No Brasil há milhares de frutas nas quais nunca cravei os dentes. Tão grande aquele chão, em muitas provavelmente nunca irei. Em Portugal, país que é um pouco menor que o estado de Santa Catarina, a sensação é outra. Evidente que ainda há muito para se conhecer, sobretudo do que é feito por gente, depois de quase dois anos aqui. Do que cresce da terra, entretanto, sinto que a lista já não é assim tão inalcançável. Estudando alimentação, então, posso dizer que furo a fila: no mestrado me apresentaram o chícharo, uma leguminosa parecida com o tremoço. A maçã Bravo de Esmolfe e o grão de bico preto. E nos mercados e feiras, meus olhos curiosos se colam logo às variedades diferentonas de pêras, couves e pêssegos. A cada nova Estação que se revela, vêm mais uma ou duas surpresas. Nem penso: mordo todas.
Nessa virada de Primavera, a segunda que passamos aqui, já vejo com olhos velhos o despontar de uma nova conhecida. Pequena e amarelada. Polpa quente e carnosa, um gosto doce meio difícil de explicar. Penso na ambiguidade entre descobrir e conhecer. Lembro daquela primeira vez. Ano passado, quando entramos num restaurante de beira de estrada, sem placa e cheio de gente, meus preferidos. Junto do caixa, em cima da vitrine gelada de sobremesas, jazia uma bacia cheia dessas frutas na qual nunca tinha passado os olhos, e muito menos cravado os dentes. Quando ergui as sobrancelhas de espanto, a senhora que fazia a conta do almoço logo tratou de resolver os dois lados — o meu, que não conhecia a fruta, e o dela, que tinha fruta demais, muitas em vias de apodrecer. Querem levar umas nêsperas?
Logo apareceu com um saco, enchendo aos punhados, meio aflita: Levem, levem que já estão madurinhas. Me lembrou o nosso caso brasileiro com mangas. O sítio de uma amiga em que havia um congelador tomado de mangas descascadas, um lugar onde se tomava suco grosso de manga o ano todo. Onde mesmo com todo o cuidado em não desperdiçar, andar pela sombra das mangueiras era afundar o pé em mangas podres e moles, cobertas de abelhas zanzando e zumbindo. Quando a Estação decide, não há quem a pare.
Nêsperas são frutas asiáticas, ouvi falar que chegaram em Portugal por mérito mouro. Da família das ameixas, mas ainda assim, para o registro da minha boca, bem diferentes delas. Parecem damascos frescos, mas bem mais frágeis. Menos ácidas. Nada peludas. Têm jeito para geleias e compotas. Dizem que vão bem com queijo. E que há no Brasil, mas como milhares de frutas nativas ou adaptadas que desconheço, uma nêspera nunca tinha cruzado o meu caminho até agora.
Aqui, pelo menos em Coimbra, são realmente vulgares, tão vulgares como os limoeiros e laranjeiras. Há árvores imensas de nêsperas na minha rua. Uma, inclusive, no canteiro do meu prédio. Seus galhos atiram no ar folhas escuras, estreitas e alongadas como lanças, como as da própria mangueira. E é exatamente nessa altura do ano que estão despontando para, em qualquer momento mais quente e florido de abril, estarem prontas para serem apanhadas, tomarem o lugar dos morangos nos supermercados, feiras e mercearias e, logo depois, maduras demais, caírem pelas calçadas, apodrecerem nos próprios pés e serem doadas em restaurantes.
Antes de ouvir falar em nêsperas, ouvi falar nas suas árvores. Como quando cheguei era Outono e estavam todinhas adormecidas, tentava adivinhar pela folha e perguntava a quem soubesse: que árvores são essas? Inês Pereira, foi o que eu ouvi de primeira, e ainda remoí com meus botões que seria uma árvore em homenagem a uma mulher importante. Com esse nome portuguesíssimo, super possível de existir. Até imaginei a figura, Inês Pereira, baixinha e sincerona, toda aprumada com seu lenço no pescoço e seu carrinho de feira. Qual seria seu feito? Inês Pereira, um nome completamente português, e foram alguns dias matutando, sem saber se era fruta ou mulher. Só depois liguei o nome da pessoa à fruta. Nespereiras. Entendi.
E se o nome da árvore fosse mesmo Inês Pereira, bem que poderia ser uma homenagem a Gil Vicente 😉
https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Farsa_de_In%C3%AAs_Pereira
Cresci numa casa, na periferia de SP, que tinha uma nespereira no quintal. Meus pais eram portugueses e minha mãe dava muito valor a ela. Hoje em dia eu moro em uma área mais central e tenho dificuldade de achar (fora alguns sacolões e mercados do bairro da Liberdade) e quando acho muitas vezes são aguadas. Saudades de comer uma boa nespera!