Cresci querendo escrever, assistindo gente cozinhar. Assim que entrei na faculdade, comecei a fazer jornalismo no susto: ainda um imberbe calouro da Escola de Comunicação da UFRJ, a Universidade do Brasil, meu grande orgulho, virei redator da Conspiração Filmes. Escrevendo como repórter para o portal #RioEuTeAmo, a entrevista com Kátia Barbosa, do Aconchego Carioca, foi meu divisor de águas claras — naquela casa rosa da Praça da Bandeira (onde hoje está instalado o Dida Bar, lugar de comida afro-brasileira e resistência negra na cidade), tive certeza de que viveria de escrever sobre comida. Sobre a comida e a gente do Brasil. Gente como Kátia, que fala o que pensa, gargalha todo santo dia  e carrega tudo de um punhado de coentro picado. E lá se vai quase uma década.

Minha amiga Luiza Aché, cozinheira das boas, torcendo um maço de coentro para o seu bobó de camarão

Fiz o último semestre da universidade estudando História da Arte na Sorbonne, em Paris, e acabei trabalhando na Divvino, loja de vinhos naturais no boulevard Voltaire que me levou aos quatro cantos da França, esse país do tamanho das Minas Gerais, para ver de perto a história de pessoas que sujavam as mãos de terra, dedicadas ao legado ancestral de fazer vinhos de verdade, da maneira mais natural possível. Entendi que vinho era coisa simples, convivial e festiva, de matar a sede do dia ou do espírito, e que pouco tinha a ver com luxo ou sofisticação, como ainda insistimos pelas bandas de cá. Voltei ao Brasil e defendi minha monografia ligando comida e prazer por meio das teorias freudianas da sexualidade, e à Conspiração para trabalhar como redator no canal de Youtube da Bela Gil, quando mais caminhos políticos e filosóficos que atravessam a alimentação se abriram diante de mim. Aprendi muito, e nesse tempo comecei a escovar os dentes com cúrcuma e a fazer meu próprio leite de amêndoas — dois hábitos que recomendo, apesar de não terem durado.

Virei o disco para o outro lado da mesa e passei três anos na comunicação do restaurante Bazzar, em Ipanema, dando ainda mais valor para o batalhão que deixa seus domingos pelos brindes alheios. Conheci mais uma penca de cozinheiros, garçons, vinhateiros e queijeiros que honravam seu ofícios. Minha noção sobre crítica de gastronomia também mudou consideravelmente. Entre uma coisa e outra, nunca deixei de escrever na imprensa aqui e ali (Estação Zona Sul, Noo Mag, Rádio Ibiza, Agenda Carioca, Revista Ela, Louis Vuitton City Guides) e durante todo esse tempo fui a tantos restaurantes chiques e degustações longas que, aos fins de semana, só queria botequim, cerveja de garrafa, arroz com feijão, farofa e ovo frito. 

Bolinhos de bacalhau no Belo Bar, em Copacabana, meu boteco no mundo

Aqui, volto na intenção de fazer o que sempre quis, o que acredito ter nascido para fazer, já que não consigo lembrar de viver sem fazê-lo: escrever sobre o que vejo e me emociona; sobre as certezas, as dúvidas e as fundações de quem somos, do que faz a vida valer a pena. Imagino que seja para isso que suspiros, broas de milho, pastéis de vento e pratos feitos existam.

por que uma newsletter?

Gosto do formato pelo jeito de flecha que tem: receber um email de um assunto pelo qual se tem apreço desperta o mesmo bem de um bilhete deslizado por debaixo da porta, uma dessas pequenas alegrias que rompem cada vez menos os dias, manchando-os de azul. Como uma correspondência, a newsletter nos abre uma janela mais tranquila de leitura, já que cada um tem seu tempo de percorrer os blocos de texto como quem toma um café demorado, de pernas cruzadas no sofá, ou enquanto se espera o metrô, entre um e outro lugar. Passar a ler algumas delas refrescou meus hábitos: tirei os olhos do molho abatido das redes sociais, limpei minha caixa de emails e mergulhei nos assuntos que me interessavam, lendo em ritmo mais relaxado, menos “no automático”.

A faxina teve motivação ilustre: as newsletters têm se mostrado um jeito direto e eficiente de se fazer e consumir jornalismo independente em tempos espalhados. A lógica é a da autopublicação baseada (ou não) em assinaturas pagas, como num veículo de uma pessoa só, financiado unicamente por seus leitores. São as assinaturas pagas que fazem o trabalho possível, já que incentivam a produção e o acesso ao jornalismo feito em primeira pessoa, livre, e disposto a pagar suas próprias contas, coisa importante (e rara, por muitos motivos) na profissão. 

O Substack, plataforma onde estamos, foi criado justamente com este propósito: permitir que jornalistas e escritores independentes possam rentabilizar seus trabalhos autorais, facilitando o meio de campo com suas audiências específicas, mordendo 10% da receita.  Não tenho bola de cristal, mas acredito que esse formato aponta um futuro animador para o ofício tão espinhoso da escrita, já que mira na construção coletiva, além de ceder a quem escreve a prática de um tempo mais dilatado, mais justo e honesto consigo mesmo. O email tem certa cerimônia, certo resguardo bem-vindo em dias tão esgotados. 

Alhear-se um pouco do barulho das redes sociais, da ânsia das reações imediatas, curtidas e comentários, confesso, me alivia o peito. Não digo que imagens não tenham importância monumental — têm, e nosso tempo é mesmo o das imagens — , só não acredito ser esse o meu registro, minha pegada no terreiro do mundo. Meu registro, digo e assino, é o escrito.

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comida, bebida, cultura

People

Jornalista, filho de paraense com baiano. Natural no Rio de Janeiro e cria de Copacabana, vivendo e estudando em Coimbra. Escreve sobre comida, bebida e cultura por lentes decoloniais.