Os pratos de pimentas e de cabeças de alho tão bem equilibradas. Cominho moído na hora, no moedor de ferro. Sentir de longe o cheiro dos abacaxis, o calor dos cajus, a beleza tão plástica dos maxixes, dos jilós e dos quiabos. Ir à feira no Rio era uma tarefa vital para mim, e mesmo antes de virar adulto e fazer minha própria feira, já andava escolado nas barracas listradas da praça Serzedelo Correia, em Copacabana, paisagem que sempre cortava os nossos domingos. Minha principal lembrança delas, ainda muito infantil, era a barraca de goiabas onde havia sempre um exemplar rosa-obsceno, entrecortado e aberto, sobre o qual se equilibrava um passarinho de plástico, sustentado pelo bico.
Quando trabalhei em Ipanema, surgir do metrô na Nossa Senhora da Paz, às sextas, era sair do escuro e mergulhar de cabeça em todas as cores do mundo. Bastava uma volta e a vida aliviava: a época dos caquis, as pilhas de peras, os pregões, as velhinhas, os garis, a falação. A cidade em flor. Linguiças frescas penduradas e o cheiro pungente da carne crua de frango arrumada sobre folhas de alface, num esforço de deixar aquela cena bonita. A sujeira do meio da feira e a limpeza impecável que tudo ganha quando a rua volta às suas funções normais de poeira. Normal, tenho pra mim, deveria ser sua vocação de feira.
Arranjar o que se coma, porque é vital, é terrível, acaba virando automático. E no ritmo frenético em que a maioria vive, em que se trabalha para viver, prevalece o que é mais conveniente. Recorremos, então, com o que se parece o mais natural a ser feito: o supermercado mais próximo. Em Coimbra, tenho um Pingo Doce (uma das maiores redes do país) virando a esquina. Quando quero fazer uma graça, vou às mercearias do bairro que ainda guardam coisas mais especiais como figuinhos da época e couves cortadas à faca para caldo verde. Mas junto das tantas faltas que se abrem nesse corpo que vive longe de um lugar onde me reconheço inteiramente, faltava uma feira. Um aglomerado de barracas armadas que preenchesse ao menos uma parte desse buraco.
O dedo de prosa fazia falta. A liberdade de trocar uma receita, morder um pedaço, olhar nos olhos, perguntar da vida e de onde aquele tomate vinha. E foi num sábado desses, desavisado, pela janela do ônibus, que avistei um mar de lonas esticadas, cada uma de uma cor. Num estacionamento de cimento a céu aberto, no canto de um bairro onde não vou com frequência, a mancha desordenada de vida, ainda que de longe, tinha toda a pinta de feira. Feira livre, ao ar livre. Feira de alimentos, de gente vendendo o que se come, e com sorte, de gente que vende o que planta e se come. Afobado, o coração acelerado, fiz sinal e saltei.
Uma das coisas que mais gosto de viver em Coimbra é que, dois passos dados da cidade, juro, já se está num lugar completamente rural. Mesmo dentro do centro, para qualquer horizonte que o olhar se espraie, batata, há uma serra verde-bandeira por perto. A sensação é de ser uma gota de urbanidade no meio de um cinturão profundamente vivo. Aconteceu, e mais de uma vez, de pegar um ônibus errado e parar em estradas de terra, ver um rebanho de ovelhas e um campo lotado de brócolis. No ponto final, eles dão meia volta e em minutos estão de novo na Praça da República — teatros, farmácias, estátuas e paralelepípedos. Cidade.
A feira de Norton de Matos (porque assim se chama o bairro), que acontece aos sábados, naquele horário habitual, matinal de feira, é fruto natural dessa configuração. Quase todo mundo está lá para trocar por dinheiro o que produz, senão ao redor da sua casa, em um campo próximo a ela. A maioria, da zona que circunda a cidade. Não se fala em orgânico (aqui, biológico) porque esse marketing não me parece relevante a quem compra e a quem vende ali. Se vendem o que plantam, e praticamente tudo é restrito àquela época do ano, é natural, o melhor que pode ser. A vez que perguntei, me olharam com cara de é mesmo preciso dizer?
Da minha primeira até o dia em que escrevo esse texto, já foram três idas. Fui conversando, comprando de propósito uma coisinha de cada barraca, e entendendo do que aquela feira era feita. E adianto que é de frutas, legumes e verduras de qualidade, mas principalmente de gente. Gente que fala, ri, barganha, insiste, aceita, leva, cala, nega — troca. Gente. De saída da minha primeira vez, recebi um tapinha no ombro de uma freguesa que chegava, alegre e surpresa: A fazer compras? Muito bem! Não se vê jovens em feiras como esta!
A maioria das feirantes ali presentes são pequenas agricultoras, mulheres idosas, cabelos curtos e buços sombreados, tuguíssimas. Numa ocupação que, me disseram, dá trabalho e exige força braçal, mas também distrai a cabeça e complementa a aposentadoria. A primeira que aparece depois da escadinha que dá acesso ao lugar é a enérgica Isabel, da vila de São João do Campo, a meia hora de Coimbra. Tinha laranjas, tangerinas, mexericas, feijões, cenouras com ramas, grelos de couve e de nabo, ovos de galinha e de pata. A única que ainda ostentava uma balança antiga, de pesos e pratos, sem precisão digital.
— Qual a diferença entre a tangerina e a mexerica?, flechei.
— Uma é tangerina e outra é mexerica, ela lançou de volta, impaciente e meio azeda, como se fosse óbvio.
Sem querer perder tempo com isso, falou o que nunca vai se ouvir num supermercado:
— Pegue lá uma de cada e prove! Estão muito boas e doces. São mesmo do meu pomar, e fazem bem para a tosse. Um quilo e meio, um euro. Leve, fruta boa! Ainda lhes ponho mais umas para irem comendo pelo caminho.
A segunda Isabel, bem mais doce que a primeira, tinha os morangos mais lindos, queijinhos do Rabaçal, uma bacia de azeitonas marinadas com limão, alho e louro, e um tanto dos vegetais vistosos da época. Vive e planta em Cernache, a freguesia onde fica o nosso terreiro de umbanda, a dez minutos daqui. Seu marido, conhecido como Vinagre, quando viu que levávamos o queijo fresco de cabra, parou de arrumar as cebolas para nos fazer uma recomendação, puxando o lóbulo da orelha como quem diz que alguma coisa é supimpa: Este queijo com sal fino, pimenta preta e um fio de azeite fica uma maravilha!
Ção foi como se apresentou Maria da Conceição, firme e tímida. De sua terra, Alcabideque, zona das ruínas romanas de Coimbra, levamos os agriões enormes, de gosto igual aos do Brasil, mas diferentes no formato (as folhas mais alongadas pareciam mais de espinafres). Também maçãs amarelas, redondas e crocantes, e um saco cheio de couve cortada finíssima, que naquela semana aproveitamos em modo triplo: sopas, refogados e sucos.
Algumas têm outros trabalhos e a feira é um extra, caso de Odília, a mais nova entre as que conversei. Com seus 50, vara as madrugadas como cuidadora em um lar de idosos nos dias de semana. Aos sábados “vira” feirante, e a que vem de mais longe: da praia de Mira, a cinquenta minutos daqui.
Feiras livres como essa, por razões óbvias de tempo entre a terra e a venda, são, por exemplo, um dos poucos lugares onde se pode encontrar batatas novas, recém-apanhadas, ainda sujas de terra. Por guardarem mais água sob sua pele fina, são mais delicadas e macias, perfeitas no forno. Quando pedi um quilo (iam forrar um tabuleiro sobre o qual assaria um peixe inteiro), Odília tropeçou na caixa, fazendo com que rolassem todas ao chão asfaltado. Fomos juntando, e ela, despreocupada, profetizou: Dizem que quando caem é porque estão vendidas! Deixe estar!
Escolhi algumas e entreguei para que pesasse. Odília examinou uma a uma rapidamente, tirou três e substituiu por outras. Está vendo esses rebentos aqui? Já não estão boas. As batatas precisam ser lisas, e guardadas no escuro, para que isso não lhes aconteça, o que lhes altera o sabor, ensinou, em tom de carinho. Vocês são um casal?, perguntou a mim e ao meu marido. Assentimos que sim, abanando as alianças. Tudo bem! Pronto! Temos é que ser todos felizes, não é? No meio disso, ainda nos confessou que tem o estômago frágil, por isso foge de frituras e ácidos, como aqueles miúdos maracujás que vendia. Tinha é que ser vegetariana, como uma amiga indiana que tenho.
Mais que só abastecer a despensa, ir à feira abastece a minha própria despensa interior. Mais que forrar o estômago, ir à feira forra a mesa de uma toalha simbólica cujos retalhos são histórias, pessoas, gestos e escolhas que me saciam bem mais que uma volta enfadonha ao supermercado, terra de luz branca onde tudo é sempre igual, trivial, garrafal. Na feira aprendemos, refletimos, partilhamos. Aquilo que precisamos para viver, essencialmente, está nelas.
Em feiras sem veneno, aprendemos ainda mais, sobretudo a respeitar o tempo das coisas, um exercício valioso para quem, como eu, ainda se habitua com as safras, os produtos e os costumes de um novo país. Nas feiras ganhamos o benefício da dúvida. O da pechincha, o da escolha minuciosa, o da certeza de uma fruta doce. E nessa feira, ainda paga-se bem menos que no mercado, para comer mil vezes melhor.
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Ontem, o dia acordou chuvoso. A lista feita, mas não teve feira. Rota recalculada, fui ao supermercado arrumar o que cozinhar. Vi batatas lavadas, alhos-porós em bandejas de papelão, tomates-cereja em copo de papel. Redes de alhos, cebolas e limões, tudo pré-escolhido por sei lá quem, provavelmente uma máquina. Morangos da Espanha, mamões do Brasil, bananas do Equador. Um naco de abóbora madura, uma banda de melão e outra de repolho-roxo, tudo enovelado em plástico filme. Berinjelas sem sobrenome, grelos sem dicas de preparo. Tangerinas e mexericas sem lugar, sem piada e sem lembrança. Nada da rabugice agridoce da Dona Isabel. Tanto plástico em tudo. Tanta distância entre nós e a comida que cozinhamos e comemos.
Bipes
Sacos
Telas
Prefiro a feira
Onde o cartão fidelidade é a palavra falada:
até semana que vem.
O tempo há de deixar.
Para quem é do Rio, a Latifa, conhecida por levar sua cozinha nigeriana às feiras da Glória e da Junta Local, acabou de abrir seu próprio restaurante, em Vila Isabel. Arroz jollof com banana-da-terra, fufu com peixe, quiabo ou egusi soup e outros pratos tradicionais de seu país, de segunda a sexta, do meio-dia às 16h, na Rua Justiniano Rocha, 394. Vale muito!
A
, do Comida Saudável para Todos, chegou chegando no Substack com seu , que também é podcast. Uma contribuição gigante, das mais significativas, para a comunidade de quem escreve e lê sobre comida por aqui. Sabe quando dá vontade de assinar embaixo de tudo que a pessoa diz? Então.Minha melhor amiga da faculdade, uma das jornalistas que mais admiro, Ana Luiza Albuquerque, lançou essa semana o podcast que produziu na Folha de São Paulo sobre a ascensão global de líderes autoritários. Depois de ganhar uma bolsa do Pulitzer Center para realizar essa megareportagem, ela viajou para seis países no rastro de alguns deles, da Índia à Nicarágua, bem agente secreta. Já são dois episódios no ar e o resultado é coisa fina, ainda que assustadora.
A
foi convidada para falar sobre comida afrodiaspórica brasileira no Ray Charles Program in African American Material Culture da Universidade de Dillard, em Nova Orleans. Queria estar lá para assistir, mas como não dá, tenho acompanhado tudo de cá pelo que ela tem publicado no Instagram. Quanta admiração!Sou aficionado por playlists e completamente movido à música. Tenho um caso de amor permanente com as da curadora Nathalia Grilo, e essa semana ando explorando as criadas por Nelson Motta, cheias de surpresas, como uma lista dedicada às menos conhecidas do Tim Maia.
feiras são sempre cheias de vida…
Menino, vc sempre me emociona... obrigada