A primeira alegria de achar um apartamento em Coimbra foi saber que nossos vizinhos de porta também eram imigrantes. Há uma certa cumplicidade que paira no ar entre duas famílias que vivem longe de suas terras, dois países colonizados por portugueses. Antes de encontrá-los pessoalmente, primeiro vieram os cheiros intensos da cozinha, os batuques marcados das músicas, o movimento da casa cheia, de porta sempre semiaberta. O som de uma língua ritmada que não era o português. Do lado de cá da parede, nossa cozinha vivia também agitada, a música alta e devidamente batucada, a casa plena de visitas e calor humano. Nos dois outros apartamentos do andar, lares portugueses, por todos esses meses, silêncio e discrição totais.
Benazira*, mas pode chamar só de Bena [fala-se bená], disse tímida, de tranças vermelhas nos cabelos, a tez escura reluzente, quando nos cruzamos pela primeira vez no corredor. Era inverno e ainda estava grávida, e com o tempo, passamos a nos encontrar com mais e mais frequência, fazendo coisas que vizinhos fazem: apertando a campainha para entregar correspondências trocadas, pedindo uma xícara de farinha para terminar uma receita, ela avisando o distraído que vos escreve, por mais de uma vez, que as chaves tinham ficado para fora. Para a ceia do último Natal, me disse que tinha feito carne de porco à alentejana. Vocês brasileiros são muito simpáticos!
Quando seu filho nasceu, honramos o elogio e levamos um presente. De touca de cetim na cabeça, sua irmã abriu a porta e Bena, que amamentava o bebê no sofá, pediu que a gente entrasse. A casa estava em festa: seus dois outros pequenos correndo e brincando com energia pela sala, videoclipes de afrobeat na tevê, qualquer coisa cheirosa fervendo no fogão e Kangala**, vizinha do terceiro andar que acabamos conhecendo naquele dia, sentada ao seu lado no sofá. Junto do bichinho de pelúcia, levei nas mãos um pote de vidro cheio de farofa amarela de dendê, que tinha acabado de fazer com um azeite que veio da Bahia, na mala do meu pai. Os olhos exclamaram admirados: Ah, óleo de palma? Também temos na Guiné!, disse Bena. Em Angola também, chamamos de dendém, completou Kangala. Por meio da comida descobri de onde eram, antes mesmo de ter a chance de perguntar. O papo rendeu.
Outra vez, cruzei com Kangala na rua e foram quinze minutos em pé, falando de tudo. Naturalmente de funge, tipo de papa mole de milho, uma das origens mais prováveis do nosso angu. De mufete e calulu, outros pratos tradicionais de Angola, e do nosso caruru, ícone da cozinha afro-baiana, similar na palavra e na feitura do que fazem lá. Perguntei se falava o quimbundo, uma das línguas bantu mais difundidas em Angola, e que tanto influenciou o português falado no Brasil — bunda, cafuné, quitanda, tutu e fubá, por exemplo, vêm dele. De onde é, do Zaire, uma das províncias no norte do país, falam o quicongo, outra das tantas línguas bantas. O dendê para nós brasileiros, óleo de palma em português de Portugal, é dendém para ela, um dos jeitos de chamá-lo já que deriva originalmente do quimbundo ndende. Kangala me disse que sempre traz os seus de Angola, porque o vendido aqui, nem de longe, chegava perto do de lá.
Ventou na minha lembrança o processo de extração desse ouro líquido de beleza triunfante. O proceder laborioso de extração, a tecnologia ancestral, africana, do pilão. A flor do dendê raiz que só brota na superfície depois de um criterioso processamento manual para ser recolhida com cuidado, pouco a pouco, como faz Solange Borges na agrovila Pinhão Manso, em Camaçari, na Bahia. Óleo tão rico e representativo que nesse estado dá nome a uma cozinha inteira, sem pretender reduzir todos comeres afro-brasileiros a ela: a cozinha de azeite que faz a cabeça dos restaurantes a quilo de Salvador todas as sextas-feiras, dia sagrado de vestir branco e se melar de amarelo. Olhando bem de perto, não há quem desconfie de onde veio a palmeira do dendê — seu nome científico, elaeis guineensis, leva a Guiné no nome.
“As iguarias em que o português fazia uso do azeite de oliva, o africano adicionava, com eficácia, o azeite de dendê ou de cheiro”,
— Manuel Querino, n’A arte culinária na Bahia
Mas de qual Guiné estamos falando? Benazira e seu marido são da Guiné-Bissau, no norte da costa ocidental africana, entre o Senegal e a Guiné ‘pura’, também conhecida como Guiné Conacry, colonizada por franceses. Diferente, ainda, da Guiné Equatorial, entre Camarões e Gabão, na África Central, usurpada primeiro pelos portugueses, depois cedida à Espanha em troca de ainda mais domínio na América do Sul. Tudo na grande reentrância atlântica do continente africano, costa de numerosos países — o Golfo da Guiné.
No Brasil, a Guiné está no nome de uma das principais ervas da sabedoria ancestral dos terreiros de fé africana, a guiné que faz banhos de purificação e proteção espiritual e defumações poderosas contra qualquer energia ruim. Aparece em um dos mais tradicionais pontos de defumação, aliás: Defuma com as ervas da Jurema / Defuma com arruda e guiné, dupla que dá nome ao livro Arruda e Guiné, coletânea de textos da jornalista e intelectual negra Bianca Santana, biógrafa de Sueli Carneiro.
Encarnada na madeira de um amuleto todo afro-brasileiro — a figa de guiné —, cantado num sem número de composições negras. Mais conhecida naquela escrita por Reginaldo Bessa e Nei Lopes, estreia da voz de Alcione, nos anos 1970: Quem me vinga da mandinga é figa de guiné / Mas o de fé do meu axé não vou dizer quem é, atualizada por MC Tha numa bela nova versão com a Comunidade Jongo Dito Ribeiro, no ano passado.
Dessa Guiné, Bissau é a capital do território em grande parte banhado pelo mar. A terra firme recorta-se em tabancas, pequenas cidades rurais, e avança Atlântico afora em arquipélagos de dezenas de ilhas. Entre elas, o paradisíaco arquipélago de Bijagós, com praias de águas mornas e cristalinas, golfinhos, flamingos e resorts. Por todo o país espalham-se muitos grupos étnicos (mais de 30!): Manjacos, Mandingas, Djaloncas, Fulas, Balantas, Saracolés, Papéis, costumes e línguas distintos, a maioria originária desse território, dunus di tchon [donos do chão, em crioulo guineense]. De todos eles parte uma cozinha complexa, de tradições próprias, feita de ingredientes nativos e outros introduzidos pelas voltas da colonização. São estrelas alimentos como o arroz, a mandioca, o inhame, o amendoim, o quiabo e o djagatu, um tipo nativo de jiló. No crioulo guineense falando em Guiné Bissau, o dendê ganha o nome de citi. Mas quem de nós já foi passar as férias por lá? Traçar um roteiro de restaurantes locais?
Por que assim controlar o diverso? Em princípio, para estabilizar o real. Mas igualmente para afastar, no âmbito imperial de uma racionalidade que tudo pretende explicar, a influência não racionalista da estranheza.
— Muniz Sodré em Pensar nagô
O português é a língua oficial do país, não a língua materna dos falantes, e é importante entender a força deste fato. Institucional, está nas escolas, na imprensa, no governo, cumprindo a função colonial subjacente de afastar os guineenses de suas línguas originais. Não conseguiram: hoje, grande parte deles fala ou arranha a língua de sua etnia e domina o crioulo guineense, a verdadeira língua nacional, falada nas casas, ruas e mercados, um idioma híbrido de base portuguesa, mas forte carga nativa. Como nem os falares locais puderam existir em paz, houve o que ocorre em muitos países colonizados: a crioulização das línguas, quando um novo idioma surge a partir da necessidade de uma comunicação comum entre locais e invasores. Se o português quis dizer civilização, o crioulo guineense virou símbolo de resistência e libertação, sendo elemento importante de luta, inclusive, no tardio processo de independência do país.
No Brasil, tamanha a grandeza do território, pela diversidade linguística indígena e depois africana, a colonização direta e de povoamento, a mestiçagem ostensiva e forçada como ideologia de branqueamento, seria impossível parar em uma língua crioula só. Deu no que temos: um português só nosso, tonal e de vogais abertas e cantadas, profundamente africanizado, o pretuguês de Lélia Gonzalez. O português do Brasil. Uma língua melodiosa, feita de sotaques e jeitos de falar tão particulares que muitas vezes soam inteligíveis só aos que compartilham daquela mesma cultura. Em Portugal, há um clichê simpático para explicar o jeito como falamos, um português com açúcar, mas sabemos, no fundo, que há bem mais que o gosto doce nas nossas bocas.
Dia desses, Bena tocou a nossa campainha. Apareceu com dois potes de castanha de caju torradas em casa, ainda com rastros da casca. Disse que vinham do quintal de seu pai, numa tabanca a 40 minutos de Bissau. Dias depois, quando elogiamos as castanhas, as melhores que já comi, disse que em breve sua família torna a visitar (são só quatro horas de voo), trazem mais castanhas e mangas de lá. Fez cara de desgostosa para as mangas daqui, que para ela, não têm gosto. Como eu, que também não vejo sentido nem graça nas frutas tropicais vendidas desse lado do mar. Contei dos voos que voltam de Belém do Pará: a esteira de bagagens com mais isopores que malas, sempre cheios de açaí, camarão seco, pimentinha, tucupi, polpas congeladas de bacuri e cupuaçu, tantas farinhas… Quando disse que tinha um conhecido da Guiné-Bissau, da etnia Papel, ela sorriu surpresa: Sério? É também a minha! Como ele chama-se? Temos sobrenomes de uma sílaba só. Có, Té, Cã, Dju…
Ainda vou escrever sobre Josué aqui. Hoje quis contar como foi bonito, sei lá, ganhar o caju de lá. Caju nativo do Brasil, levado para a África durante a colonização. Caju tão nosso, palavra que vem do tupi, mas que pela sonoridade, Ca-Dju, poderia muito bem ser da Guiné, filho da etnia Papel. Em Portugal, como não usam a fruta, chamam a castanha só de caju. Na Guiné o aproveitam inteirinho, como fazemos: castanha, polpa, suco, mordida, doce, salgado, tudo. Paro e repenso as conexões erguidas e cortadas entre as três pontas desse balaio feito de múltiplos nós: América, África e Europa. De como nos acostumamos a estar em trânsito, levando nossas comidas junto. Migrando por sobrevivência, nem sempre por escolha própria.
O que é a civilização africana e americana? É um grande transatlântico. Ela não é a civilização Atlântica. Ela é transatlântica. Foi transportado para a América um tipo de vida que era africano. A transmigração de uma cultura e de uma atitude no mundo de um continente para o outro. De África para América.
— Beatriz Nascimento em seu filme ‘Ôrí’.
Quanto mais estudo e olho ao redor, mais fico certo que não se pensa o Brasil sem colocar perspectivas em encruzilhada. Não se entende o Brasil sem entender a diáspora no dicionário: migração forçada. Sem considerar o fio cortante da colonialidade produtora das desigualdades que conhecemos tão bem. Não se fala em cozinha nacional sem falar de mentes e mãos negras e indígenas, antes de quaisquer outras. Não há Brasil sem África. O que havia era África e Brasil antes de qualquer Europa, e que nem assim eram chamados. Mas estamos aqui, nós e eles, sem esquecer do que somos em essência. Estou aqui. No meio do peito e na ponta da caneta, esse desejo febril por reconhecimento e reparação que não cessa. Desejo de escrever, voltar e plantar. Para que, um dia, a gente possa querer ficar.
*Por ser minha vizinha, não minha fonte, escolhi preservar sua identidade usando o pseudônimo de Benazira, em homenageam à Benazira Djoco, líder estudantil, empresária e ativista guineense radicada no Brasil
**Por ser minha vizinha, não minha fonte, escolhi preservar sua identidade usando o pseudônimo de Kangala, em homenagem à Kangala Kingwanda, uma das rainhas dos reinos de Matamba e Dongo, territórios pré-coloniais que viriam a se tornar parte de Angola
abri ontem o e-mail e o texto era tão bom que li ávido. aí voltei de novo hoje pra saborear os detalhes. li sentindo o gosto e o cheiro do caruru, do dendê, do caju e da farofa. que lindo!
Quando abro seus escritos, viajo! E me emociona sempre, quando fala dos cajus, pronto, tocou minha alma. Você é necessário, com sua poesia, escrita e existência tão presente em cada momento vivido.