Entrevista com Camila Spolon: cozinha de santo, comida para todos
Historiadora e sacerdotisa de umbanda fala sobre a importância de resgatar um sentido mais honesto da religião
Religião e política se misturam? No Brasil de qualquer tempo, sociedade racista que ainda oprime continuadamente os povos de terreiro, como dizer que não? Está em curso, contudo, um movimento sem retorno de letramento racial e consciência da verdadeira — violenta — história nacional. Dele, lideranças de religiões de matriz africana e indígena têm produzido um rio caudaloso de conhecimento comprometido com o resgate de suas ancestralidades originais. Um levante respeitável e bem articulado de combate ao embranquecimento que dominou os terreiros, cobrindo-os de seu verniz colonialista. De luta contra um projeto político cristão que se renova desde 1500 até agora, o momento em que você me lê.
Camila Spolon é uma dessas vozes. Mulher de Obaluaê, orgulhosa mulher de terreiro, Camila tem paixão acesa pelo que fala. É historiadora, militante e liderança política eloquente de um terreiro de umbanda fincado na capital paulista, o Aruanda, recém-instalado em um novo endereço, onde ela estava no dia em que me concedeu esta entrevista. Pesquisadora da alimentação ritual nas religiões afro-brasileiras, Camila engrossa com vigor o necessário coro contracolonial decidido a reformar o que aí está.
A ideia embaçada de sincretismo, a ambiguidade na prática do sacrifício animal, as dimensões políticas da alimentação dentro e fora dos terreiros e o urgente exercício de memória como forma de olhar para nossa própria História são algumas das tônicas dessa conversa. Uma conversa mais que esclarecedora pela nitidez de suas falas, mas revolucionária pelo significado que suas ideias carregam. Bandeira inapagável de consciência disposta a se espalhar e moldar um futuro possível, mais justo e igualitário para gentes de todas as fés. Para que terreiros não sejam mais destruídos; para que ninguém seja morto ou olhado torto por usar a própria guia de contas no pescoço.
Na hora marcada para nossa videochamada, em uma sexta-feira, Camila apareceu vestindo branco, na frente de uma estante que cobria de livros toda a tela do computador, de fora a fora. Quebrei o gelo insinuando:
— Terreiro e partilha de conhecimento, tudo a ver, né?
— Sim e não, ela riu. Você é de terreiro?
A conversa duraria duas horas.
MH: Tenho uma vivência doméstica da religião muito forte na minha família, mas não, não sou iniciado.
CS: A umbanda tem um lance interessantíssimo com o estudo. Quando a gente fala de religião de matriz africana temos dois polos importantes: o candomblé e a umbanda. No candomblé há uma fase de onde saem os primeiros pesquisadores que vão em busca de explicar o que acontece no terreiro — Edison Carneiro, Roger Bastide, Pierre Verger — e temos um movimento contrário na umbanda, onde se busca justificar através do conhecimento tudo o que acontece no terreiro.
A umbanda passa por uma violência acadêmica muito grande, um processo de deslegitimação de um conhecimento oral, e passa a se fundamentar em livros de magia, em um conhecimento que começa a virar uma farofa. Misturam alta magia europeia ao espiritismo de Allan Kardec, que nem na França, onde surgiu, teve a força que teve no Brasil. Começam a encontrar outros caminhos para explicar a religião de uma forma teórica, e isso deu num lugar muito zoado.
A verdadeira história da umbanda não foi a que se propagou. Houve um mito fundador que colocou verdades muito absolutas, roubou elementos, apagou pessoas e valores muito importantes da religião em prol de um negócio. A umbanda passou a ter uma relação problemática com o dinheiro, pois começa a se fundamentar em uma ideologia furada de caridade. Caridade é um processo que se retroalimenta, já que para que exista caridade é preciso da miséria. Quando olho pro outro e me vejo como pessoa caridosa é muito mais sobre mim, né? É sobre a minha cabeça no travesseiro estar tranquila, e essa ideia é muito cristã.
Muito se fala sobre um processo de reafricanização da umbanda e não vejo sentido nessa palavra porque acho que a umbanda nunca deixou de ser africana. O que fazemos hoje é um processo de combate a mais uma tentativa de embranquecimento que apagou nomes muito importantes da nossa história. Nomes como Tata Tancredo, que fez uma gira no Maracanã, por exemplo.
MH: Como esse apagamento atravessa a alimentação ritual na umbanda, seu objeto principal de estudo?
CS: Há uma curiosidade quando falamos sobre alimentação na umbanda porque a partir dessa fundamentação teórica, a ideia que se propagou foi a de uma religião palatável: passam a falar de mesa branca, uma religião com fundamento espírita, onde baixam doutores, médicos, advogados, então há um interesse social na religião a partir desse lugar. Socialmente, quando falamos das religiões de matriz africana, há uma visão cristã que as interpreta de uma maneira demonizada, primitiva, principalmente o candomblé. Então aconteceu uma fusão: a prática de uma religião afro-brasileira como o candomblé, mas de uma forma aceitável socialmente. E qual é a primeira coisa derrubada nesse mito fundador da umbanda? O sacrifício animal, o coração do terreiro.
Se falamos da sala de casa como um lugar de estar, para quem é de terreiro, a cozinha é um lugar de ser. É na cozinha onde se nasce. Na cozinha que é preparado um padê para Exu, a base de tudo. Quando falo da retirada do orô [o sacrifício], perco muita coisa. Só que se eu estou perdendo, tem alguém ganhando com isso. E a umbanda passa por um período onde é tratada como um negócio, em que era preciso agradar o cliente que vai se consultar no terreiro. Então diziam: fica tranquilo, viu? Meu terreiro é um terreiro de umbanda branca, aqui não matamos bicho.
Levam isso para uma ideia darwinista, de evolucionismo, tanto que uma das justificativas para a retirada do sacrifício no terreiro de umbanda é que Jesus foi o último cordeiro. Percebe? Trazem o fundamento de uma religião dentro de outra, um negócio esquisitíssimo, mas cola. E se propaga.
Isso traz um atravessamento violento para a religião, que é a perda do ensino a partir da mesa: quando corto qualquer animal, há um processo de aprendizagem ali. Quem faz, ensina quem chegou agora como limpar aquele bicho, como entregar o axé, como prepará-lo para a comunidade comer no outro dia. Como secar o couro de um boi para ser usado em um atabaque, como usar os chifres e cada um desses elementos que são sempre reaproveitados.
Sem isso, a umbanda começa a passar por um processo completamente higienista, já que trocam animais por fruta. O Exu de umbanda para de comer galo e passa a comer melão, um melão comprado, sem trabalho ou ritual algum. Viro meu estudo para esse lugar conflituoso porque é nele em que esbarramos de forma direta em um racismo religioso, um racismo alimentar. Especialmente quando falamos de um país como um Brasil, que não vê problema em ser um dos maiores exportadores de aves do mundo, mas vê problema em um galo sendo cortado em um terreiro. São questões que a gente precisa discutir a todo instante.
MH: A comida ritual no terreiro também tem uma função social, né?
CS: A religião é o maior exemplo da simbologia dos alimentos na vida social: por muitas vezes aquele animal que foi cortado alimenta outras famílias. Os animais são comprados sempre com atenção à procedência, são limpos e guardados de forma correta, a carne é sempre consumida. Se há volumes muito grandes, os terreiros distribuem no bairro, as pessoas do entorno pedem e recebem. Não é uma comida perdida. Mas olha o quanto a umbanda perde tirando o sacrifício animal?
Se tenho um culto de orixá vindo de África, principalmente a umbanda, que passa pela África Central e traz uma ideologia bantu de absorver o que é do outro, quando trago essa ideologia pra cá, por que tirar o animal? Por que o animal no prato não é um problema, mas é um problema no alguidar? Não tem outra resposta a não ser o racismo. Podemos partir da ideia que a umbanda sempre teve sacrifício animal, mas pelo menos em São Paulo, ainda vemos isso, na maioria das vezes, nos terreiros que carregam fundamentos de candomblé. Apesar da umbanda sempre beber do candomblé e vice-versa.
MH: Existe um campo de interseção entre uma e outra, certo? São religiões muito dinâmicas.
CS: Exato, são duas religiões de resistência. Há um cuidado quando colocamos esse comparativo entre umbanda e candomblé porque muita gente tende a colocar tudo no mesmo lugar, naquele reforço de que África é um país. Apesar de dividirem algumas situações e compartilharem de violências, são religiões distintas que partem de lugares diferentes, mas em algum momento se encontram, sim. Até porque são religiões de matriz africana então não se apropriam umas das outras, pelo contrário: compartilham de saberes e aprendizados.
Por isso se encontra muito terreiro de candomblé que toca umbanda também, o que vem pela ancestralidade de cada um. É muito comum acontecer, e quando falamos dessas duas religiões falamos desse intercâmbio direto, que não é um problema para nenhuma delas. Quem vê problemática nessas situações é o cristianismo, que parte de uma outra lógica, completamente individual, não coletiva. Por isso, passa a entendê-las, portanto, como religiões opostas.
MH: O senso-comum parte dessa ideia de que a umbanda é a versão mais sincretizada do candomblé com a igreja católica. Por que esse sincretismo entrou?
CS: Talvez a pergunta não seja o motivo pelo qual o sincretismo entrou, mas por que permanece? O pai David [Dias, pai de santo do Aruanda] fala uma coisa curiosa: como temos coragem de olhar para Oxóssi, o caçador de uma flecha só, e sincretizá-lo com São Sebastião, um santo todo flechado? Talvez essa seja a figura mais contraditória desse processo. O Brasil tem uma religiosidade cultural, uma fé popular muito interessante, e esse sincretismo entra de um jeito natural. Para muitos brasileiros não há problema nessa mistura: tem gente que tem em casa uma imagem de Iemanjá, uma de Jesus Cristo e outra de pomba-gira e tá tudo bem.
Acontece que há uma jogada aí. Quando se apropriaram de uma religião de matriz africana para atrair um público cristão, passaram a fornecer elementos para que as pessoas se sentissem seguras. Colocam Jesus Cristo na parede e dizem que Oxalá e Jesus Cristo são a mesma coisa. De novo, na tentativa de tornar aquilo mais palatável. Dizem que ali os guias são de luz, o preto-velho não é preto, nem velho, só uma energia — e as pessoas compram essa ideia. Quanto mais santo no terreiro, mais cristão ele é, e se ele é cristão, ele é seguro, e há quem acredite nisso.
Isso diz muito sobre uma estratégia de embranquecimento. Sílvio Romero, na teoria das três raças, traz a esperança de uma sociedade embranquecida. A gente pensa no primeiro momento naquele incentivo da migração europeia que aconteceu no Brasil, mas isso também se deu de outras formas. Quando falo de uma sociedade embranquecida não falo só de pele, mas de valores. Começamos a enraizar valores eurocentrados nas nossas estruturas e isso se propaga.
Há um motivo: uma estratégia política, totalmente política, considerando que as religiões de matriz africana passam por um período de perseguição policial. Tínhamos no código penal a ameaça por magia até pouco tempo atrás. Tivemos durante um período a delegacia de Jogos e Costumes, o Estado pedindo que o pai ou a mãe de santo tivessem uma licença mental para poder exercer seu sacerdócio, todo um movimento violento de repressão aos terreiros. Essa umbanda “branca” apareceu colocando panos quentes, apaziguando essa situação.
E o sincretismo vai indo além, não se limita aos santos: chega ao umbandaime, um terreiro de umbanda que absorve valores do Santo Daime, com ritos de ayahuasca, e a religião começa a virar um Frankenstein. Começamos a ver coisas assim: ritual de umbandaime numa festa de Olubajé, em uma sexta-feira santa — pegam um fundamento de uma religião afro-indígena, uma festa de candomblé, um feriado cristão, misturam tudo e vendem isso na Oscar Freire, num bairro de alto padrão. Um ritual de medicina do cacau com fundamento de pomba-gira. E de novo: quem ganha com isso?
Aqui [no Aruanda] não somos sincréticos nem na teoria, nem na prática. Tem pessoas que chegam aqui, percebem isso e vão embora, acham pesado. Na casa de Exu temos um orô com vários pés de galo pendurados, e tem gente que acha isso um absurdo, não concorda e deixa de frequentar.
Enquanto isso a umbanda está no Rio de Janeiro enfrentando o Exército de Cristo, que está entrando nos terreiros e mandando as mães de santo quebrarem as imagens. As mães de santo não conseguem colocar um torso na cabeça para entrar no metrô de São Paulo, mas tem alguém ganhando com o acarajé que a mãe de santo não consegue comprar porque é vendido num bairro nobre. Há um fetichismo que se dá muito no modernismo, na Semana de Arte Moderna, quando se fala sobre o que é cultura nacional e o que é folclore. Colocaram os terreiros no folclore, então há um fetiche muito grande ao nosso redor.
MH: Quais as consequências desse movimento se pensarmos na cozinha de santo?
CS: A cozinha de santo é problemática aos olhos da sociedade, mas se cai no cardápio de um restaurante caro, de um chef de cozinha que não tem a menor responsabilidade com a causa, ele vira hype. Gosto de falar da beleza que é a comida de santo — e agora estou falando com você e tem uma canjica aqui na panela de pressão porque hoje é sexta-feira — mas é importante discutirmos a partir dessa outra perspectiva. Quando falamos que comer e cozinhar é político, é muito por esse viés, o de entender a quem favorece esse discurso.
No ano passado, no dia 2 de fevereiro, a Rita Lobo fez um post ensinando a fazer um manjar de Iemanjá. Isso não pode acontecer, porque na hora em que um terreiro está sendo incendiado, ela não aparece para falar sobre isso. A quem interessa o discurso da comida de santo? A esse fetiche, ao que é folclórico, exótico. Precisamos entender a alimentação de terreiro como um ritual que dá existência para as pessoas que são de santo; aquela comida alimenta o ori, a cabeça daquela comunidade.
Durante a obra do terreiro estamos enfrentando alguns problemas e hoje cozinhamos essa canjica porque ela é o melhor alimento para esfriar a cabeça, ajuda a gente a pensar melhor. É dia de Oxalá, o dia da canjica, e daqui a pouco a gente para e come, e isso de alguma forma nos cura de dentro pra fora, traz o que a gente precisa. Então é desonesto quando vejo a canjica de Oxalá num cardápio de orixá que custa 500 reais por pessoa, sabe? É algo que é parte de quem me tornei na iniciação, e não de um folclore.
MH: Quero aproveitar para perguntar da sua história. Em que momento a sua história se cruzou com a da umbanda? Como aconteceu essa aproximação?
CS: Minha família sempre foi católica. Comecei a namorar um cara e a avó dele era mãe de santo de um terreiro. Em um dia que a gente se desentendeu na casa dela, eu não estava bem, e ela incorporou uma preta-velha. Isso faz cinco anos, no máximo. Eu nunca tinha visto aquilo, nunca havia tido interesse em ir em um terreiro, nada. Quando você vê a incorporação pela primeira vez é impactante, você não sabe dizer o que é, mas sabe que é outra pessoa ali. Ela desincorporou e disse que eu fosse no terreiro dela. Eu fui, mas fui bem incrédula. Comecei a ir toda semana, e um mês depois cheguei em uma festa de Ogum. Quando vi a festa fiquei chocada. Você já foi numa festa de umbanda?
MH: Não, ainda não fui.
CS: Parece um churrasco de domingo. É muita gente! O terreiro ficava numa comunidade, e a comunidade espera os dias de festa. As festas são para a comunidade. Por isso, uma das premissas da comida de santo é que ela precisa ser farta. Ela precisa alimentar todo mundo. Tinha tinas e tinas de cerveja, feijoada pra caramba, como uma festa de casa. Observava e minha preocupação era que aquela comida não ia dar pra todo mundo, e a comida do terreiro é muito curiosa: ela dá pra todo mundo. Ninguém sai com fome, eu nunca vi uma festa de santo faltar comida, é um mistério. Acontece muito em festa de Oxóssi, em que temos espigas de milho cozidas, e num momento já se pensa em começar a partir as espigas no meio para que todo mundo possa comer. No fim, dá uma espiga pra cada um e não sobra nenhuma.
Fiz quatro anos de Direito, não concluí e fui para a História. Eu estava no primeiro semestre da [graduação de] História e abriu um concurso sobre comida e fé. Me inscrevi para falar sobre a feijoada de Ogum, a experiência que tive na festa, fazendo a receita da feijoada. Não sou da gastronomia, mas sei cozinhar porque as mulheres da minha vida cozinham, minha avó, minha mãe, minhas amigas. Fiquei em segundo lugar, perdendo só para uma mulher que levou o doce de um convento.
Gostei dessa ideia e comecei a estudar mais e ir em outras festas, na festa de Cosme e Damião, fui me envolvendo com aquilo, e assim chego no meu terreiro. Passei a frequentar primeiro como aluna do desenvolvimento, fui ficando por alguns meses, até que falei: acho que quero ser filha de santo, quero viver isso de forma mais intensa — e dei meu nome. Um ano e meio depois fui iniciada pra Obaluaê, o orixá que fala sobre a cura, e para Iemanjá.
Nesse período me formo num sacerdócio, me dedico ainda mais a esse estudo e entendo o quão política a comida é dentro desse espaço. Passo por uma formação política, falo pela religião, tenho autonomia e competência para falar em nome dela. Esse poder foi incumbido a mim pelo meu pai de santo para poder discutir politicamente e socialmente em outros espaços, fora do terreiro. Falo pela umbanda, não pelo meu terreiro especificamente.
No fim das contas, a cozinha ritual na umbanda acabou se tornando meu objeto de pesquisa: entreguei uma iniciação científica sobre esse tema, importante de ser discutido principalmente porque não se tem muitos registros disso. E quero entrar no mestrado ainda esse ano, levando esse assunto.
MH: Nesse período entre você dar o seu nome e ser iniciada de fato, o que acontece? Uma imersão no cotidiano do terreiro, um período mais forte de formação?
CS: É engraçado porque a gente percebe que aprende a ser sozinho na vida. Quando entramos num terreiro descobrimos que não estamos sozinhos, se está numa família a partir de então, e entram os desafios do coletivo. O que é viver numa casa com cinquenta irmãos de santo? Entender que essas pessoas estão por você também, para te ensinar o que é uma vida em coletividade.
Aprender o que é ser filha de pai de santo, antes de ser filha de santo; aprender como é ter uma liderança religiosa. Meu pai de santo é uma figura fundamental na minha vida, não faço nada sem consultar Exu e sem consultar ele, uma pessoa que tem responsabilidade sobre meu ori, minha iniciação. Nesse período, também foi preciso entender o que é ser uma mulher de terreiro. Um período de aprendizado, de entender uma ordem hierárquica, de entender meu lugar. Quando chegamos no terreiro dizemos que somos crianças, e costumamos dizer que crianças não falam, primeiro ouvem.
Chego para ouvir como as coisas funcionam e acontecem nessa casa, estruturalmente falando: é preciso trocar a água das quartinhas, molhar as plantas, se aprende o básico do básico. E começo a participar das giras. Em algum momento estou pronta para me iniciar — quem decide é o pai de santo — e passo pelo ritual iniciático. Aqui no meu terreiro não sabemos qual é o nosso orixá até a noite da iniciação, então é uma noite bem emocionante. Quando a gente é iniciado parece que a vida zera e começa de novo. A partir dali somos lidos como um orixá e isso é muito bonito, uma das maiores poesias que o terreiro carrega. Eu deixei de ser a Camila, sou o Obaluaê dessa família, sou um orixá mais velho, e as pessoas olham para mim dessa forma.
O terreiro passou a ser a minha casa, volto pra cá quando preciso, tenho coisas minhas aqui. Esse é um lugar onde a gente reza, faz macumba e faz churrasco. O David é DJ, então fazemos baile black no terreiro. É um lugar que não é institucional. Percebe a importância da não-institucionalização das relações? Isso é muito bonito e percebo que a umbanda vem caminhando para esse lugar de novo. Existem alguns movimentos bem recentes de lideranças que se espelham nessa ideia de terreiro como casa, não como instituição.
MH: Por que a alimentação na umbanda ainda não é tão estudada, contrário do que se vê com os estudos sobre a cozinha ritual do candomblé?
CS: Isso tem muito a ver com a relação que a umbanda tem com o próprio espaço do terreiro. No candomblé existem as irmandades, falamos de comunidades onde as pessoas moram no terreiro: é uma família de santo todo dia, o santo come toda semana, há um movimento diário na cozinha. Quando a umbanda parte desse lugar de instituição, ela relaciona as pessoas a irem no terreiro uma vez por semana. Se não tem gira, não é preciso ir, e nos outros dias, o terreiro está fechado. A relação com a cozinha do terreiro é outra, ela praticamente inexiste.
Na realidade, o terreiro tem função todos os dias: é preciso limpar a casa de santo, tem louça e banheiro pra lavar, lixo pra recolher. Mas se entendo esse espaço como uma instituição, não vejo necessidade de ir até lá, então me afasto da cozinha e a comida passa a ter pouca importância. No terreiro não comemos só pela boca, comemos de outras formas. Comemos pela cabeça, tem comidas que passam nas mãos, outras só pelos pés, tem comida que fica na porta. Perder isso, historicamente, é perder muito. É cair na homogeneidade, perder a diversidade que nos faz únicos.
MH: Em terreiros em que não existe esse nível de esclarecimento, então, a comida perde essa dimensão sagrada?
CS: Total. Se não entendo o papel da comida no ritual, se o acarajé da festa vai chegar pelo iFood, não vai fazer diferença. É uma linha tênue entre a adaptação da tradição e o apagamento, percebe? A comida perdeu todo o ritual, não passou pelo processo de preparo, pela escolha dos ingredientes. Falamos que o lugar onde tudo começa é o mercado, lugar que tem papel fundamental na alimentação de santo. Primeiro porque é no mercado que mora Exu. Tem um oriki que diz que a banca do mercado tem sempre dois lados, é uma via de mão dupla. O processo começa quando eu escolho, decido ofertar. Quero escolher o galo que eu vou dar pra Exu pelo tamanho, pela cor. Dizer a Exu que escolha o galo que ele quer.
É a mesma coisa de receber alguém na minha casa: quero saber o que você gosta de comer ou vou querer cozinhar algo que é valoroso para mim, demonstrar o quanto estou feliz com você através da comida. Como levar essa relação para o terreiro se não tenho isso no dia-a-dia? Não é fácil, ainda mais na sociedade do cansaço em que vivemos. São muitas camadas. É uma frase clichê, mas nunca é só comida.
MH: No seu terreiro, como funciona o espaço da cozinha?
CS: Na umbanda não cozinhamos só para o orixá como no candomblé, mas para o ancestral. Temos gira de preto-velho, de pomba-gira, de Exu, de marinheiro, então a lógica da comida parte de outro lugar. Majoritariamente quem cozinha são as mulheres de Oyá, que nos mitos de orixá são as donas da cozinha. Coincidentemente ou não, as duas Oyás do meu terreiro, uma é nutricionista, e a outra, chefe de cozinha, então a cozinha é delas. No meu caso, que estudo a cozinha de santo, também estou sempre ali. É importante que a pessoa que vai mexer na cozinha seja iniciada, carregue esse conhecimento, tenha uma experiência de santo.
MH: Já acompanhei algumas idas suas às cozinhas de ocupações e assentamentos do MST. Como foi esse movimento? Que relação existe entre essas cozinhas e a cozinha de santo?
CS: Na pandemia, levei essa dimensão política da alimentação para um outro lugar porque começo a me envolver com o ativismo alimentar. O desafio mais complexo da cozinha de santo é entender por que ela é importante, e isso acontece, de novo, por um motivo muito claro: como a gente se relaciona com a comida? Aqui em São Paulo, por exemplo, de uma maneira caótica. Tem gente que se orgulha em falar: nem lembro o que comi hoje, o que para mim é um problema. Você não tava ali.
A comida tem uma relação direta com o tempo, e a prova disso são as comidas de rua. Em São Paulo, por exemplo, elas cabem em uma mão porque na outra você se segura no metrô, no ônibus. As pessoas não entendem da comida de santo porque não entendem a relação que elas têm com a alimentação de forma geral. Se não reconheço a importância da comida na minha casa como vou valorizar a comida de santo? Como vou entender o poder de botar um acarajé para dentro? Para mim, ele nunca vai ser só um acarajé.
A comida precisa também alimentar uma subjetividade. Tenho passado por um processo de racialização que é sempre muito complexo quando falamos de pessoas negras de pele clara. Resgatei uma memória de infância com meu avô que comia aquele doce de mocotó, metade rosa, metade branco, e aquele doce alimenta a Camila criança, aquela memória com ele. Quando me reconheço enquanto mulher negra de pele clara volto para ele, um homem negro retinto, então comer esse doce alimenta a minha história. Essas coisas são importantíssimas, mas passam batido socialmente.
No auge da pandemia, estava cozinhando em uma ONG que entregava marmitas nas ocupações. Um dia quis ir lá levar, ver como era. Quando chego, vejo que a ocupação é um submundo: uma autogestão em um nível muito grande de organização, você não sabe como aquilo funciona. Comecei a conhecer melhor a luta de moradia no Brasil e todas as suas frentes. Visitei ocupações até que chego na ocupação Nove de Julho, uma referência em São Paulo, a segunda maior ocupação vertical da América Latina. Eles têm uma cozinha comunitária abastecida pelo MST, alimentam os moradores do prédio e ainda doam uma parte das marmitas e vendem outra parte para levantar fundos. Achei aquilo surreal.
Primeiro porque falamos do MST, um movimento político que tá na mira do Estado a todo instante, em uma treta por conta de latifúndio, território, agricultura familiar, e mesmo assim os caras produzem e ainda doam o que produzem. Começo a estar cada vez mais envolvida, e entendi que falar de cozinha de santo só faz sentido pra mim se eu conseguir atuar de uma forma política nessa causa. Com um ano de pandemia, no assentamento Carolina Maria de Jesus, do MST, fizemos quase 1500 acarajés para a comunidade com a chef Bel Coelho. Começo a cozinhar em ocupações e, sempre que falo de comida de santo, puxo esse gancho para o acesso da comida para todo mundo. Não podemos falar de comida como algo sagrado se ela não é acessível. Somos um país que ainda passa fome, e isso me pega demais.
MH: Tem razão, na cosmovisão africana não se fala de comida se não for compartilhada.
CS: Sim, não faz sentido. Por isso falamos do ajeum, a cerimônia mais importante do terreiro. O que é o ajeum? É comer junto. Na umbanda você incorpora caboclo, mas o óleo que está na sua cozinha é de uma marca que explora território indígena, isso faz sentido? Esbarramos na consciência de consumo e nesse desafio de como adequar uma alimentação positiva ao salário que se ganha. Por isso a problemática da alimentação precisa, mais uma vez, estar presente nos terreiros. Gosto de uma frase que abarca tudo isso: uma religião sem responsabilidade social é um delírio colonial.
MH: Tenho acompanhado sua atuação com aulas e cursos que tem ministrado sobre a cozinha de santo. Como tem sido compartilhar esse conhecimento?
CS: Acredito muito enquanto historiadora e professora que a educação muda uma base, mas de qual educação estamos falando, né? Quando falo de uma educação de terreiro, uma educação que é contracolonial, boto muita fé que ela muda uma realidade, nem que seja a última briga que eu compre na minha vida. É urgente que esses assuntos sejam discutidos nos terreiros. Me tornar uma mulher iniciada foi a principal coisa que aconteceu para a minha existência, parece que uma parte de mim se encaixou com algo que eu não tinha contato, e isso não pode ser tratado de qualquer jeito.
Eu me tornei uma mulher de terreiro, de orixá, é sobre quem eu sou, não sobre o que eu faço. A dificuldade que tive de encontrar informação sobre a alimentação ritual na umbanda me despertou, vi que isso precisava ser dito. Tanto como maneira de repassar esse conhecimento para que a gente mude outros terreiros e resgate isso de algum jeito, como uma forma contracolonial de ensino, de dizer o que a cozinha ensina além do que ela alimenta. Não se constrói conhecimento de forma individual no terreiro. Então, para que eu possa continuar preciso somar, as pessoas vão chegando e juntos vamos construindo, e isso foi me abrindo portas.
Dei uma formação para um grupo de mulheres indígenas no Mato Grosso do Sul, um território preservado onde 80% dos guaranis brasileiros estão, e lá a situação alimentar é bizarra. Primeiro, é um território majoritariamente evangélico, então os conhecimentos indígenas que elas tinham foram praticamente todos perdidos. Fui dar uma aula prática de cozinha, para levar um conhecimento de fora pra dentro, de uma forma muito cautelosa, muito pelas beiradas, porque não sou uma mulher indígena.
Somos marcados por ritos de passagem, e os alimentos estão presentes na maioria desses ritos. Comemos para curar coisas, comemos por saudade, por amor, para fazer festa, celebrar com outras pessoas. Para os indígenas os ritos de passagem são ainda mais importantes. Quando indígenas casam, o homem precisa dar uma roça para a mulher, mas eles não têm mais roças lá. Tradicionalmente, os guaranis fazem o batismo das plantações de milho, mas já não têm mais milho.
A catequização foi muito importante para incutir esses valores eurocentrados tanto nos indígenas quanto nos negros que vieram pela diáspora, e isso continua acontecendo. Tenta-se a todo instante moldá-los ao neopentecostalismo, numa forma de dominação muito antiga que funciona muito bem. Acontece quando tenho uma missão evangélica dentro de uma comunidade indígena que rouba todos valores que eles têm, demonizando o que eles acreditam. A casa de reza que têm lá quase não é mais usada. Falta algo: eles não são brancos, mas não conseguem mais se encaixar nos ritos indígenas. Há um vazio étnico, por isso o envolvimento com álcool e drogas é muito alto. Os lagos não têm mais peixes, estão todos contaminados, a terra cheia de cupim. Socialmente, o efeito disso é devastador.
Depois, recentemente, participei do Fundo Agbara, um projeto que fomenta o empreendedorismo de mulheres negras, onde falamos sobre o alimento como uma simbologia que reforça a história de quem nós somos e de onde viemos. Quando como um cuscuz, uma tapioca logo cedo, e o quanto isso é importante em uma construção identitária, principalmente para mulheres negras. Encontrei na educação uma forma de somar e de compartilhar, muito em uma lógica de Exu, algo vai e algo vem, de conseguir propagar tudo isso.
Contei quando fui ao terreiro aqui em Coimbra, e na gira de caboclos, conversei com um saci, uma figura do nosso folclore. Falei do meu avô que incorporava um padre que falava latim. Ela lembrou de um terreiro em São Paulo onde ouviu que havia gira de portugueses. E que havia bacalhau.
CS: A umbanda muitas vezes esbarra nessas crenças populares, mas há uma linha muito tênue entre o que acontece e o que precisa ser preservado. Quando falamos de umbanda partimos de uma lógica de uma população marginalizada. Em alguns terreiros há giras de baianos, mas se sou de Salvador como incorporo meu próprio povo? Onde o baiano faz sentido? Em São Paulo, porque houve uma migração muito forte por conta da mão-de-obra operária, então faz sentido a linha de baianos funcionar aqui.
Procurar uma lógica cartesiana, uma resposta para cada coisa, não é parte da lógica de terreiro. O terreiro não tem certeza de tudo, é um lugar de possibilidades, falamos de circularidade. Diferente do cristianismo, onde existem respostas bíblicas para tudo. Não partimos de um livro sagrado, então não temos onde encontrar essas respostas, e essa prática não é uma coisa do nosso povo. A umbanda tentou fazer isso com os livros: justificar as comidas, as folhas, e algumas coisas são porque elas são, apenas acontecem, não precisam de respostas.
Quem tiver interesse em se aprofundar no assunto, recomendo maratonar todos os episódios do podcast Atina Pra isso, apresentado por David Dias, pai de santo do Aruanda, que acabou de voltar à ativa com novos episódios semanais, e apoiá-lo financeiramente pelo Apoia-se. A série Encruzilhadas, dez aulas abertas do Sesc Campo Limpo, com David, Camila e outras importantes lideranças do nosso tempo, como fiz e de onde saí outro.
Camila é luz! Que entrevista mais linda, rica em saberes, rica em camadas. Dá vontade de sentar no chão, em roda, pegar uma caneca de café e ouvir por horas. Obrigada por isso Mateus. Obrigada Camila <3
O domingo começou com uma entrevista esplendorosa de @mateushabib e @camilaspolon, passei o dia consumida pela escrita e palavras q li, me transportaram aos terreiros e pontos de umbanda onde passei parte da infância, só agora consegui comentar de tão mergulhada que fiquei no texto todo o domingo, muito amor aos orixás e aprendizado diário, vou dormir feliz ❤️❤️❤️