Uma escrita doméstica de comida
Esse jeito humano, franco e desafetado de escrever sobre o que se come e se cozinha
Não costumo citar nem recomendar aqui leituras em inglês ou outras línguas que não o português. É uma escolha editorial: acredito que há muito mais para ser lido que seja escrito por nós mesmos, brasileiros, e muito para ser dito sobre quem somos. Decidi que seria assim desde o início desse projeto, e principalmente por não querer reduzir meu público só àqueles que falam inglês e moram dentro da minha bolha. Achei que podia constranger quem não falasse, cortando as asinhas de quem quisesse mergulhar numa leitura complementar. Prato Feito, afinal, todo mundo come.
Nas andanças por onde passo meus olhos, ainda que cada vez menos, reservo algum tempo para textos estrangeiros, que apesar de escassos de brasilidade, meu objeto principal de estudo e paixão, podem contribuir com qualquer outra gaveta do meu pensamento (nem que seja por pura distração). Um dos que mexeu comigo nas últimas semanas veio de uma das poucas newsletters norte-americanas que acompanho com certo rigor, e porque gosto das questões sempre relevantes que discute, From the Desk of Alicia Kennedy [Da escrivaninha de Alicia Kennedy], da jornalista novaiorquina de mesmo nome. O tema: uma escrita doméstica de comida.
Desamarrei a leitura sem compromisso, de canto de olho, largado no sofá entre uma e outra obrigação mental daquele dia. Logo fui me apegando, o texto me laçando, eu apertando os olhos, querendo migrar do celular pro computador. Enxerguei muito de mim naquele manifesto por uma nova escrita de comida, uma que leve em conta a vida cotidiana, a fragilidade de quem cozinha, se corta, queima os dedos, sola o bolo e não se importa em contar como se sente. Uma escrita que fale da cozinha diária e mutável das casas, frequentemente diminuída ou descreditada; um escrever com direito a ressalvas, mais perguntas que respostas. Essa escrita-revelação que expõe sem medo de ser feliz os jeitos mais francos, humanos e naturais de se falar sobre comida.
Apesar de ser cozinheira e desenvolvedora de receitas para livros e portais de culinária, Alicia assume que esse rótulo não a veste completamente. Prefere, em vez disso, falar sobre o modo que cozinha, e não inspirada por um restaurante, mas como quem cozinha para a família em uma segunda-feira aleatória. Em sua newsletter, fala sobre a importância do ato de cozinhar como algo simples e revolucionário, capaz de mudar muita coisa ao nosso redor e de ser um espelho do que acontece fora da cozinha. Um espaço igualmente seguro para falar sobre desejos e autoindulgências, e também sobre política, privilégios, desperdício e reaproveitamento, e que não precise ser factual para ser atual. É sobre mostrar a bagunça da cozinha, e no caso do Brasil, a bagunça do país, a fome e os abismos entre quem come e o quê. Uma escrita arejada, com jeito íntimo, de olhos atentos e portas e janelas sempre abertas.
A escrita doméstica é diferente das preocupações da mídia gastronômica com restaurantes e chefs. É a escrita em que falamos do brilhantismo do cozimento a vapor e da fervura como técnicas culinárias, tantas vezes esquecidas. É uma escrita em que falamos do que cozinhamos quando não estamos com vontade; das diferenças entre cozinhar para amigos íntimos, pessoas que você deixará entrar na cozinha, e cozinhar para conhecidos; as refeições de ressaca; as tarefas que uma criança pode concluir; os molhos para salada; as cascas constantemente esquecidas do parmesão que tínhamos a melhor das intenções de usar de uma forma ou de outra.
Trecho de On Domestic Writing, de Alicia Kennedy, tradução minha
Senti aquele bem-estar, um ufa, eu não estou louco. Pelo menos não sozinho. Qual meu desajuste ao insistir em mostrar o valor no que é banal, no ordinário, na gente comum, no que parece pequeno para quem vê de fora? Em muitas entrevistas que fiz na vida, tentei em vão acessar o que escapasse à norma sem sal desse universo que hoje chamam de gastronomia — os prêmios, as listas, os chefs, as tendências, um mercado, enfim. Me interessava muito mais saber quem tinha ensinado aquela pessoa a cozinhar ou qual era o prato frugal que comeria feliz pelo resto da vida. Prefiro saber como alguém faz arroz ou o que faz enquanto espera o arroz secar em vez ouvir uma nova opinião sobre o fechamento do Noma, um dos melhores restaurantes do mundo, entre todas as aspas do mundo. Ouvir alguém contar em tom de segredo que são beterrabas tintureiras ou um punhado de colorau, pó de fubá e urucum, o verdadeiro borogodó por trás da cor de saúde que tem o seu feijão. Mas nem todo mundo vê valor em contar. Menos gente ainda em publicar.
Depois que criei a newsletter, então, dei vazão a essa vontade. E que refresco é poder escrever tudo isso! Poder reparar, anotar, escrever e publicar os dedos engelhados das pessoas de tanto lavar louça ou descascar camarões, e ainda poder reservar umas linhas e olhar com carinho para as próprias palavras que articulam a vida de quem cozinha. Engelhar, que quer dizer enrugar para quem é de Belém, como metade de mim; machucar, como se diz pilar, amassar com pilão, em muitos outros cantos do Brasil. Falar sobre coentro e salsinha e ver que cara cada pessoa faz; saber se você come pimenta, perguntar sem julgamentos se toma café com açúcar ou se deseja saúde quando alguém espirra. Observar como alguém começa um refogado, organiza a geladeira, de que jeito descasca batatas, qual é a receita curinga que prepara quando não tem ânimo, tempo ou dinheiro. Ver meu pai mexendo o pirão com o caldo da rabada e minha mãe deixando a farinha escorrer pela mão, pouco a pouco, como areia fina na praia, uma das muitas coisas ternas e bonitas que aconteceram dentro das nossas vidas na cozinha. Descobrir na boca o gosto da palavra saudade quando se está acostumado por uma vida inteira a pôr a mesa do almoço com quatro pratos e, de um dia pro outro, passar a pôr só três. Comer-viver-escrever, enfim, no cetim de um suspiro só.
Há muita gente adepta dessa escrita doméstica e bem temperada, em bom português. A Kátia Najara, paulistana radicada em Salvador, põe a vida e a cozinha de todo dia em cena, pelo menos uma vez por semana, em sua coluna no Correio da Bahia, e em palavras que derrama pelos corredores monotemáticos do Instagram. Vibrei quando li uma postagem sua que dizia bem assim: “Eu gosto mesmo é de fazer comida para o cotidiano. Feijões, assados, ensopados, guisados, gratinados, e deixar o freezer cheinho de comida gostosa”, coisa que escreve sem vergonha de dizer que ainda faz descalça, tamanha a entrega, a intimidade, a fluidez com que dança. Assenti com todos meus sentidos quando a li dizer que gostava de esvaziar a geladeira e a despensa antes de comprar mais comida, ensinando que além de regra básica de economia doméstica, esse movimento a fazia sentir um bocadinho mais ética.
Numa edição da Conchas, newsletter da Mariana Vieira em que só se falou de arroz, falou-se também de tudo que ele pode juntar: “Família é um prato difícil de preparar”. Em outra, descreveu a cena que via se repetir pela janela da cozinha: sua vizinha Renata, “uma senhorinha italiana, solteira, valente”, fazer pesto de manjericão com tesoura e pano limpo, batido num daqueles liquidificadores “que são verdadeiras relíquias, cor de creme e marrom, base sólida, jarra inquebrável”. E a Patty Durães, em sua Muito Além da Boca, contando de quando ficou sem redes sociais por um mês e seguiu fazendo tudo o que fazia antes? “Eu falava de mim, das minhas filhas, do suco que decidia fazer pela manhã, lembrava as pessoas de beber água, ensinava a conservar melhor as compras da feira, compartilhava livros que estava lendo, exibia uma pele boa, um cabelo grisalho, uma música, um amor, algumas dores, um axé bem dado, algumas viagens”. Essa semana, lembrou de quando Minas Gerais a recebeu franzina e a devolveu viçosa e corada, contando, toda exclamativa, de quando encheu linguiça no quintal do Djalma, em Desterro do Melo.
Na literatura que veio antes de nós, a escrita doméstica do Brasil teve uma só rainha, e porque o fez sem romantizar ou enfeitar nada demais (e não é Nina Horta, com todo respeito à sua obra).
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