Como quem não quer nada, imbuído de um prazer íntimo, perfumado de alho dourando, tenho perguntado a algumas pessoas de que modo fazem arroz. Me empoleiro ao lado dos fogões por onde passo ou lanço a flecha no céu de uma conversa qualquer. O semblante logo muda: os olhos apertam, os lábios repuxam, a mão rodopiando como se segurasse uma colher de pau imaginária. E danam a contar, alguns com paixão faiscante, ou despistam sem entender muito bem a pergunta, com a naturalidade de quem faz arroz como escova os dentes antes de sair apressado de casa, um grande nada demais.
Esta crônica era sobre baião, um prato tão brasileiro e vivo em si próprio que tem nome de dança, irradia alegria e encarna a proeza de ser o que muita gente queria poder jantar — arroz com feijão. Mas tão importantes que são, antes de revolver um e outro com coentro e manteiga de garrafa, primeiro, cabe olhar para cada um deles de perto, grãos solteiros, de vidas ilustres e distintas.
A feitura do arroz brasileiro costuma começar pelo alho, trama de tudo. Uns amassam direto os dentes na panela com o socador do pilão; acreditam que ali mesmo a panela já vai pegando o gosto, o alho firme esfregado contra o fundo de alumínio luminoso. Basta um punhado de sal para criar atrito e um passa a esfoliar o outro, transformando tudo numa pasta divina, que se presta a quase tudo. Outros machucam direto com o socador no pilão de madeira ou de pedra sabão, e a maldade que esse ato dedica, juro, é só ao alho. Os práticos ralam, os rústicos fatiam, os hábeis picam bem picadinho. Quando tem cebola, nem ouso a entender quem vai primeiro na panela e na história de cada um, só confio.
Sobre o fio quente de óleo ou azeite, vertem o arroz, o som característico daquela cascata de arroz cru rangendo na panela vazia como um chocalho, medido em copos e canecas ou na largueza do hábito. Fritando e ganhando uma roupa brilhosa, os grãos vão ficando transparentes, selando, estourando em micropartículas de cheiro e som, fazendo fumaça fina que tenta os vizinhos e traz a gente da casa para perto do fogão ver o que é. E sorri quando vê que é arroz. Depois, água posta de olho, um dedo acima ou o dobro de quanto haja do grão. As mãos mais aperreadas a fervem na boca ao lado e derramam de pouco em pouco, acelerando o início e esticando o fim quando o arroz precisa secar aquele pouquinho mais, antes que grude, queime e amargue. Enfim, a sensação boa de desarrumar o arroz pronto com a ponta do garfo, misturando tudo.
Como sabem? Como dominam com tanta destreza as ciências exatíssimas do arroz? De tanto perguntar e reparar, vejo é que aprenderam de ver-fazer, de fazer errado no início, de fazer tanto e para tanta gente que nem pensam mais no que estão fazendo. São manobras pessoais tão entranhadas no exercício de ser quem se é, em que viver e cozinhar há muito tempo viraram uma coisa só, um a extensão do outro. É pela intensidade do frigir na panela, que chia de um jeito certo naquela altura de fogo, daquela boca, daquele fogão. Uma beleza gigantesca, pequenina, mas singular. Pode-se não falar muito de arroz, mas no dia em que não houver arroz, não há quem não perceba. É como quando falta uma pessoa querida a um almoço de domingo, da qual todo mundo lembra, pergunta, fala dela, sente falta.
O arroz, na vista de nutricionista, já ouvi xingarem de caloria vazia. Sobretudo o arroz de prato feito, nosso território, mais comumente do tipo parboilizado (do inglês partial boiled, parcialmente fervido), que não gruda, cozinha mais rápido e rende mais, base segura para feijões e outros caldos. São cozidos em grandes panelões, convenientes e expressos, e gosto do meu por baixo do feijão ou como conduto para arrozes melosos de rabada, galinha ou costela, ou caldosos como o de polvo ou o típico arroz paraense, feito com camarão salgado, jambu e tucupi.
Arroz Maria Izabel, nordestino e colorido, arroz de suã, feito com as carnes que se escondem entremeadas pela espinha dorsal do porco. Arroz de puta rica e de puta pobre, cujo nome me incomoda, confesso, mas compensam pelo mexido delicioso que são, servidos no Bar da Frente, na Praça da Bandeira, a partir de uma dessas lendas urbanas do Rio Antigo — dizem que eram feitos nos bordéis desses tempos, atraindo fregueses pela boca, com a variedade e qualidade de ingredientes que poderiam juntar no arroz. Nas voltas da nossa própria língua falada, a trivialidade do arroz também descreve aquela pessoa que está em todas, o arroz de festa, ou um comportamento esperado, rotineiro e seguro de alguém, um artista ou time de futebol, como um feijão com arroz.
Comemos arroz de tantas formas tão brasileiras que esquecemos de reparar que seu crédito nas Américas não é europeu nem asiático, como muita gente imagina. Só vingou pelas bandas de cá por conta de uma variedade de arroz nativa da África, de grãos vermelhos, já cultivada largamente por lá, bem antes da chegada dos europeus. Muito além do trabalho braçal, o conhecimento na lida com os arrozais, as técnicas e tecnologias do cultivo e processamento do grão vieram todos da África, não da empresa colonial. Isso também explica o sucesso das plantações de arroz pela mão de obra negra no Sul escravocrata dos Estados Unidos, e põe luz em mais um capítulo apagado da História pela doença do racismo.
O grão foi introduzido primeiro por meio dos escravizados como sobras de alimentos das viagens transatlânticas longuíssimas, e também como uma forma consciente de resistência cultural. Algumas mulheres escondiam arroz e outras sementes nas tranças apertadas que marcavam seus cabelos, e que mais tarde, batidas na terra nova, germinariam vida nos roçados e quilombos do caminho. O trânsito de sementes crioulas (nativas, naturais daquele lugar) é uma prática ancestral de manutenção da vida e da cultura de um povo, movimento poderoso e cheio de significados importantes. Mas que fazer se até feijão, cultura fácil de dar e pegar, andam fazem transgênico no Brasil? Tudo para produzir mais, em larga escala, envenenando tudo, homogeneizando o que comemos. Na contramão, o MST, que se move mais que muito político para tirar o Brasil do buraco, cultiva mais de 30 variedades nativas de feijão, e seus assentamentos detém a maior produção de arroz orgânico da América Latina, há anos. O gargalo, hoje, é o escoamento dessa produção.
Que falar do feijão, então? Carioca, preto, branco, verde, vermelho, cavalo, rajado, bolinha, de corda, caupi… Todos me empolgam, ainda mais por serem tantos. Tenho apego pelos miúdos, como o feijão manteiguinha de Santarém, e não só porque nasceu no diminutivo e no Pará, mas porque é um dos que melhor se entende com qualquer tipo de preparo: do quente e caldoso ao firme e frio, nos vinagretes cítricos da vida. O feijão azuki, especialmente o de cultivo agroecológico da Maravilhas São José, que da última vez que comprei, na safra de chuva, veio num balaio de palha trançado pelas mãos do Neco, o que mudou meu dia. Mirradinho e quase doce, dá um caldo arroxeado lindo e uma salada diferentona com canela, abóbora, semente de abóbora e o que mais vier. Feijão faz feijoada, um prato alegórico, bolinho de feijoada, feijão-tropeiro, acarajé, abará. Faz tutu, palavra mimosa que pode falar de balé, num giro leve, e de feijão com farinha, um pouso pesado.
É símbolo de coletividade com seu bota água no feijão, nas casas e corações em que sempre se pode receber mais alguém para comer. E também de resistência, já que em cultivos orgânicos e agroecológicos, é um dos modos mais eficazes para descompactar solos que antes foram pastagem de gado. Num pulo, um feijão simples pode evoluir para feijoadas completas e bem adubadas, abundantes em carnes e vegetais, como faz minha avó Nilzete, que adora dizer que “recheia” bem seu feijão cor de ferrugem. Outro dia, num botequim, ouvi perguntarem na mesa vizinha a marca do feijão servido ali. Queriam comprar igual e fazer em casa. Feijão é isso: fidelidade. Também é fertilidade, continuidade e comunhão no sagrado. É comida de santo.
Minha cabeça justapõe várias cenas isoladas que juntas, com a cola do texto, passam a fazer sentido: ver que o arroz e feijão, que já são tão importantes separados, ainda conseguem se juntar no baião, um prato sertanejo substancioso, criado a partir da escassez. Que andam juntos não só pelo baião, o arroz e o feijão, mas porque se bastam e se completam, culturalmente e nutricionalmente, prescindindo, inclusive, que se some qualquer carne a eles, já que as proteínas abundam completas nessa dupla.
Lembro do baião do Cláudio de Freitas, uma das pessoas mais sensíveis e generosas que já conheci, um baita chefe de cozinha. Em 2017, teve a luz de criar o baião de muitos, um baião de cabrito com feijões garimpados na Feira de São Cristóvão*, quatro tipos deles — verde, manteiga, guandu e corda-sempre-verde —, pasta de coentro e queijo de coalho no Bazzar de Ipanema, hoje fechado, para celebrar a raiz nordestina da maioria da brigada de cozinha e salão do restaurante. Penso no Kalango, em Botafogo, onde o feijão verde vira rubacão, um baião cremoso, feito com nata, um prato marcante que leva minha lembrança direto pro Ceará, terra de ventos sem fim onde provei essa façanha pela primeira vez. Também têm baião de dois, arroz de rabada, camarão, porco e galinhada, num resumo das paixões que derramei alguns parágrafos acima, e tinha mesmo que ser nesse lugar pulsante, de mulheres que tanto adoro, Bianca e Kátia Barbosa, mestras da cozinha de verdade do Brasil, a cozinha em que acredito.

Enquanto fechava o texto, no terceiro copinho americano de café, o laço de fita foi esbarrar com a obra “Monumento à Fome”, de Anna Maria Maiolino, que conseguiu resumir o Brasil famélico a quinze quilos de arroz e de feijão, fechados cada um num saco, lado a lado, num pedestal obscuro. Laço de fita de luto. Nos resta falar de baião, de políticas públicas para a alimentação, da erradicação da fome, e continuar dando nome aos guardiões das tradições que ainda permanecem nossas, profundando ainda mais nossas raízes. Gente que planta, cuida, colhe e prepara comida de verdade. Gente como Ribamar, que conheci no pé do morro Dona Marta, em Botafogo, onde faz baião de dois com churrasco misto há quase uma década. A clientela afoita e um caderno cheio de encomendas, marcado pela letra forte em caneta azul que deixa relevo na página de trás. Um baião farto e honesto, barato e muito caprichado, salpicado de cubinhos queijo de coalho. Sua história conto aqui, nesse texto enviado apenas aos assinantes pagos da newsletter. Ainda não é um?
*Outro lugar certeiro para comer e dançar baião