A última vez que estivemos juntos tinha, mesmo, cara de última. Disse que se estivesse viva faria um almoço nos seus 90 anos, no fim de junho, iria à igreja do seu Senhor do Bomfim agradecer, e assim fizemos. Fui a Salvador engrossar o coro do que seria um almocinho para os chegados, mas de surpresa, virou um almoço à altura de sua vida tão longa: com muito mais gente ao redor, camarõezinhos empanados, pão delícia, empadas de uma mordida só, docinhos que a Michelli trouxe de São Paulo, feitos por ela, tudo posto e reposto em travessas, para dividir entre quem fosse chegando. Curvou os punhos e encaixou nas ancas quando descobriu a mesa farta, admirada feito criança, e foi uma tarde barulhenta e feliz. Dias depois, o corpo cedeu ao peso do tempo, o ar começou a ficar rarefeito e precisou passar algumas semanas plugada no hospital, até que pôde ir para casa. Partiu quatro meses depois, na última quinta-feira, e do jeito mais sereno possível. Foi como desejava: em sua casa, em sua cama, fechando os olhos lentamente até que seu coração descarado deixasse de bater.
Era assim que falava de sua saúde cambaleante nos últimos anos, exclamando do jeito mais baiano possível, e na terceira pessoa: “Esse coração de sua avó é descarado, meu filho!”, e rindo depois, porque nunca deixou de rir. Zete, Ziza, Elvirinha, Heleninha, Margarida, Angélica, Guiomar (Gueguê) e Belzinha, todas suas amigas mais imediatas, já tinham subido a escada de nuvem pro céu. Ainda aguentou firme a perda do marido, há 23 anos, e até a mais brusca, a de um filho, há seis. Foi uma dessas mulheres fortes e brasileiras que perderam um filho para a violência armada e, mesmo assim, seguiu em frente, de cabeça erguida, tocando a vida. Já tinha vivido até mais do que podia, ela mesmo dizia.
Não tínhamos tanta intimidade, mas éramos neto e vó o suficiente, dentro do que podíamos ser. Enquanto ela perguntava como andavam as namoradas, eu só pensava em lixar e esmaltar suas unhas longas de rosa antigo, a cor que ela gostava. Não me ofendia seu preconceito. Entendia que era quadrada, produto de um tempo distante, vítima de um sistema que a oprimiu desde cedo, fazendo com que largasse o balcão de uma farmácia para vestir a carreira de mãe, mesmo sem romantizar nada. Não era uma pessoa fácil; tinha o gênio forte, e que só ficou mais afiado com a idade, mas era uma excelente amiga, uma mãe parceira, além de uma excelente vizinha. Foi uma boa avó, e por muitos anos me dava uma nota de cinquenta reais dobradinha, na surdina, de presente. Preocupava-se comigo, querendo que eu arranjasse um emprego fixo, elogiava quando eu aparecia de cabelos curtos e barba feita, vivia pedindo que eu engordasse (um dia, conseguiu). Uma das minhas mais pujantes memórias alimentares vieram da minha vó Nilzete: o capitão que ela moldava com os dedos e levava à minha boca, com sua feijoada cimentada de farinha, ritual que já contei nesse texto.
Detestava viajar, por isso nem tinha esperança que viria a Portugal me visitar, mesmo que a saúde deixasse. Só saía de Salvador para ir ao Rio e nunca tinha pisado fora do Brasil, nunca quis. Sempre gostou de estar em casa, entre seus bibelôs e fotografias de todos os numerosos netos e bisnetos que vieram pelo caminho. Como andava indisposta para bater perna ultimamente, vivia maratonando filmes e séries na tevê que a ensinaram a mexer, assistindo sem compromisso, cochilando aqui e ali, a um número impressionante de temporadas de várias séries policiais, espanholas, adolescentes, coreanas. Já se dizia desanimada para tudo, mas não deixava de fazer planos: queria comprar um vaso novo para as flores falsas da sala de estar, uma poltrona que virasse cama, fazer uma porta de correr para a cozinha com seu marceneiro fiel. Continuava pintando os cabelos sem deixar que os brancos aparecessem muito, e cortando-os curtos, porque tinha horror à gente velha de cabelo comprido. Não saía de casa sem seu batom rosa escuro, sua bolsinha de couro com carteira de identidade e dinheiro-vivo, para que não precisasse depender de ninguém para nada.
No dia do seu aniversário ela me abraçou forte de lado, envolveu minha cintura com seus braços moles, recostou a cabeça no meu peito, me olhou e sorriu como quem se despede. Muito apegada com suas coisas, dessa vez, danou a desapegar. Elogiei sua toalha de mesa de bolotas coloridas, ela tirou, dobrou e me deu. Leva, meu filho. Guardando a louça, enquanto contava que o tio Lourinho, irmão do meu avô, só tomava café na xícara grande e comia no prato fundo, e que ela tinha se acostumado a fazer o mesmo por causa dele, contei que me lembrava daquele mesmo jogo colorex leitoso da sua casa do Barbalho, que tomava Tylenol na xicrinha, e o gosto da lembrança me veio à boca imediatamente. Tivemos um momento só nosso e ganhei os remanescentes desse jogo, que embalei com esmero em papel rosa, trouxe na mala e tomo agora um cafezinho emocionado nessa mesma xicrinha, a única que resistiu aos anos, e com a asinha remendada, ainda por cima.
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