e pedi que me emprestasse suas astúcias: me disse do hortelã que tinge a cebola de verde, da pimenta síria e do cominho além da canela, da manteiga derretida no fim de tudo, preenchendo os sulcos marcados pela faca. Antes de desligar o telefone, perguntador como de costume, insisti em achar qualquer traço mais vivo dessa receita na nossa família. Descobri que um primo de algum grau já vendeu quibes nas praias de Salvador, depois montou um quiosque num posto de gasolina e, ultimamente, uma loja dedicada só a eles. Conjecturamos se a receita que meu pai fazia sem lembrar de onde veio não era da matriarca da família, a última das nossas árabes, que se foi pouco tempo atrás com 108 anos de idade e “nítida, nítida”, como alguns baianos falam de um ancião ainda lúcido. Alice Habib Raful era seu nome. Não é bonito de dizer ao vento?

Infelizmente, não tive tempo de alcançá-la para que me contasse essa história, às vezes um quibe é só um quibe, me contentei, pensando baixo. Minha avó Nilzete sempre fez quibes, charutos de folha de uva recheados com carne de porco e mijadra, o arroz com lentilha e cebolas douradas difíceis de esquecer. Não faz mais — está cansada e completa noventa anos amanhã, acreditam? —, mas lembra que foram receitas que aprendeu com a família do meu avô, o Habib da equação, ele sim, filho de libanês com brasileira. Elias Habib era meu bisavô árabe que não conheci. Era mascate*, gente que vivia da oralidade, negociantes de rua, e andava por aí com uma caixa nas costas, vendendo produtos de toda a sorte, de porta em porta. Veio para o Brasil adulto, fugindo de um Líbano em constante conflito separatista, no fim do século 19, junto de alguns milhões que emigraram de lá pra cá. Os Habib vieram direto para Maracangalha, a mesma onde Dorival Caymmi disse que iria, distrito minúsculo de São Sebastião do Passé, na Bahia. Seu Elias cimentou sua vida sem nunca abandonar o tino para o comércio, ramo tão árabe, e em Maracangalha abriu um armazém de Secos & Molhados, a minutos de Santo Amaro da Purificação, terra de Bethânia, Caetano e Manuel Querino, e de outras Bahias de nomes tão nossos que só podiam ser de lá, como Caçarongonga, Mombaça, Papuçu…
Pensei que se fosse no Rio onde tivesse aportado, poderia ser um dos tantos libaneses que abriram suas vendas no Saara, meca do comércio popular da cidade, fundado pela comunidade árabe, nascidos de cotovelos sobre os balcões. Mora lá um dos meus restaurantes árabes favoritos do Rio, o El Gebal, na rua Buenos Aires. Arrumo desculpa para ir ao Centro só para escolher uma esfiha da vitrine quente, pedir um prato do homus denso e liso, servido com salsinha picada na hora, que cubro de azeite. O conheci pela Renata Gebara, uma amiga cuja história familiar também vem das bandas perfumadas de lá. Teve mais sorte que eu em estar perto das suas origens: lembra com precisão do quibe de forno de sua avó, filha de libaneses, e que fora casada com um. Por conta de uma cirurgia na tireóide, Dona Angela perdeu o olfato e o paladar, e fazia tudo com os outros sentidos que lhe sobrava: misturava tudo de olho, vendo a água fervente inchar o triguilho, apertando a massa suavemente com as mãos. Só pedia para sua filha provar o sal e a pimenta, do resto, tomava conta. Montava no tabuleiro em duas camadas altas entremeadas de um punhado de pinolis salpicados, e por cima, para decorar, mais pinolis, desta vez ligeramente tostados na frigideira. Renata lembra de um cheiro de canela muito sutil, a mesma natureza do que sinto no quibe que meu pai prepara, pano de fundo da carne macia e suculenta, a superfície crocante.
O quibe cru de sua avó era outro acontecimento: não era vermelhão como de costume, mas carregado no limão, com quem marinava desapressado. Servia em pequenos bocados montados na mesa: da cebola crua partida em quatro destacava as pétalas, punha um pouco do quibe, decorava com folhas inteiras de hortelã e rodava uma argola de azeite por cima. A cena se repetia a cada sábado, quando era dia de almoço árabe no apartamento da mesma Copacabana que tanto amo, a mesa sempre farta, posta com os dois tipos de quibe — o cru e o de bandeja — junto do tabule, kaftas, arroz marroquino e arroz de lentilhas com muitas cebolas, mais caramelizadas que fritas. De sobremesa, os ataif que só sua avó fazia, sobremesa que parece um travesseiro macio, massa que lembra a de panqueca, e costuma ser recheado de nozes ou amêndoas. Na versão dela era belamente abrasileirado, cheio de catupiry, e assado com a calda fluida e transparente de açúcar e água de rosas, delicadeza comum nos doces de lá.
Voltei ao chão e lidei com o que tinha, e não cheirava a flores. A cara carne crua que pouca gente pode comprar, um sentimento bolorento de tristeza, o peito apertado em pensar no que o Brasil anda vivendo do lado de fora da minha cozinha estreita. Deslizei o quibe forno adentro e fui lavar a louça. Já pensava em escrever sobre ele, mas o texto quis nascer justo ali, só porque eu estava de mãos molhadas, sujas de sabão, com a música alta, o celular longe, o cachorro dormindo, a lombar doendo. O quibe se escolheu e as frases começavam a brotar sem que eu pudesse anotá-las. Acho engraçado esse raio doce e urgente que obriga quem escreve a escrever, e que resolve cair quando bem entende, justo quando não deve. A louça se estica e as palavras rareiam teimosas, como em muitos textos perdidos que já desceram ralo abaixo e sequer deixaram vestígio na pia vazia. Esse, o do quibe, se finge de detergente e escorrega, tenta escapar, cheirando a canela. Não deixo. Lavo tudo, concentrado para não perder as palavras. Seco as mãos, abro o computador e bato o texto, que ainda engorda um bom tanto imprevisto, porque quando escrevo lembro e esqueço de tudo, nasço e morro de novo a espera de algo que me esclareça. São 15:35 e daqui a cinco minutos o quibe fica pronto. Parece que deu certo.
A receita com todas as quantidades exatas do quibe de bandeja do meu pai vai estar disponível para os assinante pagos nesta quinta-feira, e com direito a áudio explicativo. Está uma graça.
*Como explica esse trecho de “Gabriela Cravo e Canela”, de Jorge Amado, que descreve o Sul da Bahia, justamente o estado para o qual os meus emigraram:
Árabes pobres, mascates das estradas, exibiam suas malas abertas, berliques e berloques, cortes baratos de chita, colares falsos e vistosos, anéis brilhantes de vidro, perfumes com nomes estrangeiros, fabricados em São Paulo. Mulatas e negras, empregadas nas casas ricas, amontoavam-se ante as malas abertas. […] Longas negociações. Os colares sobre os peitos negros, as pulseiras nos braços mulatos, uma tentação! O vidro dos anéis faiscava ao sol que nem diamante.
Que lindo isso