Uma hora diz que enjoou de cozinhar. Outras, que nunca gostou. Na última vez em que a visitei, descobri que ama panetone (era dezembro) e não suporta canela. Que anda cansada e que não gostava de jogar baralho, mas adorava ficar de vigia, juíza das partidas das amigas, que já partiram quase todas. Ultimamente tem dito com certa ênfase que detesta cozinhar; faz bico emburrado e acena o indicador no ar, no alto e atrás da cabeça, em negação inarredável. Mas ainda faz uma porção de coisas boas com a desculpa de que precisa comer. Uma delas é sua sopa de macarrão, um caldo simples e restaurador feito de carne de músculo de vaca, como ela chama, extrato de tomate e macarrão cabelinho de anjo quebrado com as mãos, direto na panela — a mesma, aliás, desde a época em que gostava de cozinhar. Nesse dia, tomamos um prato da sopa com um copo de suco de cajá, feito da polpa. “Hoje não ficou boa, não”, sentenciou, repuxando a boca pro lado, depois da primeira colherada. Para mim era a mesma melhor sopa do mundo, e por ser fácil e comum, sei que dificilmente cairá no repertório das receitas que decidiria parar de fazer. Por dentro, meu corpo sorriu de alívio.
Conheço de longa data essa panela com cara de caldeirão, toda de alumínio e com uma alça longa, também usada para preparar sua sopa de feijão, canja e mungunzá, e por mais estranho que pareça, lembro dela pelo cheiro da chama do fogão da minha avó, que tem um cheiro diferente de todos os outros que conheço. O mesmo dos verões na casa do bairro do Barbalho, em Salvador, mesmo depois de ter mudado de fogão e endereço. Se chego e esquentamos qualquer coisa (mas costuma ser sopa), volto àquela casa só pelo cheiro do lume azul, apesar da fachada forrada de jasmim. Parecia uma casa de bonecas, toda coberta dessas flores miúdas, branquinhas e perfumadas que aprendi a adorar e que tomavam o ar de assalto pelo acaso de qualquer vento que soprasse janelas adentro. Tinha um quintal com aquele piso típico de certos quintais, de cerâmica vermelha, e uma mesa de apoio onde meu avô prendia um moedor de ferro para carnes, daqueles com manivela, que se fixam no canto do tampo. Nessa mesa também cortavam jaca, catavam feijão, descascavam camarão, ralavam coco seco para fazer cocada, picavam coentro para salpicar em quase tudo.
Sinto saudade da sua feijoada em mais domingos, e não só do gosto da comida no prato. Para ser sincero, a falta dessa feijoada é de muita coisa junta, muito mais que dela própria. Da saladona convidativa de alface com rodelas grossas de tomates firmes (uma coisa que adoro na Bahia é o costume de se comer tomates verdes ou avermelhando), cebolas, pimentões e ovos cozidos, cortados em quatro. Do feijão mulatinho de caldo opulento na sopeira de inox e suas carnes servidas à parte, numa travessa de vidro, sempre marcada de esmalte rosa com suas iniciais, NH, para que ninguém levasse embora enganado. De ver a “carne de salpresa”, carne de porco seca e salgada, que só vi no Nordeste, ser chamada assim. Tudo na sala imensa daquele casarão, na mesa de mármore claro, e com farinha fina que nevava sobre o prato feito. Ficava numa farinheira de metal, a mesma que ela usa até hoje, e leva dentro um pãozinho de Santo Antônio, distribuído como lembrança na festa do santo, para se mergulhar dentro de onde se guarda farinha. Dizem que atrai fartura àquela casa.
Nesses dias de sol, jasmim e feijoada, eu, que era chato para comer, enrolava de propósito para ver a mesma cena se repetir: restar neto e avó na mesa, sentados nas cadeiras de espaldar alto, estofadas de tecido bordô. Ela moldando os bolinhos com as pontas de todos os dedos da mão, as unhas grossas e rachadas, sempre pintadas de rosa cintilante. Fazia de cada punhado uma refeição completa, desfiando as carnes e misturando tudo com o verso do garfo, bicando a ponta de uma banana no arremate de cada bocado. A mistura cimentada de farinha ia da mão dela à minha boca úmida num movimento firme, misto de carinho e autoridade. Cada bolinho tinha o nome de uma patente do exército, e o objetivo era chegar à mais alta, o capitão. Queria dizer que depois de cabos, soldados, sargento e generais, tinha comido bem.
Capitão é como se conhece o jeito de comer bolinhos assim, no sertão. Minha avó Nilzete nasceu bem no seio dele, de um sertão beijado pelo mar. Foi há quase 90 anos, na cidadezinha de Belmonte, na lonjura mais sul que a Bahia conhece. Seu avô tinha uma fazenda de piaçava em Mujiquiçaba, localidade vizinha, coisa que merece ser dita só porque é gostoso de ler e falar. Lembra que a praia era bonita e que tinha um areal vasto e alvo, onde ia brincar. Saiu "moça" e nunca mais voltou, não tem vontade. Eu tenho.
Na outra ponta do coração, minha mãe sente uma saudade imensa da sua — minha outra avó, Célia, que nunca conheci. Um aneurisma tirou sua vida enquanto tomava um banho quente aos cinquenta e cinco anos, mas suas frases, olhares e receitas andam até hoje por nossos dias. Guardamos alguns dos cadernos feitos por ela, a letra primorosa em caneta azul, hoje marcada em páginas amareladas que cheiram a uma saudade que nunca desbota. Espantam as quantidades enormes (20 ovos, um quilo de farinha, três xícaras de óleo), justificadas nos costumes da época, na família numerosa (tinha seis filhos, e as irmãs, mais de dez) e na vida profissional movimentada que levava. Era professora de matemática da rede pública de Belém do Pará, e fazia as contas de multiplicar de cabeça, transformando receitas pequenas em versões fartas num pulo.
Ágil, despachada e sempre disposta, estava à frente dos comes de quermesses beneficentes, círios de Nazaré e festas de São João nas escolas públicas onde ensinou, e em casa ainda fazia almoços de domingo servidos em louça nova, em grandes travessas enfeitadas com flor de tomate. Foi uma mulher de origem simples, mas que quebrava padrões com a naturalidade que quebrava um ovo, e ainda mais à frente de seu tempo quando decidiu ser parte do primeiro grupo de estudos da pílula anticoncepcional na cidade, para o qual emprestou seu corpo. Não saía de casa sem colônia no pescoço e batom vermelho na boca, e queria ver todos os filhos formados na universidade federal. Conseguiu.
Nos aniversários da família, assava sempre um bolo rubro, um bolo de chocolate muito singular e intenso, feito com cacau em pó. Tinha esse nome por conta de seu brilho avermelhado, tamanha sua escureza, e era coberto com brigadeiro e castanhas do Pará quebradas, depois de torradas no forno quente. O êxito da receita, no entanto, dependia de um truque: segundo ela, os ingredientes secos deveriam ser peneirados sete vezes antes de encontrarem os líquidos. Punha, então, cada um da prole a peneirar feliz sua fatia de farinha, açúcar, cacau e fermento. Assim, fazia com que todos fossem parte do programa e, de quebra, se envolvessem com os traquejos da cozinha, fixando memórias dessas que nunca se apagam. Hoje todos cozinham bem, e se fazem o tal bolo, não cogitam abreviar a receita. Não sabem se o passo-a-passo era mesmo assim, e nem querem saber.
Pessoalmente, acho importante nunca parar de fazer receitas de família. E não porque sejam as melhores ou tenham técnica, mas porque fazem bem à cabeça. De tempos em tempos, remexo as gavetas da cozinha ou da lembrança, a minha ou de qualquer um perto de mim. Sinto que revivem dentro da gente os gostos, jeitos e gestos de quem deixou cama arrumada na nossa saudade. Toda vez que fazemos bolo rubro, a tarde acaba em lágrimas de uma alegria diferente. Em um dos meus livros favoritos da vida inteira até agora, Mania de Explicação, da Adriana Falcão, a personagem diz que “saudade” é quando o momento tenta fugir da lembrança pra acontecer de novo e não consegue. Mas receitas de família, acredito, ajudam. São receitas de saudade.
No meu Instagram tem foto da panela com cara de caldeirão, da feijoada e da minha avó Nilzete servindo sua sopa. No texto para assinantes pagos desta semana, compartilho a receita do bolo rubro da minha avó Célia para matar a saudade junto e, quem sabe, acordar em mais gente a vontade de fazer uma receita assim, amorosa como bolo de vó.
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Olá, adorei o texto de hoje. Fiquei doida com o bolo rubro. Não achei a receita!
Meu querido e favorito 🤗!
Cada frase desse texto me proporciona nova “viagem”.
Percorro com você cada cena, sinto tato, cheiros, texturas e sabores. Efeito de que Saudade é Presença!
E recebendo a cada “post” seu um novo “bilhete” com passagem de ida. Depois que embarco, não quero mais voltar.
Vamos!!! “ … me desculpe, estou de malas 🧳 prontas, hoje a poesia veio ao meu encontro. Já raiou o dia, vamos viajar..”
Beijos 😘 com abraço 🤗