Sempre esteve nas Alagoas, sempre na beirada do mar. Sabia as marés de cabeça e conhecia cada uma das fases da lua e do céu. A meia-lua inteira, com feição de tapioca dobrada. A lua cheia de aspirina e o cisquinho de lua que, como uma lamparina fraca, fazia força pra iluminar o escuro. Sabia ler a matemática da noite, sempre tramada entre o vento e a água. Seu quintal era um mar bonito de doer, tão verde-azul e imenso de dia, tão negro e prateado de noite, que não imprimia em fotografia, só na vista viva daquele instante de areia.
A intimidade que cultivava com o lugar era tanta que saberia o ponto exato da praia em que estaria se a soltassem num canto qualquer, só de espiar o desenho torto dos coqueirais. Conhecia de berço aquela cadela-mãe que saltitava as tetas cheias de leite pedindo dengo e água doce dos banhistas. Sabia que sandálias havaiana encolhiam ao longo do tempo se expostas ao sol, e as enterrava quando ia passar longas horas no mar, se banhando na maré alta ou cavucando maçunim na areia, na baixa.
Sabia as ruas de chão batido de cór, cravejadas de aroeiras bicadas por passarinhos. Com eles tinha uma relação diária: abria meios mamões e eles se encarregavam de almoçar a carne e replantar o resto. Quando via um mamoeiro se querendo num canto improvável, sabia que tinha sido obra deles. E um pouco sua, também.
Seu quintal, que já fora floresta, hoje era cimento. Naquela tarde quente, sua casa cheirava aos cajus maduros, presente de Dalvinha, sua vizinha desde sempre. Dona Céu, inebriada pelo cheiro que a desarmava de qualquer questão, ficava olhando aquela dureza e ensaiando em retomar o quintal dos sonhos. Não se achava velha demais para sonhar. Teria primeiro um cajueiro e uma mangueira. Goiabeira, da vermelha e da branca, para lembrar sua mãe. Jenipapeiro e jaqueira para lembrar seu pai. Abiu, se desse; jasmim trepado de fora a fora no muro, que achava a coisa mais linda. E uma bananeira, para lembrar de Baixinho.
Fazia uma boa buchada, cuscuz com ovo e linguiça, moqueca do peixe que houvesse e uma senhora carne do sol na nata. De tudo o que fazia, orgulho mesmo só tinha dos sequilhos. Sabia que eram bons porque sabia que tinha paciência para eles. Tripinha por tripinha, esquecia do mundo, só pensando no agora. O resto, fazia porque precisava comer. Gostar de cozinhar, gostava não.
Teve uma vida rueira, bem aventurada, sem cerimônias. Rasgava de moto sem capacete levantando poeira, beijava as bocas todas, torava no forró até o galo cantar. Teve uma barraca de petiscos na Praia do Ancinho, muito bonita e lotada, mas começava a sentir medo dos tumultos da alta temporada. E até das magrugadas vazias. Dormia profundo, mas acordava assustada com mensagens intrusivas que invadiam seu sono. Como se colocava granulado na lateral de um bolo? Por que os fins de domingo têm um gosto ruim? Onde estaria Baixinho, naquele minuto?
A vida era quase igualzinha a de antes, mas agora sem ele. A casa em silêncio. O chão mais limpo. Tudo bem mais parado. Foi se acostumando a viver com essa tristeza no bolso como quem carrega uma faca cega na cintura: não corta, mas incomoda. Achava até que se saía bem para quem tinha perdido o grande amor. Mas era nos dias em que sonhava com ele, que, sabia, o dia seguinte ia ser de ressaca. Não importava o tamanho do sol que rompesse no céu. Quando sonhava com Baixinho, o mundo amanhecia nublado no dentro dela.
Hoje ele apareceu, suspirou em voz alta pra Dalvinha, que ouvia do outro lado do muro. Era só com ela com quem dividia a fundeza dessa dor. O resto, nem adiantava, não entendia. Logo depois que Baixinho se foi, sua vida virou preto e branco. A laranjura quente dos cajus era cinza. Como se o mar azul cristalino virasse constantemente turvo. Mas como regava sua esperança como aqueles pés que teria em seu quintal, certa de que um dia vingariam, não esmoreceu. Retomou o gosto pela vida e não se trancou na vontade de criar raízes na cama. Alimentava o engano de que ele ainda voltaria.
Naquela tarde, doía demais. Cada rosto que lembrava o dele na rua fazia sua entranhas revirarem. Chorou e gritou no ponto mais deserto de praia, onde sabia que ninguém poderia ouvi-la. Procurou Neto, da oficina de motos, para fazer uma tatuagem. Queria ver se algo doeria mais do que a dor que sentia. Não doía. Neto traçou o rosto dele bem no braço dela, e foi ponteando as agulhas, molhando nas tintas dispostas num estojinho de lentes de contato. Era ele todinho: o focinho gelado, os olhos mansos, a língua pra fora.
Céu nunca, nunquinha, sentiu um amor maior do que por aquele cachorro. Filho, marido, até pai e mãe já tinham a decepcionado em alguma altura da vida. Todos já tinham a deixado para trás. Baixinho, nunca. Eram dez anos sem coleira e de portão encostado, para onde ele sempre voltava. Foi depois daquele dia, um domingo de eleições, a cidade cheia de bandeiras brilhantes, carros de som e uma gente simpática e safada que nunca tinha aparecido ali antes, que Baixinho foi dar sua voltinha e não voltou mais. Céu seguia indo à praia, conversando com o mar, pedindo pro vento, olhando as estrelas. Pedia baixinho que Baixinho voltasse. E nas noites mais tristes, ele latia em seus sonhos.
meu deus 😔
Sempre me emocionando, danado.