Andavam como quem volta do horário de almoço. Postas lado a lado, arrastavam as passadas largas, pés abertos em "dez para as duas", bloqueando a calçada da rua Dias da Rocha de crachás pendurados no pescoço, passando a língua nos dentes. Em Copacabana, é claro, mas podia ser em qualquer outro lugar cheio da vida acontecendo a todo segundo. Um par de pombos bagunça seus cabelos num rasante, as buzinas dos ônibus se esgoelam na avenida de trás, aparelhos de ar-condicionado pingam seus choros gelados naquela tarde quente, mas estão as três vidradas em seus celulares, andando devagar, alheias ao mundo. Tinham acabado de sair de um restaurante a quilo.
A primeira comera uma fatia de quiche de frango (que ela chamava de galinha) com uma montanha verde de folhas úmidas e uns ovos de codorna que corriam pela borda prato raso de louça branca. Um deles caiu no chão bem na hora em que inclinou o corpo sobre o bufê para colocar o molho rosê. A segunda comeu churrasco, tiras da pontinha bem passada da alcatra raspada na chapa, arroz e batatas fritas angulosas, crocantes e confiantes até se encharcarem do feijão preto, feito só no alho. Tinha paladar infantil, e sempre adiava o brigadeiro do final, salvo às sextas.
A terceira era a mais caótica, e possivelmente a mais feliz: arroz integral e estrogonofe de frango por cima, ao lado de um salpicão puxado na maionese e batata palha, complemento carnal das duas vontades. Salada de macarrão, cenoura e beterraba raladas em quantidades mínimas, um refogado de quiabo e duas pecinhas de califórnia, do barco de japonês. A comida japonesa tem o preço do quilo mais caro, e justamente por isso escolhe o califórnia, feito de pepino, manga e kani, menos oneroso ao restaurante. A moça da balança conhece a peça, perdoa o hábito e sublima a dupla. Pagaram suas contas no balcão gelado que guarda os copos da gelatina de morango, duas com bebida e outra sem, nada de sobremesas nem cafezinhos. Tomavam o chá fraco de cidreira, já morno, servido na térmica de metal que ficava junto à porta da saída, onde se entrega o canhoto da comanda com o carimbo vermelho infalível — pago.
Embora tenha perdido o costume de frequentá-los no Rio, cultivo um carinho todo especial por restaurantes a quilo. Tenho o orgulho e o privilégio de ter crescido em muitos deles, em dias de geladeiras incautas de pais que sempre trabalharam muito. No extinto Caçarola de Barro, em frente ao prédio onde cresci, em Copacabana, a garçonete era a mesma desde a época em que meus pais trabalhavam por perto. Batiam ponto lá, também. Chiquinha me viu crescer, dando conta dessa parte importante da minha vida, por isso, me autorizava docemente a crescer os olhos nos bifes à milanesa que ela pedia que preparassem só para mim, e que nunca viram a cor daquele bufê. Eram grandes, dourados-escuros e crocantes, uma versão do que o Bar Lagoa seria se funcionasse só para você. Ali, além dos bifes batidos de capa crocante que voavam da cozinha à minha mesa, inscrevi em mim outras paixões bem brasileiras, como a por hot filadélfias e empadinhas de queijo.
Depois de adultar, passei a ir aos “quilos” no horário de almoço. São práticos para tempos espremidos e agradam a todo tipo de gente, dos preguiçosos individuais e cozinheiros inábeis às equipes diversas das empresas, que costumam almoçar em bando, e têm gostos dramaticamente diferentes. Foi meu caso quando trabalhei na Conspiração Filmes, em Botafogo. Depois do meio-dia já não pensava em mais nada. Eu e uma equipe adorável da qual fiz parte almoçávamos em um restaurante apelidado de escadinha, já que tinha uma escada, onde comi o melhor empadão (ou torta?) de frango (ou de galinha?) da minha ainda breve história com tortas e empadões, personagens comuns dos meus melhores sonhos assados.
Úmido, fumegante e laranjinha, ele estava lá todos os dias, fiel e inalterável, e a casquinha delicada que a pincelada de gema pariu pairava solta no topo da torta redonda, de massa quebradiça o suficiente. Diários também eram o arroz e feijão exemplares, servidos em panelões de barro brilhoso num aparador destacado do bufê. Algumas coisas apareciam só de vez em quando — lembro de uma cenoura simples, cortada em rodelas enviesadas, refogada na manteiga com um tico de mostarda amarela, e de salgadinhos de festa que faziam sumir a dor de cabeça de uma reunião difícil. A primeira mordida tinha gosto de sexta-feira, mesmo numa terça.
Sexta, aliás, era dia de cumprir com a regra tácita dos restaurantes da cidade de servir feijoada, praticamente uma obrigação. Uns tem até torresminhos e caipirinha de cortesia no copinho plástico de café, o que acho uma graça, festivo e bem brasileiro, ainda mais no diminutivo. Na Bahia, os restaurantes a quilo também têm seu acordo íntimo com as sextas-feiras, que amanhecem cheirando a dendê. Na minha última ida a Salvador cheguei justo numa sexta, e logo antes da hora do almoço. Fui do aeroporto à balança, e no meu prato reluziam as colheradas generosas de quem tem saudade. Vatapá, caruru, xinxim* de galinha e farofa de dendê fizeram meu dia, depois me colocaram para dormir na rede azul da casa do meu pai, que quando estou longe, costuma almoçar na rua às sextas e me mandar a foto do seu prato feito amarelo.
Na estrada, em cidades menores ou em alguns bairros dos grandes centros, é fácil ver os quilos sem balança, onde limitam a quantidade da carne, já posta no prato, e liberam o bufê de acompanhamentos ao gosto da fome do freguês. Foi em um desses, num fim de semana prolongado no Arraial do Sana, que parei para restaurar as energias de um dia de trilhas e cachoeira na mata exuberante do lugar. Três coxas de frango caipira ensopado, quibebe de abóbora madura, arroz, feijão carioquinha e farofa à vontade. Mês passado, no interior de São Paulo, esbarrei com outro: escolhi uma carne de panela alimentada há tempos no mesmo panelão, e servida com cebola roxa, torresmo, linguiça e mandioca cozida, o que já dispensaria qualquer complemento. Se fui feliz? Deixo que pensem, e aconselho que se entreguem aos quilos de vez em quando, tapando cada buraco de vontade. Essa vontade luminosa de poder escolher o que comer.
*O xinxim de galinha é um guisado da cozinha afro-brasileira feito com frango, azeite de dendê e camarão seco, entre outros temperos intransferíveis
Ler esse texto foi uma delícia! E ainda lembrei das minhas épocas de almoço em quilo <3
Mateus, que delicia a descoberta da sua newsletter! Também sou fã dos quilos, amei sua escrita e fiz uma viagem bem saborosa pelos restaurantes que passei. Beijos! E um ps. se quiser conhecer a minha newsletter, clica aqui na fotinha, acho que vai gostar :)