
Defendi, na última sexta-feira, minha dissertação de mestrado. Não gosto desse termo, defender. Acho belicoso, tenso, como muitas vezes pode se mostrar o ambiente acadêmico. Felizmente, não me defendi de nada. Apresentei. Dividi. Aprendi. E acho que posso dizer que ensinei um pouco, também. Uma das minhas mestras desta universidade me disse uma frase que deu conta de me blindar contra qualquer sombra de insegurança: Ninguém sabe mais das nossas pesquisas do que nós mesmos.
É verdade. Escolhi um, dois, três temas que achava que eram os certos até chegar a este. Quando batemos o martelo, eu e minhas orientadoras, percebi que, na verdade, essa escolha era quase óbvia. Foi minha avó Nilzete uma das tantas mulheres que me trouxe até aqui, a querer pensar sobre comida. Foi ela que inaugurou a primeira lembrança alimentar que tenho, talvez a mais próxima daquela que não tenho, do peito quente de minha mãe. Tinha só uma letrinha de diferença: mão. Comer com as mãos.
Comer “de mão”, como se diz em alguns lugares do Nordeste, e como sempre ouvi se falar na Bahia, foi a coisa mais natural do mundo para uma criança que cresceu entre Salvador e o Rio de Janeiro. Se perguntam da minha infância, não arredo um milímetro da memória e projeto aquele quintal de piso de cerâmica vermelha. A fachada da casa coberta de jasmins e a piscina de plástico enchida com mangueira tão presente que posso sentir o cheiro da água.
Vigiando tudo, ela: matrona, mandona, cadeiruda, líder. Autêntica, como ela mesma dizia. Minha avó Nilzete. Minha avó de Belmonte, que fez a vida e a família em Salvador. Minha avó nunca passiva às rasteiras da vida. Minha vó com cheiro de vó. E que me dava na boca bolos de capitão — feijão, arroz e farinha fina do Mercado das Sete Portas — com todos os dedos da mão. Mal sabia ela, e muito menos eu, que todos os dias de feijoada naquela casa do Barbalho se encontrariam nessa sexta, naquela sala Gama Barros.
Meu trabalho parte disso, de um registro completamente meu, mas, sei, e hoje muito mais que antes, que de muito mais gente brasileira. Tinha certo receio, confesso, de questionarem o fato de um trabalho científico partir de um caso assim, tão pessoal, e que conto nas primeiras linhas da introdução. Mas tudo não parte? Nossa própria existência no mundo? A escolha de um curso, a própria escolha de um tema, as fontes escolhidas à pinça. Tudo nessa vida tem uma pegada de nós, ainda mais para nós, de humanas e das ciências sociais, para quem o humano é protagônico e não há como fugir, por mais que se tente, de perspectivas subjetivas que são a terra fofa e segura de tudo mais que de nós vier. Outra mestra me disse: antes de investigadores, somos pessoas.
Isso não significa, entretanto, que abri mão de nada. Pelo contrário: a sensação de entregar este estudo que fiz com tanto amor e rigor e energia foi a de terminar a maior e mais difícil reportagem da minha vida. Cento e tantas páginas da investigação mais cuidadosa que já fiz, e no sentido mais fundo da palavra: inquirir, buscar, questionar, entender. Fuçar como um cachorro desesperado cada gota do alheio para respirar e poder dizer por mim. A curiosidade que me trouxe ao mundo e me levou a sair jornalista daquele prédio da Urca, a Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2016, foi exatamente a mesma que me trouxe até esse dia, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. O interesse que jorra por qualquer coisa que seja do outro e o exercício mais louco de tentar entender o que é estar naquele lugar, ainda que de fora.
Comer “de mão” tem a ver com isso porque quem come “de mão” é visto, imaginava, e agora tenho certeza, como um dos Outros do mundo. Um mundo que ainda ecoa uma verdade muita antiga gritada ao vento, e pelos motivos que escrevo neste trabalho e que são tantos, penetrou nos poros das pessoas identificadas com um paradigma ocidental, “desenvolvido”, “evoluído”, “civilizado” de sociedade, como muitos de nós. Mundo de um homem tomado por todos os seres do mundo, de um homem que se separou da natureza e, com anuência divina, olhou para ela e decidiu: eu vou lhe usar.
Comer “de mão”, no Brasil, é prática de gente que se identifica com outros modos de vida. De gente que, como esta pesquisa concluiu, é de maioria negra, já que a história permanece e é inarredável, mas também branca, já que a mestiçagem quase conseguiu o que queria em matéria de aniquilação. Nordestina, mas também mineira, e mais próxima da ruralidade que da urbanidade. Quem come com as mãos não se separou completamente da natureza, ao menos não desse jeito radical, moderno-ocidental. E gosta disso, sabe sua importância, mesmo que não precise elaborar nada.
Gente que não separa corpo e mente, natureza e cultura; que dá importância a quem veio antes e a quem virá depois. Mulheres donas de uma sabedoria maior que qualquer diploma, que sustentam o país e sempre o fizeram. Que simplesmente não se conformaram com os códigos arvorados em mexer em uma gaveta preciosa de suas próprias subjetividades: o modo como se come, esse ritual corporal, matricial, sagrado. Mulheres que firmam seus corpos no mundo e resistem em ser o que são, a despeito do que digam, que pensem, que falem. Lembro dela. Minha avó Nilzete. Orquestrando uma família inteira com autoridade, como uma pastora com seu cajado. Alimentando sua família com o corpo e o espírito inteiros, mas, sobretudo, com as mãos. Obrigado, vó. Esse estudo é para você.
*Dissertação de Mestrado em Alimentação: Fontes, Cultura e Sociedade, orientada pelas Professoras Doutoras Carmen Isabel Leal Soares (CECH-UC)e Ligia Amparo da Silva Santos (ENUFBA), apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em 19 de julho de 2024
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Que delícia! Saudades da minha avó que deu tanto de comer para mim de capitão.
Que bolão delicioso de arroz, feijão, farinha e carne cuidadosamente desfiada recheando o bolão….
Você sempre inspirador!
Nossa, Mateus. Que potente! Seu texto, sua história, e o pouquinho que podemos sentir da sua pesquisa ressoaram profundamente por aqui. Também sou uma brasileira no além-mar. Morei e estudei em Portugal, e entreguei minha tese no meio do ano passado. Tanta coisa que me identifico. Me emocionou sobretudo a motivação da sua pesquisa, e entendo que por algum momento pode ter questionado se não era "acadêmico o bastante". A gente tenta caber num espaço tão limitante, né? Mas é justamente nesse ponto tão intrínseco a você, a sua história, que mora maior a potência e força criativa de todas, ao meu ver. Nesse estado de semente.
E que maravilhoso ver que você caminhou ao lado de pessoas que reconhecem essa humanidade. Elas enchem e protegem nossas experiências.
É um prazer te acompanhar por aqui. Obrigada.