Podia esmiuçar as origens de um prato bem natalino, falar do espírito fraterno de fim de ano, tentar tocá-lo, agarrá-lo com as mãos para ver que cara tem. Dar uma receita de avó, fazer um balanço geral dos textos e marcos deste ano que passou caudaloso que nem rio. Podia, e talvez até devesse, mas datas simbólicas assim já têm tanto esse tipo de atenção que engrossar esse coro seria fugir de mim. Em vez disso, de me colocar de molho em uvas-passas e outros clichês, preferi tentar radiografar a noção de mesa ideal que nós, brasileiros, cozinhamos nessa época do ano. Aconteceu quando caí num especial de Natal do Jamie Oliver, zapeando sem rumo no controle remoto da tevê. O chefe de cozinha britânico, louro com seus filhos louros, preparava um cardápio natalino que, no fundo, podia muito bem ser o mesmo de uma ceia burguesa brasileira. Tinha peru, panetone, frutos secos e rabanadas.
No Brasil, a tradição moldada pelo mercado diz que deve-se assar um peru inteiro, ave que só comemos no Natal (ao contrário da Europa e dos EUA, que comem peru o ano todo em bifes, coxas, sobrecoxas e carne moída), e que a maioria não pode comprar. Rodeamos tudo de frutas secas, mediterrânicas até a última ruga, e terminamos a noite com rabanadas, fatias douradas ou “de parida”, esse último nome bem português, de onde provavelmente vieram. Panetones nasceram séculos atrás na Itália, um pão nobre, de fermentação longa, com casca de laranja, mel e vinho doce na receita, e já viraram coisa brasileira de tão industrializados que foram, a maioria aromatizada artificialmente com essência de panetone, responsável por imitar os atributos caros da versão original. Tá. Dá para entender. Somos muitos. Por cima dessa terra gigante, ainda fomos cruelmente catequizados para obedecer o calendário cristão.
Se você celebra o Natal, mesmo que pela reunião de gente que se ama, se teve o privilégio de poder estar em casa ao redor de uma mesa farta, pensemos juntos:
Não sobrou nenhum lugar importante dessa mesa tão pasteurizada para uma receita que fosse realmente nossa? Quedê nossa personalidade nessa hora do ano? Nosso receituário tradicional tão vasto? Não há certo ou errado; é mesmo duro competir com a força dessa hegemonia capitalista-colonialista. Proponho esse mergulho, então, como um exercício emancipatório pela busca do que seja genuinamente brasileiro em momentos sociais tão valiosos como as festas de fim de ano. E é quando olho para os focos de resistência infiltrados nessas frestas, entre tantas receitas importadas, que me acho. Relaxo. Clássicos completamente nossos, e tão potencialmente ricos que falam sozinhos sobre quem somos. Falam da nossa malha potente de identidades capazes de ocupar, com destaque, o centro da mesa.
Um salpicão bem caprichado ou um belo cuscuz paulista, por exemplo. Assados como o pernil da minha prima Drica, servido em qualquer domingo de festa na minha família, inclusive na noite de Natal, acompanhado de maionese de batatas e cenouras, arroz branco e feijão vermelho, tudo em quantidades homéricas. Torta fria feita com pão de forma, pasta de atum, geleia e maionese, milho e ervilha, decorada com flor de tomate e ramos de salsinha. No Pará, arroz de galinha e camusquim, típicas comidas de festa. Bombom de uva verde na travessa, delícia de abacaxi, musse de maracujá, sagu de uva. Antes disso farofas (sempre elas!), mesmo que enturmadas com passas, castanhas, nozes e outros pares afins. Não importa se nas guarnições, nas sobremesas, nos jeitos de chamar e fazer, importa é que resistimos. Somos especialistas na arte da resistência.
(Quem lembra mais? O que de brasileiro, regional tem na sua mesa de natal? Deixa nos comentários!)
No Pará, aliás, de onde parte o ramo materno da minha família, a fixação da cultura portuguesa foi ainda mais intensa que em muitos outros lugares do país, e nas ceias de Natal, famílias um pouco mais endinheiradas comem bacalhau entre suas tradições locais. Nossa família não tinha dinheiro, mas atributos bem mais interessantes: minha avó Célia era uma professora muito querida, e mesmo antes de virar diretora do grupo escolar Coronel Sarmento, escola estadual fundada em 1901 e de pé até hoje na pequena cidade de Icoaraci, nos arredores de Belém, ganhava comida de presente a cada fim de ano letivo, já que todas crianças na cidade eram ou tinham sido seus alunos. Ganhar comida não era vergonhoso. Pelo contrário: era sinônimo de respeito, reconhecimento e consideração.
Do açougueiro recebia galinhas inteiras, ovos frescos, pernil e o que mais quisesse de porco. Frutas vistosas dos feirantes ou de quem tivesse quintal rendiam lindos arranjos de bacuris pequenos e bacuriparis, mais laranjinhas, maçãs e cachos de bananas em paneiros de palha trançada ou pratos de louça. Eletricista faz-tudo, meu avô reparava as emergências na padaria do Leonel, vizinho de quem virou amigo. Bastava para que rabanadas, roscas de natal e guaranás Garoto de litro, em garrafas âmbar de vidro, se materializassem na mesa dos dias festivos, luxo que famílias modestas e numerosas como a nossa nem sempre podiam se dar.
Não ganhavam bacalhau pois o português da mercearia de secos & molhados não dava nada a ninguém. Minha avó não ligava porque já tinha a mesa cheia, além de bem brasileira. Concentrava-se nas sobremesas: fazia sorvete de abacates maduros, creme de bacuri espetado com biscoito champanhe, gelatina de coco com leite caseiro do coco, aberto e batido em casa. Miscelânea, uma base de ovos com creme de leite gelado de lata, sem soro, misturada com salada de frutas em calda, sobremesa precursora da famigerada, ultraprocessada gelatina mosaico. Para que tudo isso aparecesse magicamente na mesa, elas — mulheres sempre sobrecarregadas.
Sou a segunda geração da minha família que teve diploma universitário. Todos puderam melhorar de vida graças à educação pública, o que em termos alimentares significava, enfim, pelo menos para os paraenses, poder comer bacalhau no Natal (prosperar, em alguma medida, é também europeizar-se). Aqui em Portugal todos comem bacalhau, sobretudo no fim do ano, e nem que seja paloco, espécie do Pacífico mais barata que o gadus morhua, do Atlântico, já que o bacalhau não é um peixe único, mas um processo de salga. Passei alguns dias de dezembro em uma casa de campo em Amarante, daquelas cidades com uma ponte e uma igreja lindas. Nos refugiamos num lugar com cara de serra (e nem era), onde a noite “descia a sua renda” enquanto o cheiro da lenha das lareiras e fornos de barro subia, tomando conta de tudo. Tinha aquela sensação de Minas Gerais, mas com marmeleiros, figueiras e arbustos de physalis em vez de goiabeiras, mamoeiros e jaboticabais* nos quintais.

Conhecemos a Lola, funcionária para quem devíamos ligar em caso de qualquer problema, pedindo ajuda para trocar o botijão de gás que aquecia a água e a casa. Preferiu vir pessoalmente, chegou de carro, morava no fim da rua. Era uma portuguesa típica, altiva e bem disposta, de olhos grandes e expressivos, pele clara e sobrancelhas muito fartas. Cozinhamos todos os dias, e no último deles, lombos altos de bacalhau dessalgados em muitas águas e arrumados numa travessa funda com batatas ao murro, cebolas pela metade, pimentões doces, um traço de natas, azeitonas, ovos cozidos e um punhado de salsinha. Quando metade do pirex sobrou (e já era a véspera da nossa partida), problematizamos: seria estranho deixar para a Lola? Entre Portugal e o Brasil existe uma diferença profunda no recorte social e racial das mulheres que trabalham com serviços domésticos, atravessado por um processo violento de escravização de pessoas. Já tínhamos ouvido de amigos portugueses que, aqui, deixar um pote de boa comida para trás com um bilhete nem sempre seria recebido com naturalidade. Poderiam achar uma ofensa, já que a fome, a assistência social, o aparato público e o próprio curso da História têm outras proporções nesse lugar.
Não tínhamos pote para levar, estava maravilhoso e não jogaríamos fora nem por decreto. Podíamos constrangê-la com o que, para nós, era valioso. Mas e se Lola fosse negra, afro-portuguesa ou africana, teríamos tido o mesmo constrangimento? Se não chegasse de carro ou se tivesse aparência frágil? Se queríamos ser delicados, por que razão não fizemos um pirex de bacalhau só para Lola, por pura gentileza, já que imaginávamos que poderia sobrar? O que outra família menos inteirada nesses debates teria feito? Questionariam tão a fundo o biombo que divide nossa boa intenção de uma ideia de hierarquia? Talvez tivessem deixado para Lola sem culpa. Talvez tivessem jogado a comida fora. Nos constrangemos em pensar em tudo isso. No fim das contas, improvisamos um pote e trouxemos o bacalhau de volta até Coimbra. Lasqueamos com as mãos, cobrimos com purê de batatas e gratinamos para o jantar, cansados da estrada chuvosa. De novo pôs-se diante de mim “Maria”, conto do livro Olhos D’Água, de Conceição Evaristo, que quando li me tomou de súbito, como um vômito incontrolável, me levando a escrever o conto “Comida de festa", publicado domingo passado.
O colonialismo está entranhado em nós, colonizados, e só sai com trabalho braçal-mental depois de muita esfregação no tanque das ideias, na bacia das ações concretas, no varal das palavras ditas. Remando contra tudo que tente apagar nossa história e o que é nosso no jeito de ser e pensar, mas também no jeito de cozinhar e comer. Digo isso no fim do ano porque é justo quando nos rendemos, sem questionar, ao que não faz tanto sentido com o que somos em essência, e porque escolhas alimentares têm muito peso nessa linguagem simbólica. Tornamos a escolher peru, panetone, frutos secos e rabanadas para a ceia, mesmo nas mesas não-cristãs, às vezes mesmo sem gostar muito de comer tudo isso. Não escrevo para maldizer o que comemos ontem, negando a mistura que nos constitui, ou propor uma revolução total. Escrevo para encorajar o rascunho de um olhar diferente, crítico e perguntador, que busca sempre o que é nosso e não admite nada sem farofa. Escrevo para celebrar todas as vezes em que formos, orgulhosos, nossa própria referência. Desvio do que se diz ideal porque não penso em linha reta. Sigo escrevendo. Vejo as coisas mudando. Mais que em Deus ou em milagres de Natal, tenho fé no futuro.
*Gosto de escrever jaboticabas com “o” porque, assim, parece que estouram mais na boca, desabando a polpa branca sobre a língua solta
“O colonialismo está entranhado em nós, colonizados, e só sai com trabalho braçal-mental depois de muita esfregação no tanque das ideias, na bacia das ações concretas, no varal das palavras ditas.” - isso aqui é certeiro de um tanto!
Faz anos que sinto um pequeno movimento de resistência nas mesas para,ao menos, tropicalizar o Natal. Seja com receitas mais leves, mais manga que está na estação e menos frutas importadas, seja no clarear dos vinhos - nenhum sentindo beber rótulos tintos barricados com as temperaturas de verão. Mas sim, é tudo muito entranhado em nós brasileiros, inclusive o catolicismo da data. Gostei muito dessa edição :)