Visitar o Brasil morando em Portugal é um bolo de rolo de emoções — são muitas voltas. No fim de fevereiro, embarquei com uma missão: realizar o trabalho de campo da minha pesquisa de doutorado. Não embarquei para o Brasil; embarquei para Salvador. Um Brasil muito particular, um que conhece bem a sua história, um que é grande e que é vários embolados num só. E foram muitas as manhãs que varavam tardes e algumas noitinhas em cozinhas alheias. De pessoas diferentes. Que cozinham diferente. As incontáveis perguntas partiam de uma raiz comum: de que modo cozinham em casa, hoje, quem vive em Salvador? O que suas histórias de vida emprestam aos modos de cozinhar na cidade?
No mármore de um prédio chique ou no coração de uma das comunidades mais frequentes nas páginas policiais, foram muitos cortes de alho e cebola, muitas coisas não-ditas, muita conversa que começava na cozinha e terminava em fé, em choro e em família. Pesquei com cuidado e linha fina relatos, imagens e frases dignas de tatuagem, de nome de livro, e que já vislumbro abrindo capítulos. O forno de lenha como memória de dor, não de afeto. O apego cego a um pilão ou a uma panelinha esmaltada de arroz. A umbuzada pá-pum. O siri catado com caldo Knorr de carne. “Quem cozinha é o fogo.” Tudo sintoma do tempo e fruto da própria trama de cada pessoa, da malha gasta do cotidiano, de narrativas tão únicas como aquela nuvem no céu.
Tudo nesses dias me modificou. Aprendi receitas só de olhar, outras de ouvir contar, e assisti em silêncio verdades que eu carregava se desmancharem nos primeiros cinco minutos de conversa. Foi grande encontrar minha co-orientadora, da UFBA, num tabuleiro de acarajé justo na hora do pôr do sol no Rio Vermelho. Ter sido convocado a descascar batatas, a debulhar feijões e a morder pimentas pelas cozinhas por onde passei. E descasquei e debulhei e mordi, como quem assume um lugar. Com a boca quente, percebi o quanto ainda tenho a aprender.
Voltei para Portugal preenchido das histórias que já são a matéria-prima do trabalho que começo a desenvolver, é verdade, mas também da pessoa e do pesquisador que sou, na mesma medida. Graças às saudades matadas, dos lugares e gostos, ao tempo prolongado de corpo imerso em abraços e água salgada. E sobretudo ao tempo passado no lugar onde mais gosto de estar, onde sempre estive, e que hoje é meu lugar de trabalho: as cozinhas das pessoas, de barriga no fogão, com perna em posição de fofoca. Mais ouvidos que boca, todos sentidos acesos. Escutar é como mastigar: exige tempo, saliva, silêncios.
Importa para a minha pesquisa, e também para mim, ouvir meu pai e minha madrinha cantando o pregão do senhor do acaçá, que passava e já não passa mais. Há algo sutil que se assenta no escutar e no lembrar junto. Costuramos naturalmente os dias em família revendo fotos antigas, comendo moqueca na rua e afofando cuscuz na cozinha de casa. Fiz a Feira de São Joaquim, a das Sete Portas, as barracas do Dois de Julho e também as prateleiras do supermercado, sempre atrás de pistas.
Importa que algumas entrevistas terminem à mesa com suco de cajá, acerola ou Coca-Cola, e saber se o suco era da fruta ou da polpa e se lhe punham açúcar. Foi importante ter ido ao teatro três dias seguidos. Achar na força do dente a carne doce do caranguejo e ver o hortelã grosso brilhar nos feijões. E num dia qualquer, passar com meu pai para uma esfiha na Good Day, na Carlos Gomes, onde ele lanchava quando era garoto nos anos 1960, e ouvi-lo dizer que o recheio segue o mesmo, quente e farto, conservando o mesmo tempero.
Foi nessa volta de carro que, pelos olhos dele, acompanhei suas impressões de como a cidade mudou. Quando ele me apontou a esquina da Praça da Sé onde ficava A Boneca, o armarinho que fora de seu avô, e o ponto onde sua tia, Dona Coquinha, armava seu tabuleiro e lhe dava acarajé de graça.
Me acabei em picolés de mangaba, tamarindo e amendoim, lembrando o barulho antigo do picolé roçando no isopor, do tempo em que ainda se vendiam Capelinhas sem embalagem na praia. Vi de corpo inteiro como a Salvador de hoje só mudou de roupa, mas continua profundamente colonial. O menino que não pede dinheiro, pede queijo coalho para comer com o irmão. Juliana que é representante da Doce Desejo, contínua de suas ancestrais que também venderam doce nas ruas em busca de liberdade. Os acaçás de Oxalá e os acarás de Iansã, dos terreiros para as ruas, que agora são brigadeiros gourmet. O vento concreto assobiando sem descanso pela fronte marítima da cidade. A negritude como marca indelével em tudo.
E se as malas não falam de saudade, nem sei do que mais podem falar. Na minha, trouxe requeijão de corte, mini acarajé, moqueca de andu e maniçoba, tudo congelado. Farinha de copioba de Irará, goiabada mineira em caixa de madeira, mate tostado, imagem de santo e alguidar de barro. Barco de miriti, conta de Exu, quebra-queixo e rapadura cubinho. Também veio cocada, feijão carioca, sequilho, beiju e até manteiga. Não que a de Portugal não seja boa, mas não é a nossa, amarela, da roça. E foi por muito pouco que não trouxe água de coco. Por que a gente é sempre assim?, meu pai perguntou, me ajudando a fechar a mala prestes a explodir. Porque a gente sempre leva comida para onde vai, e nunca é pouca. Porque é a comida que nos leva ao lugar para onde precisamos voltar. Dentro.
Lindo texto, amo minha cidade, e toda vez que a vejo pelo olhar de outra pessoa amo ainda mais! Que sua pesquisa já está inteiramente abençoada a gente já sabe, só espero a possibilidade de ler um dia.
E eu aqui, sobrevoando Fortaleza a caminho da Bienal Internacional do Livro e chorando emocionada. Pensando no sonho que vai ser o dia que a gente viajar junto por esse Brasil que a gente tanto ama e enxerga com olhos muito parecidos. Ahhhh que delícia de choro. E viva essa pesquisa, viva a perna de fofoca, viva até o caldo de carne no siri catado. Kkkkkkkkkkkkkkk. Beijo!!!