No prédio de sala-quartos onde morei, Copacabana Boy, os dias mais apressados e de geladeira vazia me levavam a vergar o corpo sobre o parapeito da janela que dava para a rua. Espichava o olhar desde o segundo andar, e quando não alcançava o quadro de giz que punham do lado de fora, descia e via. Ou ligava e sabia. Dava bom dia e perguntava: Que tem pra hoje? Tempos depois, modernizaram-se, passando a mandar todos os dias o cardápio pelo zap. Gostava mais de esperar o quadrinho, sempre escrito à mão.
Era uma casa verde água. Um albergue no andar de cima, uma pensão de comida caseira no andar de baixo. Mão na roda de quem mora só, e não só: de quem trabalha perto, de quem viaja e pousa, de quem só precisa comer e seguir adiante. Tinham a graça de um feijão preto perfeito, no louro e no alho. Um purê liso de batatas, cama de frituras sequinhas, e molhos apurados de quem cozinha para muitos, com desenvoltura, sempre melhores e mais habituais do que nos pratos de quem faz só para um. Levava meu pote, poupava o plástico, mandava o Pix e… pinto no lixo.
Em outra vizinhança, era freguês das marmitas do Panamá, um boteco de respeito e dono de um PF raiz, o que significa que tem carne, arroz e feijão, mas também farofa, salada e macarrão. Temos quentinha, anunciava o Belo Bar no fim da lista de pratos do dia, escrita com giz na lona preta, cuja foto abre esse texto. Temos quentinha, que vira uma acrobacia da língua se escutada e não escrita: temos quem tinha.
Da infância, lembro de ver gente grande da minha família levar comida fria pro trabalho. A marmitex que esquentava com resistência ligada na tomada e que era, no fundo, um modo de resistência às tiranias em cartaz no cardápio do dia — a necessidade de economizar, de produzir sem parar e de não demorar entre sair e voltar. A torre marrom de marmitas fechadas com uma trava que vedava: na base a de arroz, depois a de feijão, a carne, e, no topo, a salada. A máquina de quentinhas de alumínio que selava num giro firme e prateado o que alguém comeria alguns minutos dali. Papel presunto e barbante. Nozinho de pano de prato. Cuidado pra não entornar.
Em todas as voltas no Centro do Rio, nas franjas do meio-dia, toma-lhe quentinha, e não de restaurante, mas de gente que faz e vende. Gente que parte de casa de madrugada e mala cheia, e, com sorte, volta de bolso cheio e mala vazia. Na altura de Ipanema, quentinhas são o coração pulsante dos porta-malas escancarados que se enfileiram naquela borda da Lagoa Rodrigo de Freitas. Já contei mais de vinte, quase sempre mulheres. Em Niterói, a já famosa Rodovia das Quentinhas. Casos em que a comida é combustível de famílias inteiras.
Ofício que tem lastro de gênero e raça, já que, no Brasil, vender comida nas ruas é um saber-fazer que historicamente tem estado nas mãos de mulheres negras. Penso nas compras enormes. No cálculo hábil de elevar à enésima potência um panelão de arroz ou feijão. Na grandeza que é fazer comida e sair às ruas trocando sua ciência — corpo, tempero, sabedoria, experiência — por sustento.
Pelo que tenho visto, quentinhas, marmitas e afins não são negócio forte em Portugal. Parecem ter mais tempo e dignidade de poder parar o trabalho, sentar à mesa de um restaurante e comer. Não vejo quentinhas vendidas nas ruas, em isopores, apregoadas no gogó. Quentinha, aqui, só vi para levar e comer em casa o que de um almoço porventura sobrar. Nas mesas mais simples, se pedimos para embrulhar para viagem, dão a quentinha vazia e a gente mesmo acomoda antes de levantar e pagar.
Não vejo ninguém sentado nos batentes das portas, encostado num muro ou no tronco de uma árvore, comendo a sua com talheres de plástico. Comendo com uma mão enquanto a outra faz as vezes de mesa, aparando a própria quentinha no ar. Na cidade de onde vim, sim. Já que “tempo é dinheiro” e o país, radicalmente desigual, falta o tempo de poder sentar à mesa, receber comida caseira num prato e poder comer descansado. Falta tanta coisa. Mas nosso dia vai chegar. Será?
primeiro que esse texto é um perigo, dá vontade de sair comprar uma quentinha AGORA MESMO. por sorte, daqui a pouco já posso almoçar. segundo que esse texto tá uma delícia de ler. eu sempre fui fisgada pelo aparelho de fechar quentinhas e nunca soube maneja-lo tão bem quando tive a oportunidade. e gostei das reflexões que vc faz sobre o tempo e a venda de comida na rua, fui longe na associação e me lembrei até da leitura de Um defeito de cor.
tem muita quentinha que dá um banho em comida de restaurante. um feijãozinho com arroz bem feito tem todo o meu respeito. meu problema com quentinhas é sempre a quantidade: generosas demais, às vezes acabava comendo mais do que deveria para não jogar comida fora.