Antes de avançar no texto de hoje, um minutinho da sua atenção: me ajude a construir minha dissertação de mestrado respondendo (e se quiser, repassando) esta pesquisa? Valeu!

Naquela sexta, a mãe saiu para ir na lotérica e a filha ficou. A mãe ligou pedindo para deixar separada uma blusa que estava perdida no armário, e, naquela noite, ela queria usar no forró. Aquela blusa, mulher. De manguinha. Que sua tia me deu. Meio gelo.
Gelo? A filha desligou o telefone com a cara roxa de interrogação. Folheou as blusas penduradas nos cabides como quem folheia um dicionário. Ágil, focada, atrás da palavra certa. Que cor é essa, meu Deus? Ficou na dúvida entre três, que não sabia se eram brancas, beges, encardidas ou… gelo. A mãe, porque era enfermeira e de santo, só tinha roupa clara. Intrigada, se sentiu desafiada. Procurou mais. Mais cores via, mais confusa ia ficando. Foi se retando, sem dar o braço a torcer. Porque se tinha uma coisa que ela conhecia, essa coisa era gelo.
Gostava de mastigar um copo cheio de gelo quando ficava sozinha em casa. Era o seu momento íntimo. Mascava aquela crocância com força, como quem mastiga um caco de vidro, até sentir a gengiva sangrar de leve. Quando o gosto ferroso começava, ela parava. Conhecia como ninguém o gosto do gelo. E até do gelo velho, com gosto de fundo de congelador. Conhecia a temperatura cega do gelo. A textura. O jeito certo de descolar o gelo seco do beiço. Conhecia o cheiro do ar gelado que fumaçava o ar quando abria a porta do congelador. Do gelo conhecia tudo, menos a cor. Para ela, gelo não tinha cor, era transparente, de modo que, se um objeto tivesse a cor do gelo, poderia estar em qualquer lugar que ela não iria achar. Transparente, a um passinho do invisível. Encafifada, foi viajando no tema.
Decidiu ver na fonte. Verificar. Abriu a geladeira pela força do hábito, e depois, o congelador, no segundo andar. Puxou fora uma bandeja velha de guerra. Descolou o gelo da cuba num movimento hábil, torcendo cada mão em uma direção, e tirou uma pedra. Reta, sem alma, sem vícios. Gelo. Viu a cor do gelo. Não tinha uma cor definida, mas várias.
Era branco de primeira, opaco, um branco fosco, lusco-fusco, céu de agosto. Depois cinza, mas viu que era o reflexo, e mais um segundo depois, finalmente transparente, e, então, a cor dos seus próprios dedos. Distraiu-se e sentiu queimar a mão e largou na pia, gelo do diacho. Se espantou com o apito de que tinha esquecido o congelador aberto e bateu a porta com fúria, chega a porta bateu e voltou. Molhada, enxugou na coxa da calça, já bufando em vez de respirar. Fez um tsc sonoro, roçando a língua no céu da boca.
Do que havia separado em cima da cama, não estava satisfeita que alguma fosse cor de gelo. O trabalho de campo na cozinha não tinha ajudado. Só alargou sua dúvida, pelo que fez pinçar mais duas ou três blusinhas. Chega. Sua mãe que se virasse para achar a cor de gelo que ela tinha decidido inventar.
Quando chegou apressada, a mãe viu todas as blusas na cama numa rajada de olhar e franziu os lábios desenhando um decidido não, com cara de decepção. Abriu o armário e, num golpe certeiro, pegou a blusa que queria.
— Mãe? Isso é cinza.
— É não, fia. É gelo. E tudo o que você escolheu aí é areia.
areia é o que a filha deve ter tido vontade de jogar nos olhos da mãe depois de horas procurando por uma blusa que a mãe sabia exatamente onde estava e não perdeu um segundo para achar.
lembro que quando era criança e nos mudamos de apartamento, minha mãe escolheu para pintar as paredes a cor "gelo". Eu tinha uns 9 anos na época e aquilo deu um nó na minha cabeça justamente porque gelo não tinha cor.
beijos!!!