Céu de Célia, salpicado de estrelas
Trechos da vida de uma mulher para quem desanimar não era uma opção
Levantava cedíssimo, o céu ainda escuro. Precisava deixar a comida pronta para os filhos antes de ir trabalhar. Fazia o arroz, embrulhava a panela no jornal e depois no pano de prato, para que a quentura aguentasse até a hora do almoço. Dava aula de ciências e matemática das sete da manhã às dez e meia da noite, motivo das pernas cansadas, bordadas pelas varizes que nunca a fizeram reclamar. Dizia que tinha jornada dupla, tripla, trabalhando na rua e em casa, mas que apesar da canseira, gostava de ser mãe. E tinha lutado muito para ser professora. A mesa era sempre farta porque ganhavam comida como presente ou pagamento, ela e meu avô. Dinheiro, mesmo, era pouco. Ir ao cinema, ao circo ou tomar tacacá na rua, no quintal da Nair, só em ocasiões especialíssimas.
Do açougueiro [minha avó] recebia galinhas inteiras, ovos frescos, pernil e o que mais quisesse de porco. Frutas vistosas dos feirantes ou de quem tivesse quintal rendiam lindos arranjos de bacuris pequenos e bacuriparis, mais laranjinhas, maçãs e cachos de bananas em paneiros de palha trançada ou pratos de louça. Eletricista faz-tudo, meu avô reparava as emergências na padaria do Leonel, vizinho de quem virou amigo. Bastava para que rabanadas, roscas de natal e guaranás Garoto de litro, em garrafas âmbar de vidro, se materializassem na mesa dos dias festivos, luxo que famílias modestas e numerosas como a nossa nem sempre podiam se dar.
Trecho dessa edição de dezembro, Por uma ceia brasileira
Fazia dos limões mais azedos doces limonadas. Nos aniversários de todos os filhos, minha avó Célia começava a fazer bandejas de docinhos enrolados na mão três dias antes, nas brechas de tempo que lhe sobravam. Quando a pegavam chorando por qualquer rasteira da vida, disfarçava e dizia que as lágrimas faziam bem para a pele, e que por isso não tinha rugas. Contornava qualquer revés plantando uma alegria bem no meio dele, traçando estratégias silenciosas. Nos períodos mais difíceis, deixava os filhos tomarem banho de chuva para que apanhassem mangas e comessem com farinha. Os mais espertos sabiam o real motivo — naquele dia não haveria o que jantar.
Vaidosa, tirava a sobrancelha fininha com a pinça e ajeitava com gilete. Pintava as unhas da mão e não saía de casa sem um saltinho nos pés. Sou que nem onça, podem me virar de cabeça para baixo e não cair uma moeda, mas pinta não falta, ela dizia, pronta para bater perna por aí. Gostava de se arrumar com batom carmim nos lábios estreitos, vestidos de cintura marcada e um véu invisível de otimismo e fé na vida que a cobria a cabeça. No fim dos sábados em que passava faxinando a casa e cozinhando com os filhos, tomava um banho, se perfumava de Madressilva, colônia de jasmim da Avon, sentava no sofá e acendia um Continental, tragando fundo.
Nas vezes em que foi ao Rio, nos anos 1980, aclimatou-se logo na orla de Copacabana, aquele mar de todo mundo. Preconceito zero, gostava de estar, sobretudo, na altura da Prado Júnior, onde jogava conversa fora com gays, prostitutas e travestis que frequentavam o trecho. Com eles sentia-se livre. Livre demais para a mentalidade provinciana de Belém: Gosto de vir pro Rio porque aqui eu sento sozinha, tomo uma cerveja e ninguém me olha. Uma vez enfrentou a sogra que achava que seu comportamento não era digno de uma mulher casada. Bateu de frente, dizendo que usava batom vermelho, fumava, trabalhava fora e mesmo assim dava conta dos filhos sem a ajuda do marido. A relação entre as duas se converteu num imenso respeito. Acho que foi feliz, apesar de tudo.
Mas é assim mesmo, tenha calma que tudo se resolverá, veja bem que já enfrentamos situações bem difíceis e todas foram superadas, por que não mais essa? Não demora muito estarei aí pra te ver de novo, todo dia beijo o vestido que usaste no sábado antes de viajar, aquele branquinho, e rezo pelo teu anjo da guarda para te livrar de todos os perigos, pois tu tens o direito e mereces ser feliz. E vai ser.
— Trecho de uma carta da minha avó Célia para minha mãe, que tinha acabado de se mudar de Belém para o Rio, nos anos 1980
Domingo comiam frango, um único frango guisado com batatas, ervilhas enlatadas e bastante repolho, para que rendesse. Um peito e duas coxas, sobrecoxas e asas, a conta não fechava numa mesa de quase dez. Ela deixava que todo mundo se servisse, e, inventando afazeres, era a última a sentar na mesa, do jeitinho que minha mãe faz ainda hoje. Dizia que sua parte preferida do frango era a sambiquira, mas chamava como é popularmente conhecida: o sobrecu. Quando minha mãe percebeu e questionou, não é possível alguém preferir o sobrecu da galinha!, ela desconversou, rindo e dizendo: Depois que filhos tive, nunca mais a barriga enchi.
Vó, candidatei-me para apresentar um trabalho na universidade, num fórum de estudantes, no tablado de um anfiteatro para não sei quantas pessoas. Ainda fico nervoso falando em público, mas conversei com nossos guias que me disseram para ir assim mesmo. A preta-velha disse que eu acendesse a vela de Ogum, branca e vermelha, pois era o fogo dele que me faltava. A amarela, de Iansã, levaria o medo com a força de sua ventania. Acho que funcionou. Fui selecionado. É amanhã. E sabe que tô tranquilo?
Levarei comigo tua receita do bolo rubro para dizer que cadernos e receitas de família são coisa linda de se ver, mas até a página dois. Se olharmos bem de perto, também vemos o machismo, o racismo, o patriarcado nas entrelinhas daquele tempo desbotado, escondido atrás de um ideal de cozinha afetiva. Nunca saberemos ao certo, mas desconfiamos que não era preciso peneirar sete vezes os ingredientes secos daquele bolo escuro. Mas a senhora tinha seis filhos e era preciso entretê-los em casa, até porque meu avô só entrava na cozinha para perguntar se a comida já estava pronta. Quando sentava-se na cabeceira da mesa, pedia até que as filhas mulheres o tirassem as meias dos pés. Viravas bicho, porém, se ele ousasse levantar a voz com qualquer uma de vocês.
Queria ver tua carinha quando aparecesse o slide que tem a tua foto, aquela de formatura na Escola Normal que te consagrou professora. Vendo eu questionar o nome de Dona Benta no livro das receitas que eram da Tia Nastácia, livro o qual nunca tivestes porque nunca precisastes de um. Porque tinhas tuas próprias receitas espalhadas, escritas de próprio punho, e porque por mais antiga que tivesse sido a tua época, sempre estivestes à frente dela. Se Monteiro Lobato era um produto de seu tempo, Luiza Mahin, Luiz Gama e Maria Felipa Oliveira também eram. As transgressoras Maysa e Leila Diniz, mulheres que tanto admiravas, também foram. Assim como tu mesmo fostes, quebrando padrões com a naturalidade com que quebrava um ovo, emprestando teu corpo para o primeiro grupo de estudos da pílula anticoncepcional que chegou a Belém, a holandesa Lindiol, nos anos 1960, em plena ditadura militar.

Vou falar de uma viagem recente que fiz aqui pela Bairrada, região onde estamos, famosa por seus leitões. Questionar o porquê de só existirem Pedros, Virgílios, Avelinos e Joões dos Leitões, nunca Matildes, Ritas ou Beneditas nos nomes dos restaurantes. Meus amigos portugueses disseram que era assim mesmo: a tradição era masculina pelo trabalho arriscado e estafante de erguer leitões inteiros, tirá-los e pô-los nas fornalhas ardendo em brasa. Parece que a tradição justifica tudo. Mas o que explica a tradição?
Queria ver teu sorriso ouvindo essa, vó. Na nossa História as réguas foram outras. Ninguém poupou as mulheres, sobretudo no período da escravização. O trabalho na cozinha sempre foi precário, arriscado, insalubre. Romantizado e diminuído. Feminino e negro. Foram mulheres que sempre pilotaram perigosos fornos e fogões a lenha, mexeram enormes tachos de doce, rasparam mandioca com facões maiores que leitões. No muque, seguiram incorporando com força e fé o ar na massa do acarajé antes de atirá-los com destreza no dendê fervilhante. Pensar nisso hoje, 14 de maio, o dia seguinte da abolição que a ninguém libertou, tem um gosto ainda mais amargo.
(…) Mulheres negras foram continuamente restritas ao trabalho doméstico em razão não apenas de uma exclusão econômica e educacional, mas especialmente pela existência de uma política racializada e de gênero no mercado de trabalho que torna a feminilidade e a negritude “inaptas” para o exercício de outras funções. O trabalho na cozinha é uma das formas mais ilustrativas de enxergar como a manutenção do funcionamento da sociedade brasileira e de sua economia depende (e sempre dependeu) de mulheres negras em condições primeiramente escravizadas e, mais tarde, precárias e miseráveis, e do não reconhecimento dessa dependência.
— Trecho de “Um Pé na Cozinha: um olhar sócio-histórico para o trabalho de cozinheiras negras no Brasil”, de Taís de Sant’Anna Machado
Dirias como sempre dissestes à minha mãe para justificar como conseguias trabalhar tanto: nós somos descendentes dos mouros, minha filha. Queria te perguntar o que está por trás dessa fala, uma expressão comum para dizer que se trabalha duro no Brasil. Desconfio que não tinhas a intenção de dizer que no DNA norte-africano havia a propensão inata ao trabalho incessante porque sabias que ninguém tinha nascido para morrer de trabalhar. No fundo, devia saber que foi no norte da África que foram criadas e aprimoradas todas as ciências, tecnologias e inteligências que põem o mundo a girar. Porque sabias que para cada sistema de opressão articulava-se outro, de luta e resistência, como resposta. Puramente porque tinha orgulho na tua fala, não desprezo ou resignação.
Por causa da minha avó e de todo o poderoso matriarcado que ela fez questão de estruturar em vida e mesmo depois de morrer, enfim, sei que mulheres são sempre muito mais fortes, corajosas e arrojadas que a maioria dos homens. Por isso estou sempre rodeado delas, menos para casar, vai entender. Sei que se aqui estivesses, sorririas orgulhosa da primeira fila ao ver a tua história ser levada adiante, impulsionada por uma vontade genuína de mudar as coisas como elas são. Por meio da educação, a grande missão da tua curta, estrelada vida. Bom domingo onde quer que estejas, vó. Hoje é seu neto quem vai cozinhar.
Que lindo texto!!!! Grande Célia (aliás, nome da minha irmã).
Relendo esta beleza de texto, que iluminou meu domingo, entre lágrimas que molham a saudade e o orgulho de ter nascido dela, uma grande matriarca, amorosa e à frente de seu tempo. De tudo, ficou um pouco em nós. Bjos!