Tia Bajá tinha um terreiro de candomblé, vivi com essa história sonora desde criança debaixo do meu travesseiro. Minha mãe e seus cinco irmãos tinham uma tia ialorixá, mãe de santo, sacerdotisa de uma casa de fé africana. Bajá era a irmã mais velha do meu avô Humberto, mãe de santo iniciada na umbanda e filha de um terreiro de Tambor de Mina, o terreiro Dois Irmãos, o mais antigo em funcionamento no Pará, fundado há mais de um século, e liderado desde sempre por mulheres. Antes de ser Mãe Maria, como era conhecida na comunidade religiosa, fora filha de Maria. Católica empenhada, vivia na igreja e não perdia uma missa, até que, logo que completou a maioridade, coisas estranhas — as manifestações mediúnicas — começaram a acontecer sem que tivesse controle.
Aos poucos, me contou sua filha, entendeu a missão que tinha nas mãos e passou a organizar sessões em casa, em seu quarto, e depois de algum tempo, construiu um espaço no quintal, que evoluiu para seu terreiro “Tenda de Umbanda Pena Verde e Toya Jarina”, e depois de ser iniciada no candomblé, em Recife, transformou-se no “Ilé Asé Odé Mojare”, que funcionou enquanto viveu. Mãe Maria era filha de Odé com Osún, mãe de muitos filhos de santo e de dois filhos de sangue — Rubens e Ruth —, além de secretária da Feucabep, a Federação Espírita e Umbandista dos Cultos Afro-brasileiros do Estado do Pará. Dedicou toda sua vida ao sacerdócio que a escolheu.
Antes disso, permitam-me fazer uma ressalva: na pesquisa para escrever esse texto, durante as últimas semanas, recorri a algumas pessoas que conviveram com meus avós e seus irmãos, e me apresentei a elas como o neto da Célia. Foi a primeira vez que fiz isso, me referir a você para falar de mim (você como sempre abrindo caminhos para o seu menino), e me senti tão perto de você, vó. Foi como se a gente se conhecesse em carne e osso, não só no espírito, e fui tomado por uma intimidade e um orgulho tão profundos que tive certeza de que tínhamos existido juntos no mesmo tempo, e que não nos desgrudávamos.
É porque sei que seria assim se você estivesse aqui hoje, comigo, eu contando os dias para te receber em Coimbra, passear contigo pelos corredores da minha universidade tão antiga, te apresentar à Carmen, minha professora do Mestrado, e ver seus olhos brilhando fitando os dela. Depois desceríamos para a Baixa, te levaria para provar o arroz doce da Lena e de novo te exibiria para ela: Lena, essa é minha avó Célia, professora, mãe de seis, cabeça feita na umbanda com muito orgulho, eu diria, e falaríamos de Angola, onde Lena nasceu, para onde não quer voltar.
Voltaríamos para casa, e como você adoraria ver a quitanda da Fátima, aqui embaixo! Tem caquis de cinema, com folhas e tudo, que vêm da chácara dela e aqui chamam de dióspiros. Quem me ensinou foi a Lucia, uma agricultora que conheci outro dia e nos entregou um punhado de verduras lindas que ela traz do seu sítio todas as terças-feiras. Te vejo batendo perna aqui no bairro, que tem tantas lojinhas das quais você gostava, de tecidos, aviamentos e coisas para a casa. Te levaria para conhecer a Suzana, costureira que fez as barras das nossas cortinas e virou uma amiga. Vocês duas se gostariam muito porque você também adorava costurar, e porque ela é como você e minha mãe: destemidas, despachadas, generosas, pioneiras. Costura desde os doze, trabalhou por décadas em uma lavanderia chique e agora, um ano antes de completar 50, realizou o sonho de abrir sua loja de reparos, para nossa sorte, aqui na frente de casa. Essa semana passamos lá e ela disse que tinha acordado xoxa, só a apetecia chorar. Logo falamos da vida, ela nos ensinou a cuidar de uma espada de São Jorge que tínhamos comprado e o semblante dela mudou. Viu como estou cercado de mulheres fortes, vó?
Você fumaria um cigarro na varanda enquanto eu te mostro os nossos vasinhos de tomilho, a gente falando que o Du não gosta de coentro, mas tenho certeza de que você faria tudo sem coentro para ele, como minha mãe e a Drica fazem. Pediria baixinho, secretamente à Alexa para colocar Índia, da Gal Costa, sua música preferida, só para te ver sorrir achando que era uma coincidência, enquanto eu te preparava um porto tônica, você sentada no nosso sofá grande. Casa limpa e geladeira cheia, você diria satisfeita, como gostava de ter na sua casa. Mas você não está aqui, vó. Não tenho seu colo quente para enxugar essas lágrimas. Só adivinho seu cheiro e sequer ouvi sua voz.
Nasci sete anos depois que minha avó Célia morreu, desviando minha mãe de um luto profundo no qual esse corte seco e precoce (o de perder uma mãe aos 52 anos) tinha a fechado. Só hoje me dei conta disso, e bem sei como o número sete tem força nas nossas religiões. Sete pulinhos no mar de Iemanjá, sete as cores do arco-íris, sete as linhas da umbanda, e em cada uma delas, as legiões de trabalhadores espirituais guiados, cada um, por um orixá. A linha religiosa de Oxalá, por exemplo, elevadíssima, traz pretos-velhos, caboclos e sacerdotes do oriente com voz mansa, a de Iemanjá, com sereias, ninfas e marinheiros da água salgada. Sete Flechas é o nome do caboclo que já apareceu em muitas das nossas giras familiares, ele que é o rei das matas e leva consigo um arco e sete flechas, cada uma dada por um orixá.
Digo tudo isso porque minha avó Célia era outra médium poderosa, que a partir de um certo momento em sua vida, também emprestou seu corpo e sua voz para que as entidades falassem. Começou quando meu avô foi diagnosticado com epilepsia, e ela, aflita, resolveu buscar ajuda num centro espírita, onde entendeu que precisava cuidar de sua mediunidade. Era Cabocla Jurema que tinha sua cabeça, uma cabocla muito forte, cacique guerreira de sua própria tribo, retratada sempre ao lado de uma onça pintada, uma poderosa trabalhadora de cura por meio de infusões e banhos de ervas. Honrou o compromisso de ir ao terreiro trabalhar quando alguém necessitasse, sem nunca cobrar um tostão de sua fé. Tinha um trato feito com seus guias para ter controle sobre seu orí; trabalharia, mas não queria incorporar dentro de casa nem na escola onde ensinava, nem ter que dedicar sua vida ao sacerdócio. Depois disso, vai entender, vovô nunca mais teve uma crise.
Não era o tipo mignon, mas não era mulherão. Tinha um metro e sessenta e sete, minha altura, mas vivia vergando seu corpo para dar passagem a espíritos sofredores ou cerrando seus punhos para bater nos ombros quando seu Rompe Mato pedia para falar. Meu avô Humberto, o Betinho, era mais cético, mas, ainda sim, incorporava pretos-velhos, o caboclo Pena Verde e um padre, pasmem, que falava e escrevia em latim. Nas casas da nossa família sempre houveram congás (ou pejis) o altar onde se acende velas coloridas, se guarda as imagens dos santos e guias, se põe cachaça, mel, fumo, flores e café para lembrar que ali tem filho de fé. E foi graças à força do nosso matriarcado que a religiosidade de matriz afro-indígena se manteve de pé nas nossas vidas de formas mais ou menos fortes, desde sempre. Todas nossas idas a Belém, de onde vem essa parte da família, viravam, também, de reencontro com esse lado de nós: em dias capitaneados por nossas tias, vivíamos o transe, saudávamos os caboclos, os encantados, os índios e guias que sempre passaram na frente dos nossos caminhos em dias inteiros de trabalhos cheios de cantoria e emoção. Tudo sem perder a Nazinha de vista, já que isso costumava acontecer, sobretudo, nos outubros dos círios de Nazaré, quando a família se junta e se embebe desse Brasil sincrético.
Ainda sei muito pouco, e quanto mais me aproximo, mais quero saber e viver. Aceito o que chega até mim — a imagem do caboclo Rompe Mato que trouxe na mala para Portugal, foi assim. Na ida recente da minha mãe a Belém, ela recontou, os olhos pequenos marejados, que numa gira da família tinha aparecido seu Rompe Mato. Com o condão da Sandra, uma médium experiente, nossa madrinha na fé, uma mulher negra, transmitiu a mensagem que minha avó tinha o colocado na minha frente, para proteger meus novos caminhos no além-mar. Rompe Mato é um índio forte, que aparece montado em um cavalo, levando um cocar de penas coloridas na cabeça. Um caboclo da linha de Ogum, o orixá guerreiro, sincretizado na igreja católica, por sua vez, com São Jorge, e muitas vezes num processo de cristianização desses ritos para que pudessem continuar existindo, resistindo. Em outras, por puro apagamento.
Todas essas práticas religiosas foram desenvolvidas por negros africanos e seus descendentes, escravizados e libertos, em uma fusão generosa com as tantas religiosidades dos indígenas originais dessa terra. No Tambor de Mina, criado do Maranhão e depois estabelecido no Pará, por exemplo, diferente do candomblé ou da umbanda, o culto se faz aos voduns. Mina vem de Costa da Mina, região no golfo da Guiné, uma das reentrâncias do continente africano (e que corresponde à faixa litorânea de Gana, Togo, Benim e Nigéria), não por coincidência, de onde partiu um dos maiores fluxos de tráfico transatlântico de escravizados para as Américas.
No Norte, especificamente, ainda há o culto às três princesas turcas, Mariana, Herondina e Toya Jarina, de origem moura, guias muito comuns nas nossas giras. A história, sempre oral, conta que se encantaram (ou seja, viraram encantadas, forças da natureza, sem morte física), na Praia do Lençol, no Maranhão. O jarê, que aparece em Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, é outra vertente de matriz africana muito comum na Chapada Diamantina, na Bahia, juntando elementos de outros cultos africanos com o espiritismo e a umbanda. Há os juremeiros, a quimbanda, o catimbó. E são só algumas das numerosas linhas e entrelinhas das religiões de matriz africana e ameríndia praticadas nesse Brasil tão grande e diverso. Não há, portanto, uma umbanda ou um candomblé; há vários, todos constituídos de modos múltiplos, como bem diz Luiz Antônio Simas em seu livro Umbandas: Uma história do Brasil, marcadamente no plural.
Religiosidade, para mim, é intimidade. Sempre me senti mais próximo a essas fés, muito mais brasileiras, coerentes e genuínas que as cristãs. Essa profusão espiritual de um Brasil que é muito mais nosso, com histórias de bichos, índios, iaras e seres encantados da nossa cultura é o que faz sentido para mim. Tive certeza disso no fim dessa semana, com essa crônica já quase inteiramente escrita, quando fomos a um terreiro de umbanda aqui em Coimbra, uma casa linda de axé, com arbustos de alecrim por todo canto, para todo santo. Era dia da gira de caboclos, uma noite vibrante batendo palma, batendo tambor, cantando as músicas que escutamos em casa, saudando nossos ancestrais e antepassados com uma alegria desmedida.
Um lugar de gente absolutamente feliz, que parecia ter dormido com um cabide na boca, tão largos, vindos de tão fundo, os sorrisos. Ver portugueses saudando os nossos índios, cantando nossos pontos, me deu esperança. Uma casa que vive de doações, o que frisam antes de abrirem os trabalhos — só doa quem pode, como devia ser em todo culto religioso. Passei com um saci, na única médium que, das mais de vinte incorporadas, levava uma pena no seu ojá. Meus olhos já encheram de lágrimas, como ignorar esses sinais, vó? Ser abraçado pela única médium entre todos que levava uma pena na cabeça, como não lembrar da Jurema, a cabocla de pena que estava na sua linha de frente? Era você ali, um pouco. Me deu um passe com charuto, passou um banho de alecrim, boldo e manjericão do pescoço para baixo, uma vela para o meu anjo da guarda, outra para o preto-velho. Disse para que eu nunca, em hipótese alguma, deixasse de sorrir nem de conjugar a cabeça com o coração.
Quantas vezes você nos viu aí de cima, naquele box do antigo apartamento da tia Eliane, tomando banhos de cuia aprendidos nas nossas giras, com ervas compradas no Ver-o-Peso, na barraca da Miracy, vó? Que orgulho que tenho dessas nossas raízes. Como queria ter visto a senhora trabalhar no terreiro como aquelas tantas mulheres que vi aqui trabalhando, girando, bradando, sorrindo, cantando. Tudo dito, nada escrito, tudo na força da oralidade, como sempre foi nas nossas casas e nessas religiões. Só sei o que sei porque minha mãe me contou, porque ouviu minha avó contar, que ouviu outra mulher dizer.
Nessas religiões, e só nessas, vi e vivi amor, humildade e respeito praticados de verdade, sem ressalvas, sem charlatanismos. Em vésperas de eleições, com um gosto amargo na boca, desejo que todos esses guias tão intencionados para o bem guardem e iluminem os caminhos desse Brasil tão rico, tão acidentado. Rezadores, raizeiras e erveiras que dividem o sagrados em tabuleiros nas esquinas, curandeiros, mestres acaboclados, brasileiros de todas as partes e cores, uni-vos. Salve quem tem fé e salve quem não tem fé, dizíamos no início e no final de cada uma das nossas giras. Okê, caboclos. Saravá e Lula lá.
Salve salve! Que forte esse texto, adorei!
Que delicia de texto, de lembranças, de história. Obrigada por compartilhar <3