
Minha mãe, durante um período da infância, teve feridas nas mãos que ninguém sabia o que eram. Não era cobreiro porque não andava. Formavam um pus verde e tinham um “olho” preto. Com cuidado e agulha nova, minha avó estourava uma a uma, limpava com água oxigenada, passava unguento cicatrizante de andiroba, copaíba e sebo de Holanda e fechava o curativo com uma folha de pimenteira, que “puxava” a infecção. Ainda pedia que minha mãe tomasse um trago de água inglesa, elixir cura-tudo da época, que compravam na drogaria Beirão, uma botica referência em Belém. Funcionava.
Em Belém, nessa época, chamavam de sangue doce quem tinha a pele sensível assim. Uma cútis manhosa, que inflamava à toa, a ponto de qualquer batida de quina ou mordida de carapanã abrir ferida. Era um dito popular, sangue doce (e pesquisando concluí que ainda é, e não só em Belém), mas minha avó Célia não gostava que comentassem, colando esse apelido à minha mãe quando a viam de curativo feito e perguntavam a história. Não gostava do tom. Sabia que essa era uma alfinetada besta, fofoca despeitada. Crendice sem fundamento: nem de saúde, nem de encanto.
Era frágil, muito magra, não à toa virando esse seu apelido, magra, mesmo depois que esse deixou de ser seu traço mais marcante. Sessenta e poucos anos depois, minha mãe parece ter sarado do sangue doce, mas com a idade que avança, tenho notado seu corpo mais frágil com o tempo. Já me preocupam seus tropeções cada vez mais frequentes, as quedas nas calçadas de Copacabana que beijam suas coxas de roxo e deixam os joelhos sempre ralados de arrastar de mau jeito suas rasteirinhas no chão. Até que lida bem com isso de envelhecer, mas não romantiza, ao contrário: decreta a quem queira saber, em alto e bom tom, que a velhice é uma merda.
Novembro é seu mês, quando comecei a escrever esse texto. Escorpiana raiz. Sindicalista, seu atributo mais orgulhoso. Justa. Vasta. Acelerada. Oxum com Ogum. Mãe e avó de gente e de bicho. Envelhecer é uma de suas canções favoritas da vida, daquelas que ela não cansa de ouvir, talvez por redescobrir, a cada dia que passa, os sentidos que Arnaldo Antunes gravou em cada verso, lançados um ano antes de o autor completar seus 50.
Fizemos, neste ano, quando ela veio me visitar para assistir à defesa do mestrado, um ritual antigo: o de ler o mesmo livro, ela antes de mim, e eu relê-lo passeando por sua mente, vendo as frases que ela sublinhou de lápis, e os recados que ela deixa para trás como uma caça ao tesouro. Noites Azuis, de Joan Didion, foi o livro que escolhi. A autora falava sobre envelhecer, e sobre a dor mais anti-natural do mundo: o luto de uma mãe que perde uma filha. Não vi, no entanto, nenhuma frase grifada no decorrer da leitura, uma leitura de sufocante emoção e lucidez. Até a última página: O medo é daquilo que ainda resta a perder. No fim da última folha, meus olhos nessa altura aos prantos, liam as seguintes palavras escritas em fraco grafite:
Sei que você não gosta de rabiscar seus livros, mas não teria passado por aqui se não tivesse marcado pelo menos uma frase… A minha fragilidade já mostra seus prenúncios, começo a sentir o medo tomando o lugar da coragem, que sempre foi minha aliada e companheira constante. Tento afastar o medo: “Como quando alguém morre, não fique se torturando por isso”.
Mãe, quando me olho no espelho reconheço o seu nariz no meu, o sorriso tímido em algumas fotos, a mancha no meu indicador direito que é a mesma da sua coxa, mas aquilo com o que mais nos parecemos está na parte de dentro, no recheio da pele. É o gosto pelos livros e pelas pessoas de todas as tribos. O senso urgente de igualdade, o horror ao que não seja horizontal, o valor do coletivo e o gosto inegociável, por outro lado, por ficar só e em silêncio.
O que é só seu e eu criticava, hoje quero ter, e, aos poucos, acho que tenho conseguido: o raciocínio que voa na velocidade da luz, o olfato apuradíssimo, o gosto por antiguidades para decorar a casa, a aversão ao desperdício e uma cozinha intuitiva, sem receita e com cerveja aberta. A sabedoria de que tudo pode sempre melhorar com um pouco de coentro no prato e alfazema no cangote.
Sardinhas, sabonetes, filmes cabeça, violetas na janela. A tia moderna, a irmã libertária, a avó descolada, a amiga com quem se pode contar. Cozinha enquanto pensa, decide na hora o que vai na panela e quanto, nada sem porquê. Abaixa e aumenta o fogo, troca de boca, verte de uma pra outra panela, queima os dedos, passa pomada (a sulfadiazina de prata tão importante quanto o sal fino nas prateleiras da cozinha) e segue o baile. É a fonte verborrágica que todo jornalista gostaria de ter por perto. Resolve tudo para todos, puxa papo mesmo adorando estar sozinha, não vai à padaria sem trazer debaixo do braço uma história, um sorriso, um docinho diferente. Ajuda quando pode, e até quando não pode. Só tem medo de rato. Nunca de gente. Seu pai dizia à sua mãe: “Binha, essa menina é diferente”.
Gosto de ver a relação que tem com meu pai, seguramente a melhor pessoa que já cruzou nossos caminhos. Separados inseparáveis, na decisão tão acertada de ter um filho com seu melhor amigo. Adoro ouvir suas histórias da época em que trabalhou no BNH (Banco Nacional de Habitação), ou sobre a infância em Icoaraci, a biografia de seus amigos incríveis... Sua busca obstinada, mesmo nos contextos menos favoráveis, por algum tempo de prazer. Guardo na gaveta mais íntima aquele coração de resina que você deixou em um embrulho que ainda conserva o seu cheiro. Aquelas cartas que trocamos e que nunca mais li por medo de colapsar em lágrimas.
O sentimento que só nós sentimos e entendemos pelo Maxixe, nosso caramelo mais doce. A fé na vida e a certeza de que no fim tudo vai ter que dar certo como um patuá que nunca tiramos do bolso. Um patuá que trazemos de longe, bordado por outras gerações. “Desistir não existe no meu dicionário, então, sigamos”, ela me disse ontem mesmo. Também lembro dela dizendo que eu realizei o que para ela havia ficado no sonho — fazer um mestrado — e até o que ela nem ousou sonhar — um doutorado — enquanto mãe de dois, recém-chegada no Rio, brigando com unhas e dentes para que pudéssemos mais que ela pôde. E para que fôssemos felizes, nós e ela própria. Não sei como, conseguiu. Ou melhor: sei, sim.
A coisa mais moderna que existe nessa vida é envelhecer
A barba vai descendo e os cabelos vão caindo pra cabeça aparecer
Os filhos vão crescendo e o tempo vai dizendo que agora é pra valer
Os outros vão morrendo e a gente aprendendo a esquecerNão quero morrer pois quero ver como será que deve ser envelhecer
Eu quero é viver pra ver qual é, e dizer venha pra o que vai acontecerEu quero que o tapete voe
No meio da sala de estar
Eu quero que a panela de pressão pressione
E que a pia comece a pingar
Eu quero que a sirene soe
E me faça levantar do sofá
Eu quero pôr Rita Pavone
No ringtone do meu celular
Eu quero estar no meio do ciclone
Pra poder aproveitar
E quando eu esquecer meu próprio nome
Que me chamem de velho gagáAh, ah-ah, ah, ah-ah!
Oh-oh-oh-oh!
Gagá ah, ah-ah!
Oh-oh-oh-oh!
Ah, ah-ah, ah, ah-ah!
Oh-oh-oh-oh!
Gagá ah, ah-ah!Pois ser eternamente adolescente nada é mais demodé
Com uns ralos fios de cabelo sobre a testa que não para de crescer
Não sei por que essa gente vira a cara pro presente e esquece de aprender
Que felizmente ou infelizmente sempre o tempo vai correrNão quero morrer pois quero ver como será que deve ser envelhecer
Eu quero é viver pra ver qual é e dizer venha pra o que vai acontecer
Excelente... singelo .. transbordando luz e amor.
Me faltam palavras para elogiar as suas, mas sobraram lágrimas ao ler seu texto, apreciando as diferenças da sua “véia” da minha e me surpreendendo (não tão surpreso) com as semelhanças, também presentes no meu texto que você lindamente comentou. Um abraço!